17 Fevereiro 2019
O Produto Interno Bruto (PIB) foi inventado por um tal de Simon Kuznets, nos anos 1930. Esse economista russo-americano concentrou toda a atividade humana em um só número, que Roosevelt utilizou para projetar o new deal e tirar os Estados Unidos da crise. O PIB ajudou a medir a produção de fábricas e fazendas. Kuznets evitou introduzir atividades ilegais e prejudiciais à sociedade no cálculo do PIB.
Oitenta anos depois, o PIB continua sendo considerado o principal indicador do curso da economia, e seu crescimento ou queda move as políticas públicas e obceca os governantes. Ele continua medindo apenas coisas tangíveis, e não os serviços (sem falar nos digitais), assim como na era Kuznets. Mas, ao contrário do critério de seu criador, a especulação financeira, a prostituição, o tráfico de drogas ou armas contribuem para o cálculo do PIB.
O jornalista David Pilling explica em uma entrevista ao eldiario.es que é hora de diminuir a importância desse indicador e começar a contemplar outras figuras como a distribuição, a renda média (que dá uma ideia de como a pessoa típica vive) ou a longevidade com saúde. A arbitrariedade do cálculo do PIB não implica que seja neutro, já que seu crescimento é favorecido pela poluição, pelo crime e pelas guerras, como diz este editor do Financial Times no livro El delirio del crecimiento (Editora Taurus), com uma infinidade de exemplos e um verdadeiro desejo de tornar a economia compreensível e agradável.
A entrevista é de Marina Estévez Torreblanca, publicada por El Diario, 09-02-2019. A tradução é do Cepat.
Você sustenta que há uma obsessão com o crescimento do PIB, sem que se possa considerar este indicador como justo e adequado, por que você acha que não é?
Eu não digo que temos que jogar fora e que não funciona para nada, eu digo que temos que entender o que não está certo com o PIB e pensar em como poderíamos complementá-lo para ter uma visão mais global. Entre os problemas está a distribuição do PIB e seu crescimento. Você pode viver em uma sociedade em que todo o crescimento vá para o 1% ou o 0,1% da população, o que é um pouco o que aconteceu em sociedades como os Estados Unidos, Nigéria e Angola.
O PIB não diz nada sobre quão sustentável é esse crescimento. Você pode crescer como planeta, mas usando mais e mais recursos, até que não haja mais. Por exemplo, na Ilha de Páscoa, toda a sociedade dependia de árvores. Eram utilizadas para a agricultura, para proteger a terra, para seus usos religiosos e costumes, para mover aquelas grandes cabeças de pedra para a costa. Mas, então, chega um ponto em que a última árvore foi cortada e a sociedade entrou em colapso. Apesar de não existir na época, podemos dizer que eles estavam apaixonados pelo PIB. Se vemos o que estamos fazendo com o nosso planeta, podemos pensar que estamos fazendo o mesmo com o crescimento. Estamos matando o peixe, cortando as árvores, envenenando os rios e o ar. Tudo para crescer. E podemos chegar a um ponto de inflexão em que não poderemos mais crescer, porque destruímos o planeta.
Outra razão para críticas: o PIB não diz nada sobre a qualidade de vida. A maioria das pessoas gostaria de viver mais com boa saúde, mas nunca consideramos esse número, as pessoas estão muito mais familiarizadas com o crescimento do PIB. Eu vivi por anos no Japão, que supostamente economicamente era, então, um desastre total. Mas, as pessoas viviam 5 anos a mais do que nos Estados Unidos e com saúde ainda melhor. Contudo, ninguém considerou esse número.
Como o fato de estarmos muito mais conscientes em relação ao PIB do que outros indicadores, como renda média ou expectativa de vida, afeta as políticas do governo?
Eu posso pensar em dois exemplos: a China tem crescido 10% ao ano, por 30 anos. Crescimento real e transformador, mas que teve um custo que não foi medido. O rio Yantsé está morto. Existem cidades com uma prevalência de câncer extraordinária. Em Pequim e outras grandes cidades chinesas, a poluição é tremenda. Se você puder pagar, há crianças que são educadas sob uma espécie de domo, e que dizem que nunca viram estrelas.
Outro exemplo muito diferente: quando inventou o PIB, Simon Kuznets não queria que a especulação financeira ou o sistema bancário fossem incluídos, porque as funções dos bancos são, de alguma forma, de distribuição de recursos. Eles decidem quais empresas recebem empréstimos e quais não e, como resultado, às vezes precisam fechar. Kuznets acreditava que essa função do banco não deveria ser considerada porque não consideramos a farinha do pão, nem o trigo da farinha, porque isso seria considerar várias vezes a mesma coisa. Nós consideramos o valor adicionado.
A questão é se os bancos agregam valor pelo simples fato de ser bancos. A resposta é que os medimos e os incluímos, e pouco antes da crise financeira de 2008 nos Estados Unidos, no Reino Unido, os bancos aumentaram sua contribuição para o PIB e foram a 9%. Sendo assim, a conclusão no nível político foi: dar mais liberdade aos bancos, não os regular. Então, eles entraram em colapso e nós tivemos que pagar por isso com menos crescimento, mais impostos, menos investimento público. Muito desse crescimento foi, de fato, uma miragem. E isso nos levou a políticas erradas. Essa é a relação entre esse número abstrato e as políticas públicas.
Atividades ilegais como tráfico de drogas e prostituição também foram introduzidas no cálculo do PIB. Estas atividades foram incluídas nos países da UE a partir de 2014.
Isso mostra como, em certa medida, o PIB é um número arbitrário e decidimos o que é e o que não é. Um dia não contamos a heroína, no dia seguinte, começamos a contar. Este número não caiu do céu, nós mesmos o inventamos. E podemos, portanto, integrar o que queremos e obter o que não queremos. Kuznets não queria incluir armas, pois parecia que o número de bombas atômicas fabricadas não podia ser o árbitro do que é uma sociedade próspera.
Isso também ilustra, quando se compara países, que o PIB não pode ser levado tão a sério, como fazemos constantemente. Pois, até certo ponto, não são quantidades comparáveis. Por exemplo, os Estados Unidos não incluem atividades ilegais no PIB como drogas e prostituição, mas contam as armas, quanto mais fuzis são vendidos, melhor. O PIB gosta de poluição, crime e guerras.
Empregos normalmente mais ligados ao sexo feminino, como atendimento domiciliar, crianças ou idosos, não são incluídos no PIB, apesar de serem uma parte importante da economia de um país. Deveriam ser incluídos, em sua opinião?
Acho que devemos reconhecer que eles não estão lá e pensar na razão de não estarem. E a conexão que poderia ser estabelecida com o fato de que esse trabalho geralmente recai sobre as mulheres. Quando as mulheres saem de casa e entram no mercado de trabalho, sua contribuição não é levada tão a sério, e vemos isso por causa da disparidade salarial. É claro que não temos esse trabalho contabilizado em números, nem temos dado qualquer valor a ele, e isso é significativo. Por exemplo, a amamentação em termos de PIB não tem impacto. Leite em pó, sim, existem fábricas, funcionários, impostos. De uma forma invisível, isso estabelece alguns incentivos. Se você é um governo lógico, você quer mais fábricas de leite em pó e que as mulheres tenham menos licença-maternidade para voltar a trabalhar mais rápido para aumentar seu PIB, e que consequentemente comprem mais leite em pó.
Assim, podem também desejar que você fume, porque assim é possível estabelecer um imposto sobre o tabaco. É bom para a economia. Mas, você não está contando as pessoas que vão ficar doentes e o dinheiro que você terá que gastar cuidando delas. É irônico porque esse cuidado também contribuiria para o PIB. Portanto, temos que estar conscientes do que é visível e do que não é. E isso está mudando novamente na era digital.
Sobre essa questão digital, o PIB foi inventado há 80 anos em um mundo que hoje mudou. Não inclui no cálculo do PIB a economia de serviços, a internet ou aplicativos móveis ... como isso é possível?
Os escritórios estatísticos sabem disso. Com efeito, o PIB foi inventado em uma era de produção industrial e, portanto, não mede bem os serviços. E, no entanto, nossas economias em 70-80% são economias de serviço. É uma medida de outra era que não se adapta à que vivemos. Além disso, o PIB mede a quantidade muito bem, mas na qualidade é fatal. Por exemplo, um trem-bala no Japão, onde a pontualidade é medida em quartos de segundo. Os trens, apesar das catástrofes e terremotos, chegam em média um segundo atrasado. São trens perfeitos, que passam a cada 5 minutos e conectam as cidades. Trens ingleses chegam 2 horas atrasados, e se eles atrasam somente 10 minutos é considerado que eles chegaram a tempo. Do ponto de vista do PIB, é a mesma coisa, porque o que se mede é o que você vendeu em termos de pagamentos de passagens de trem.
A maioria das nossas economias, nossos seguros, centros de terapia, internet ... tudo isso não é medido. A qualidade da comida, os restaurantes que vamos. O PIB é totalmente cego a todas essas considerações. A única coisa que ele captura é o valor puro e duro. Mede muito bem as coisas que são fabricadas, que podem cair no dedão do pé, coisas físicas. Porém, o PIB não é muito bom em medir a música que você ouve. Se você comprar CDs, ele mede bem, porque é o plástico que você compra, a fabricação e os caminhões utilizados no transporte que são levados em conta. Mas, baixar músicas no Spotify é invisível. São atividades humanas que, se você tem bom gosto musical, contribuem para o bem comum. Mas, é invisível para a principal medida da atividade econômica. Existe um problema.
Outra questão mencionada em seu livro é como o culto do crescimento requer produção excessiva, consumo incessante e aumento contínuo da população. Me vem à cabeça, por exemplo, o consumo de roupas baratas, o que leva a comprar roupas que nem chegam a ser usadas. Essa desvalorização dos produtos em conjunto com essa febre consumista estabelece que tipo de dinâmica?
Sim, existe uma questão nisso. Tampouco é antiquado pensar em comprar poucas coisas boas e mantê-las, em vez de comprar constantemente coisas feitas em Bangladesh, em prédios que podem entrar em colapso e matar os trabalhadores.
Como sabemos, os fabricantes incluem obsolescência programada para os dispositivos quebrarem, e também gera esse sentimento de que as coisas ficaram desatualizadas, de modo que as pessoas continuam a consumir, na roda do hamster. E isso está integrado em nossa definição do que é uma economia de sucesso. Você tem que parar e pensar no senso comum. É um pouco louco, você tem que parar e ver o que isso significa.
Você vê alguma coisa positiva nesse culto ao crescimento? Costuma-se dizer que, quando a economia avança, ao menos as migalhas caem nas camadas menos favorecidas da população. É assim, acha que devemos nos preocupar com esta desaceleração da economia que está ocorrendo na Espanha e em toda a Europa?
Eu acreditar na teoria do gotejamento? Não. Angola, por exemplo, cresceu 10% ao ano durante 15 anos, mas para o angolano médio, nada mudou. Muito desse dinheiro foi para Portugal, para ser gasto em champanhe. Então, a distribuição é muito importante. Se você considerar o crescimento em sua medida fundamental, você poderia dizer: vamos cobrar menos impostos dos ricos e das empresas, porque devemos incentivá-los a ganhar mais e contribuir mais para o aumento do PIB. Levado ao extremo, poderíamos argumentar que deveríamos deixar todos os bilionários manter todo o seu dinheiro. Mas, o senso comum nos diz que este não é o caso, que deve haver um equilíbrio.
O PIB deveria ser substituído por outro indicador do progresso da economia?
A questão não deveria ser essa. Eu vou usar uma metáfora. Nós entramos na cabine do piloto de um avião, e sabemos quão rápido o avião está indo, quanto combustível resta, quão alto está indo. São todos os números que quando combinados e somados podem lhe fornecer outro, por exemplo, 162. Mas, o que ele diz? Talvez você esteja prestes a falhar. Isso é um pouco de PIB. O que precisamos é desagregar esses números, assim como um piloto faz na cabine. O PIB é bom como um desses números, mas talvez também precisemos medir a distribuição, a renda média ou a longevidade com saúde. Depois, há a medição da sustentabilidade, as emissões de CO2. Já temos os dados, mas não levamos a sério. Quase todo mundo sabe que o PIB espanhol cresceu 2,5% no ano passado, mas qual foi a produção de CO2? Talvez se levássemos em conta outros números para ter uma ideia mais equilibrada da sociedade em que vivemos, faríamos melhor.
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"O PIB gosta de poluição, crimes e guerras". Entrevista com David Pilling - Instituto Humanitas Unisinos - IHU