Como Kennedy enganou o Departamento de Estado e o Pentágono. As revelações de Robert Kennedy Jr.

Foto: Vatican News

17 Julho 2023

"Para lidar com Khrushchev e evitar a guerra, o presidente dos Estados Unidos teve que lidar com o complexo militar-industrial americano já denunciado por Eisenhower. (...) Vamos agora deixar a geopolítica por um momento e examinar a questão da guerra e da paz um pouco mais profundamente. O presidente Kennedy havia entendido que a paz começa com as nossas atitudes e as nossas convicções de base. Ele falou sobre a futilidade de esperar passivamente a vida após a morte para ser iluminados. 'Nós', disse ele, 'devemos examinar as nossas atitudes, como indivíduos, como nação, pois a nossa atitude é tão essencial quanto a de qualquer outro'. E deveríamos, disse ele, 'começar olhando para dentro de nós mesmos'”.

Transcrição do pronunciamento ao vivo, traduzida, do discurso de Robert F. Kennedy Junior, filho de Robert e neto do presidente John Kennedy, proferido em 29 de junho no Saint Anselm College, em Goffstown, em New Hampshire, em reportagem publicada por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 12-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o pronunciamento.

Sessenta anos atrás, meu tio John Kennedy proferiu um discurso histórico na American University de Washington DC (10-06-1963). E esse discurso é lembrado como o "discurso da paz". Vou lhes apresentar um pouco do contexto da época. No outono anterior, ele estava no Salão Oval com seu conselheiro científico, que eu conhecia muito bem quando garoto; naquela época, eu me lembro, na capa do New York Times e dos outros jornais apareciam as fotografias dos testes na atmosfera nos atóis do Pacífico: víamos apenas nuvens em forma de cogumelo das bombas atômicas, das bombas de hidrogênio que estávamos explodindo naquela parte do mundo. Naquele dia, meu tio estava em uma reunião com seu assessor Wiesner e perguntou-lhe o que acontecia com o fallout radioativo e Wiesner disse a ele que circulava por todo o mundo muito, muito rapidamente, e depois caia de volta à terra na chuva. Com a chuva, explicou, entrava nos nossos peixes, animais, lagoas, rios, córregos, água potável. E naquele momento estava chovendo.

Meu tio ficou por um longo tempo olhando pela janela e disse a Wiesner: “Você acha que também está na chuva que está caindo agora?” Ele respondeu que sim. E Ted Sorensen, que estava na sala naquele momento e que esteve ao lado de meu tio em alguns dos momentos mais difíceis de sua vida, disse que desde que conhecia John Kennedy, nunca houve um momento em que ele o tivesse visto mais perturbado do que naquele dia.

 

 

E Kennedy decidiu por uma resolução proibindo os testes nucleares na atmosfera. Ele sabia que seu Departamento de Estado se opunha, sabia que o Pentágono se oporia. Naquele momento ele fez tudo em segredo (com Kruschev). Eles tiveram que configurar uma linha direta para que pudessem falar diretamente entre si. Eles negociaram todo o tratado por meio dessa linha, por meio de alguns funcionários de confiança dentro da Casa Branca e diplomatas que iam e vinham debaixo do nariz do Departamento de Estado, e finalmente negociaram o acordo com muita, muita rapidez (foi assinado em Moscou em 5 de agosto de 1963). Quando foi anunciado, seu Departamento de Estado e o Pentágono não reagiram com uma revolta aberta. Mas o Pentágono estava fazendo pressões no Congresso para anular esse tratado contra seu chefe, o Comandante-em-Chefe. E acredito que cerca de 80% dos estadunidenses inicialmente se opuseram ao tratado.

 


Presidente Kennedy na American University de Washington DC
 (Foto: Reprodução | American University de Washington)

 

Mas ele estava determinado em fazê-lo passar. E discurso que ele fez percorreu o país. Foi um processo que revirou o país inteiro. O discurso o colocou naquele caminho que ele depois seguiu, foi a lugares onde não tinha apoio político, foi para o sul, foi para os estados do Oeste, participou e proferiu palestras no Tabernáculo Mórmon em Salt Lake City que não apoiava a sua presidência, mas encontrou um grande apoio nas ruas de todos os estadunidenses por ter tornado isso possível. Aparentemente, o aparato de inteligência e as cúpulas militares queriam a guerra, mas o povo estadunidense não, e queria acabar com ela.

 

 

E com esse discurso, Kennedy fez algo extraordinário, algo que nunca havia sido feito antes. Para mim, foi o seu discurso mais importante e um dos discursos mais importantes da história dos EUA. E o que ele fez, o que foi tão insólito naquele discurso, foi falar ao povo estadunidense e pedir-lhes que se colocassem no lugar dos russos. Todo mundo estava fazendo o oposto naquele período, demonizando e difamando os russos. E ele disse: “Não, temos que nos colocar no lugar deles, no lugar do nosso adversário. Se queremos a paz, temos que fazer isso. Essa deve ser a atitude de norma." E naquela época o senso comum, o pressuposto dominante para a maioria dos estadunidenses (eu nasci nove anos após o fim da Segunda Guerra Mundial) era que os Estados Unidos haviam vencido a guerra e agora justamente deviam dominar a paz.

E ele disse algo muito, muito diferente do que costumava se falar nos EUA, do que falavam os estadunidenses, algo que desafiava esse tipo de suposição patriótica. E ele disse: “Não, na realidade, foram os russos que venceram a guerra. Enfraqueceram Hitler e nos possibilitaram marchar sobre Berlim." E falou sobre o sofrimento dos russos durante a guerra, disse que se devia legitimar suas preocupações pela segurança, o que ninguém estava fazendo. Qualquer exercício militar dos russos naquela época era descrito como agressão. E o que ele disse aos estadunidenses foi: "Não, eles têm preocupações legítimas de segurança, como nós, e precisamos entender essas coisas."

E lembrou aos estadunidenses o sofrimento que os russos tinham suportado durante a guerra, um sofrimento inimaginável. Um em cada sete russos foi morto na Segunda Guerra Mundial. Ele disse: "Suponham" (ele pediu aos estadunidenses que imaginassem isso) "que todo o país, que todas as cidades da Costa Leste até Chicago tivessem sido reduzidas a escombros, que as florestas, os campos tivessem sido queimados". E ele disse que foi isso que aconteceu com a Rússia durante a guerra. “Isso é o que eles sacrificaram por nós, então eles têm preocupações legítimas de segurança para garantir que isso nunca mais volte a acontecer”. E aquele discurso abalou o povo estadunidense, que acabou apoiando ele. Aquele foi um dos tratados ratificados mais rapidamente na história estadunidense. Falo aqui hoje porque o mundo está novamente em uma encruzilhada, como na época do meu tio. As tensões nucleares estão em um nível extremo e perigoso, como em seu tempo. Temos uma oportunidade única, não apenas de aliviar essas tensões, mas para tomar um caminho radicalmente diferente, um caminho rumo à paz.

 

 

O empenho de meu tio pela paz rendeu frutos com o Tratado de Proibição de Testes Nucleares de agosto de 1963. Mas seu assassinato naquele novembro desviou a nação para outro rumo. Seus sucessores lançaram uma guerra após a outra, juntamente com uma expansão incessante do nosso exército. Alguns a chamaram de “guerra infinita”. Os EUA antigamente se apresentavam como uma nação pacífica. De fato, os nossos fundadores que escreveram a Constituição disseram que os EUA acreditavam que a democracia fosse incompatível com um Império no exterior, disseram que se tentássemos ser uma nação imperial no exterior, nos tornaríamos um estado de vigilância, um estado de guarnição, um estado policial em casa, e que também destruiríamos a nossa economia: a estaríamos secando, justamente como aconteceu com todos os Impérios. Cada Império se dissolve sozinho pela expansão do exército, pela expansão de suas forças armadas no exterior, e os fundadores sabiam disso. John Quincy Adams falou por todos eles quando disse: "Os EUA no exterior não devem procurar monstros para destruir". Hoje eu quero evocar aquela lembrança, pois esta guerra infinita que tanto drenou a vitalidade de nossa nação agora ameaça mergulhar o mundo no horror indescritível do Armagedom nuclear. E estou falando, obviamente, da situação na Ucrânia.

Eu abomino a brutalidade da Rússia, a sangrenta invasão daquela nação. Nós devemos entender que também o nosso governo contribuiu para tais circunstâncias por meio de repetidas provocações deliberadas à Rússia. Desde a década de 1990, administrações democratas e republicanas empurraram a OTAN para as fronteiras da Rússia. Violaram a nossa solene promessa do início dos anos 1990, quando prometemos que se a Rússia fizesse essa enorme concessão de retirar 400.000 soldados da Alemanha Oriental, permitindo assim a unificação da Alemanha sob um exército da OTAN, um exército hostil, teríamos nos empenhado a não mover a OTAN de uma polegada para o leste.

 

 

James Baker deu essa garantia, assim como representantes do governo britânico e muitos, muitos outros. E, no entanto, hoje colocamos a Rússia à prova. Não movemos a OTAN uma polegada para o leste, mas mil milhas e 14 nações. Cercamos a Rússia com mísseis e bases militares, algo que nunca teríamos tolerado se os russos tivessem feito isso conosco. E há as declarações de nossos expoentes de governo e os Think Tanks que estabelecem os objetivos para a guerra na Ucrânia: a mudança de regime na Rússia, a derrubada de Vladimir Putin. Foi basicamente isso que o presidente Biden disse: “Este é o nosso propósito na Ucrânia, a desarticulação, o esgotamento do exército russo e o desmembramento da Federação Russa”. Nenhum desses objetivos tem a ver com ajudar a Ucrânia, o que obviamente foi o pretexto para o nosso envolvimento na guerra. Foi então que nossos líderes nos disseram que estávamos lá em uma missão humanitária, mas desde então vimos que há uma agenda geopolítica muito mais ampla e que a Ucrânia é apenas um peão em uma guerra por procuração entre Estados Unidos e Rússia.

Como adolescentes jogando World of Warcraft (o videogame jogado no mundo inteiro), esses belicistas que estão presentes na liderança dos Estados Unidos, bem como nos jogos e cenários de guerra, fingem que uma guerra nuclear possa ser vencida. Essa é uma mentira perigosa, é uma ilusão que o secretário de defesa do meu tio, Robert McNamara, chamava de psicose de massa. Esses indivíduos não apreciam o que John Kennedy havia entendido quando falou sobre a guerra nuclear: "Tudo o que construímos, tudo pelo que trabalhamos, seria destruído nas primeiras 24 horas com uma única explosão nuclear".

Vocês podem imaginar a consequência de um uso completo de energia nuclear? O presidente Kennedy fez isso especificamente quando disse: “Enquanto defendemos os nossos interesses vitais, as potências nucleares devem evitar confrontos que coloquem um adversário diante da escolha entre uma retirada humilhante e a guerra nuclear. Trilhar esse caminho na era nuclear representaria o fracasso de nossa política ou um desejo coletivo de morte para a humanidade”. Deixe-me dizer novamente: as potências nucleares devem evitar esses confrontos que colocam um adversário diante da escolha entre uma retirada humilhante e uma guerra nuclear. O fato vergonhoso é que, nas últimas duas décadas, os incentivadores de uma política externa militarista na liderança dos EUA fizeram exatamente o oposto. Sua estratégia beligerante de confronto máximo se estende além da Rússia para a China, com o mesmo grupo dentro de nosso governo que espera usar Taiwan como um peão geopolítico, da mesma forma que usaram o Iraque e a Síria e agora a Ucrânia, perseguindo uma orgulhosa fantasia de dominação do mundo por meio de um embate violento.

 

 

Vamos agora deixar a geopolítica por um momento e examinar a questão da guerra e da paz um pouco mais profundamente. O presidente Kennedy havia entendido que a paz começa com as nossas atitudes e as nossas convicções de base. Ele falou sobre a futilidade de esperar passivamente a vida após a morte para ser iluminados. “Nós”, disse ele, “devemos examinar as nossas atitudes, como indivíduos, como nação, pois a nossa atitude é tão essencial quanto a de qualquer outro”. E deveríamos”, disse ele, “começar olhando para dentro de nós mesmos”. Sim, em 1963, um político realmente disse isso, um líder político expressou o que hoje seria considerado uma máxima espiritual ou um princípio espiritual; vamos pegar aquele apelo de 60 anos atrás e pedir aos estadunidenses, a todos nós, para reexaminar a nossa atitude.

Fomos mergulhados em um discurso de política externa que fala apenas de adversários e ameaças, aliados, inimigos e domínio. Nós nos tornamos dependente de narrativas do bem contra o mal, como nos quadrinhos, que apagam a complexidade e nos cegam de modo a não reconhecer legítimos interesses culturais e econômicos e legítimos problemas de segurança de outros povos e de outras nações. Interiorizamos e institucionalizamos o reflexo da violência como resposta a qualquer crise. Tudo vira guerra: guerra às drogas, guerra ao terror, guerra ao câncer, guerra às mudanças climáticas.

 

 

Essa maneira de pensar nos predispôs a travar guerras sem fim no exterior, guerras e golpes de Estado, bombas e drones, operações de mudança de regime e de apoio a paramilitares, invasores, ditadores. Nada disso nos tornou mais seguros, e nada disso tornou a nossa liderança ou nossa autoridade moral mais ilustre. Mais importante, devemos nos perguntar: é realmente isso o que nós somos? É isso que queremos ser? É isso que os fundadores estadunidenses tinham imaginado?

Aqui está outro princípio espiritual ao qual meu tio também se referia quando disse: “Ambos estamos envolvidos em um círculo vicioso e perigoso, com a suspeita de um lado que cultiva a suspeita do outro, e novas armas geram mais armas para as combater". Quando mantemos os outros na crença de que sejam inimigos implacáveis, tendem a se moldar de acordo com nossa percepção deles, é uma profecia, uma previsão que se autorrealiza, que lança todas as partes em um círculo vicioso de suspeitas, contra o qual meu tio tinha nos colocado em guarda. Ao reservar a eles o papel de inimigos, damos poder aos "durões" em países como Rússia, China, Cuba, Irã, atraímo-los para o drama do conflito, para o drama da provocação e contraprovocação, de arma contra arma. É de se admirar que, pelo fato dos EUA terem desencadeado a violência em todo o mundo, a violência também nos tenha dominado na nossa própria nação? Não veio de uma invasão, veio de nós mesmos, de dentro de nós. Nossas bombas, nossos drones, nossos exércitos são impotentes para deter a violência armada nas nossas ruas, nas escolas, na violência doméstica, nas nossas casas.

Vejo aqui a mesma coisa que tanto meu pai quanto Martin Luther King viram na Guerra do Vietnã. Eles tinham visto aquela guerra e acreditaram que não poderíamos fazer uma guerra no exterior sem trazer aquela violência de volta para casa, sem reproduzi-la nas nossas ruas, nas nossas atitudes, nas nossas comunidades. A violência praticada no exterior é inseparável da violência doméstica, ambas são aspectos de uma orientação de base e de um conjunto de prioridades básicas. Ao travar guerras sem fim, desencadeando guerras sem fim no exterior, negligenciamos os fundamentos de nosso próprio bem-estar. Temos uma deterioração da saúde física e mental, temos uma infraestrutura econômica decadente, temos um povo desmoralizado e pessoas desesperadas, temos toxinas no nosso ar, no nosso solo e nas nossas mentes. Esses são os custos da guerra. Quais serão os custos da paz? Eles terão que ser curativos de todos os sintomas do declínio dos EUA. Nenhum deles está acima da nossa capacidade de cura.

 

 

Podemos levas os EUA de volta à fantástica vitalidade da era original de Kennedy. Meu tio disse a propósito: "Nenhum problema humano está acima dos seres humanos." Ele nos advertiu que “muitos de nós pensamos que a paz é impossível, muitos de nós pensamos que é irreal. Essa é a perigosa e derrotista convicção que leva à conclusão de que a guerra é inevitável, que a humanidade está condenada, que somos acorrentados por forças que não podemos controlar. Não devemos aceitar esse ponto de vista. Nossos problemas são criados pelo homem e, portanto, podem ser resolvidos pelo homem”. E como podemos fazer isso? Efetivamente, começando por substituir o círculo vicioso da desconfiança pelo círculo virtuoso da construção da confiança, invertendo essa escalada. É preciso coragem para dar o primeiro passo em direção à paz. Vamos ver o que acontece quando paramos com a provocação, a escalada, e oferecemos um ramo de oliveira em seu lugar. Cada passo que faremos convidará aqueles que chamamos de nossos adversários a dar um passo a mais. Talvez a Rússia não responderá, talvez não responderão de modo gentil ou não respondam de jeito nenhum, mas pelo menos saberemos que tentamos. E o mundo inteiro também o saberá. Esse passo resulta de uma mudança de atitude e da coragem.

Falando no meio da Guerra Fria, John Kennedy nos pediu para "não ver apenas o ponto de vista distorcido e desesperado do outro lado", ele nos pediu para não prever o conflito como inevitável, mas a acomodação como possível, e não ver a comunicação como nada mais do que uma troca de ameaças. Hoje, os Estados Unidos praticamente romperam todos os contatos diplomáticos com a Rússia, de modo que a comunicação efetivamente se tornou pouco mais do que uma troca de ameaças e insultos. Roosevelt se encontrou com Stalin, Kennedy se encontrou com Khruschev, Nixon se encontrou com Brezhnev, Reagan se encontrou com Gorbachev. Biden não pode se encontrar com Putin? Fizemos ou podemos pelo menos iniciar uma conversa?

 

 

Agora temos um ponto de vista tão distorcido e desesperado do outro lado que nem mesmo vamos nos falar? Ver o conflito como inevitável tornou-se o fundamento da política externa dos Estados Unidos. Duas ou três décadas atrás, foi o choque de civilizações entre o Islã e o Ocidente. Hoje, uma quantidade de think tanks que são financiados pela indústria de defesa, exortam-nos a nos preparar para a inevitável guerra contra a China. Uma guerra só é inevitável se nós a tornarmos inevitável. A guerra na Ucrânia? Poderia ter sido evitado até no último momento, até que, na primavera de 2022, funcionários dos EUA enviaram Boris Johnson a Kiev para impedir as negociações de paz entre a Ucrânia e a Rússia, um acordo de paz que eles já haviam assinado. E não só isso; a Rússia já havia começado a retirar suas tropas da área de Kiev. Agora nós sabemos disso. A guerra, esta guerra, não era inevitável. Porém havia sido criada uma mentalidade implacável de guerra e de domínio. No auge da Guerra Fria, Kennedy estava disposto a ver para além dos estereótipos predominantes da Rússia e de seu líder Kruschev como a epítome do mal.

Os dois homens, naquele momento, trocaram entre si 26 cartas altamente pessoais e privadas. Nós tínhamos um russo, um espião da KGB e do GRU que vinha à minha casa. Eu era um garoto e sabíamos que ele era um espião. Era a época em que estavam saindo os filmes de James Bond e nós considerávamos algo meio romântico e perigoso ter um verdadeiro espião russo em nossa casa. Era um homem muito fascinante, baixo e extremamente forte, fazia competições de subida nas cordas com meu pai e competições de flexão. Sabia fazer a dança do cossaco e nos ensinou a dançá-la. E tinha um grande senso de humor, nos fazia rir. Meu pai e minha mãe gostavam muito de sua companhia. Eles o haviam encontrado pela primeira vez na embaixada russa, em uma festa. O Departamento de Estado estava horrorizado por termos deixado um espião da KGB entrar em nossa casa. Mas durante esse período, meu tio queria falar diretamente com Kruschev. A CIA não sabia nada sobre o que estava acontecendo no Kremlin e sempre pensavam no pior. Mas ele conhecia bastante sobre política para saber que não poderia ser tudo tão ruim, e por fim Kruschev lhe enviou a primeira dessas cartas escondidas no New York Times. E essas cartas escapavam do controle do Departamento de Estado.

 

 

Tanto meu tio quanto Kruschev perceberam durante essa correspondência que ambos estavam cercados por um aparato de inteligência e dos vértices militares que consideravam a guerra como inevitável e desejável. E, portanto, viram que se quisessem manter a paz, precisariam conversar entre si, porque não podiam confiar nas pessoas ao seu redor, para receber conselhos fortes e disciplinados. E meu tio e Kruschev montaram uma linha direta, que nunca havia existido antes. Quando eu era garoto, havia um telefone vermelho e outro na Casa Branca. Tínhamos que ficar longe daquele telefone, e fizemos isso, porque era isso que nos diziam: nunca toque naquele telefone. Mas sabíamos que se o tocássemos, se pegássemos aquele telefone, Kruschev atenderia. E os fios daquele telefone ainda hoje podem ser vistos por toda a casa do meu irmão, que naquela época era a Casa Branca de verão.

Mas eles sabiam que precisavam conversar entre si se quisessem salvar o mundo, como diziam. Naquela primeira carta, Kruschev escreveu: “Estamos todos em uma arca e não podemos construir outra. A terra é uma arca e devemos, devemos preservá-la”. E a questão agora é: estamos dispostos a fazer algo assim hoje, ou vamos ficar presos naquela história de superioridade que contamos um ao outro, onde os EUA são categoricamente bons e nossos adversários são irremediavelmente maus? Se ficarmos presos nisso, todas as outras nações também ficarão, e não é apenas os EUA que caem nesse pensamento simplista: mocinhos, bandidos. Esse é um exemplo que nós demos para o mundo inteiro. Não admira que tenha sido replicado em todos os lugares, entre Israel e Irã, entre Índia e Paquistão, entre xiitas e sunitas, entre judeus e árabes, entre hindus e muçulmanos, entre direita e esquerda, entre pró-vida e pró-escolha, entre fatos e qualquer fato. Esse pensamento tribal de "nós contra eles" está nos destruindo e está destruindo o nosso país e está destruindo o mundo.


Então, esses são os custos da guerra. E quando dermos o primeiro passo em direção à paz, nos tornaremos novamente um verdadeiro líder mundial, um líder moral, uma autoridade moral. E o nosso exemplo não exige muito, é só o primeiro passo, e as pessoas vão começar a olhar para os EUA de forma diferente, como nos olhavam quando meu tio era presidente.


Meu tio estava tão determinado que, quando um de seus melhores amigos, Bretton Bradley, lhe perguntou o que ele queria como epitáfio em sua lápide, respondeu: "Manteve a paz". E Bradley pediu que ele explicasse, e ele disse: "O principal trabalho de um presidente estadunidense é manter o país fora da guerra". Isso foi o que ele disse. E durante seu tempo na Casa Branca, ele era cercado por falcões militares e pelo aparato de inteligência e altos oficiais que queriam, que constantemente o exortavam a entrar em guerra, no Laos, em Berlim, em Cuba, no Vietnã, mas ele nunca enviou uma única força de combate ao exterior durante seu mandato. No final, eles queriam que ele enviasse 250.000 soldados para o Vietnã, e ele acabou enviando 16.000 conselheiros que não tinham, de acordo com as regras de engajamento, a permissão para entrar em combate. E ele fez com que um homem negro chamado James Meredith fosse para a Universidade do Mississippi, que praticava a segregação racial. Um mês antes de morrer, em outubro de 1963, ele soube que um Boina Verde havia morrido no Vietnã e pediu a um de seus assessores que lhe desse uma lista completa das baixas. E o ajudante voltou com a lista das vítimas e ele disse: "Demais". Assinou a Ordem de Segurança Nacional 263 para o regresso, a partir do mês seguinte, a partir de novembro.

E aí ele morreu. E no mês seguinte, uma semana após sua morte, aquela ordem foi retirada e o presidente Johnson acabou enviando 250.000 soldados e, por fim, 570.000. e 56.000 nunca mais voltaram para casa, incluindo meu primo George, que morreu na Ofensiva do Tet. E matamos um milhão de vietnamitas. E começamos a trilhar esse caminho com o complexo industrial militar. No entanto, o presidente Eisenhower havia nos avisado, uma semana antes, ou melhor, três dias antes de meu tio assumir o cargo. No melhor discurso que já fez e um dos mais importantes da história, ele advertiu os EUA que, se não tomassemos medidas para evitá-lo, o nascente complexo militar-industrial devoraria a nossa democracia, destruiria os valores estadunidenses por dentro. E meu tio sabia disso, conhecia aquele discurso, e passou os três anos, 'mil dias de mandato', lutando contra a ascensão do complexo industrial-militar. Mas depois de sua morte, trilhamos aquele caminho, e Eisenhower havia previsto isso. E é aqui que nos encontramos hoje, e é hora de inverter o curso. Está na hora.

Como eu disse antes, a paz vem de uma mudança de atitude. Contra a mentalidade bélica que lança o mundo num drama de inimigos, ameaças e mentiras, ergue-se a visão baseada na natureza humana. Quando você vê os homens como fundamentalmente egoístas e nações inteiras como fundamentalmente más, tudo o que você tem a disposição para mudar seus comportamentos são ameaças e corrupção. A paz vem de uma atitude diferente, começa por olhar dentro dos outros e dentro de nós mesmos, o que não é egoísta, mas é corajoso, generoso e idealista e tem boas intenções. E não estou dizendo que deveríamos ignorar os elementos fundamentais da natureza humana ou os perigos do mundo. Mas se isso é tudo o que vemos, ficaremos presos para sempre na mentalidade da guerra, e é aqui que o complexo militar-industrial quer nos manter, e nesse caso colheríamos para sempre seus frutos venenosos.

 

 

Para traçar um curso para o futuro da política militar da nossa nação, voltarei mais uma vez às palavras de John F. Kennedy. Ele disse: “As armas estadunidenses não são de provocação, são cuidadosamente controladas, são projetadas para desencorajar e capazes de um uso seletivo. Nossas forças militares estão empenhadas com a paz e disciplinadas no autocontrole. Nossos diplomatas são treinados para evitar provocações desnecessárias e hostilidade puramente retóricas".

A atual administração ficará no poder por mais um ano e meio, mas o perigo de uma escalada imprudente e do risco nuclear é real e presente. Portanto, invoco a nossa liderança atual a adotar as máximas do presidente Kennedy e iniciar a reduzir a escalada imediatamente. Convido-a a cumprir a declaração de John Kennedy. Convido o establishment militar a exercer disciplina e autocontenção. Apelo ao Departamento de Estado para evitar inúteis provocações e retóricas.

 

 

Mas isso é o mais importante de tudo: convoco todos os estadunidenses a se unirem em um novo movimento pela paz, para fazer suas vozes serem ouvidas, rejeitar a loucura da escalada e não mais celebrar um presidente da guerra, mas um presidente que mantém a paz.

E a que tipo de paz estou me referindo? Concluo com outro fragmento de sabedoria de meu tio: “Que tipo de paz buscamos? Não uma paz estadunidense imposta ao mundo por meio das armas de guerra estadunidenses. Não a paz da tumba ou a segurança de um escravo. Estou falando de uma paz verdadeira, o tipo de paz que torna a vida na Terra uma vida que vale a pena ser vivida. Do tipo que permite a povos e nações crescer, ter esperança e construir uma vida melhor para si e para seus filhos. Não simplesmente uma paz para todos os homens e mulheres, não apenas uma paz para o nosso tempo, mas uma paz para sempre".

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