03 Mai 2018
"Como jovem advogado "implacável" e herdeiro de uma dinastia política, Kennedy trabalhou para o senador Joseph McCarthy, demagogo anticomunista, e para uma comissão do Congresso responsável por investigar a máfia; como procurador-geral dos Estados Unidos aprovou as escutas telefônicas às chamadas de Martin Luther King Jr.", escreve John Anderson, crítico de televisão do Wall Street Journal e colaborador do New York Times, em artigo publicado por America, 27-04-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Donald Trump nos faz levar tanto na cabeça que talvez os estadunidenses esqueçam a atemporalidade dos problemas atuais. Ou que a república sempre foi um enredo subdividido de partidos em ebulição. Ou que já houve espaço para um político tão apaixonante e inspirador quanto Kennedy.
Parece ser necessário mencionar Trump porque o momento e os sentimentos do documentário magnífico de Dawn Porter, dividido em quatro partes e disponível na Netflix, seriam simplesmente trágicos — e em vez de trágicos, mais irritantes, e talvez mais motivacionais— se as condições atuais dos Estados Unidos fossem diferentes da realidade. No mínimo, o âmbito da história de Kennedy — a jornada de um herói, uma alegoria agostiniana — possui uma grandeza que está em falta em Washington. Claro, muitas coisas alcançam a grandeza quando se espera 50 anos, que é o tempo que faz desde o assassinato de Kennedy, no Hotel Ambassador em Los Angeles, pouco depois de vencer as eleições primárias da Califórnia Democrata de 1968.
Um dos maiores méritos de Porter (ela tem participado de vários filmes abordando questões sociais, como "Gideon’s Army", sobre defensores públicos no extremo sul dos Estados Unidos) é o sentido de urgência e atualidade do filme. Todo o material de arquivo parece fresquinho; grande parte é colorida, o que ajuda muito; a música contagiante de Paul Brill flerta com os anos 60 sem ser datada. Outro dispositivo significativo é a narração da história de Kennedy como uma narrativa de conversão — duas narrativas, como depois descobrimos.
O argumento de que a raiz da fibra moral de Kennedy era o catolicismo convicto de sua família aparece no início do primeiro episódio ("Uma nova geração"). No episódio 3, durante uma missa ao ar livre para trabalhadores migrantes da Califórnia, Kennedy é visto pegando a comunhão de uma cesta de pães consagrados. Ficam claros os paralelos com Cristo, e é uma das muitas cenas extremamente comoventes. Mas, como já sugerimos, é com Santo Agostinho que Kennedy mais se parece, mesmo que sua transformação diga respeito à sua visão política do mundo, e não aos pecados da carne.
Como jovem advogado "implacável" e herdeiro de uma dinastia política, Kennedy trabalhou para o senador Joseph McCarthy, demagogo anticomunista, e para uma comissão do Congresso responsável por investigar a máfia; como procurador-geral dos Estados Unidos aprovou as escutas telefônicas às chamadas de Martin Luther King Jr. Comprometido com os direitos civis, ele acompanhou — contra seus instintos políticos — quando seu irmão, Jack, interveio para liberar King de uma cadeia em Atlanta durante a campanha presidencial de 1960. Mas após o assassinato do irmão — momento a partir do qual uma certa tristeza nunca mais deixa os olhos de R.F.K. —, ele evolui, gradualmente, tornando-se militante e progressista social.
Apesar de nunca ter gostado muito de Lyndon Johnson, sua segunda metamorfose ocorre durante a campanha de 1968, na qual o favorito Johnson possivelmente seria a escolha do Partido Democrata, a campanha de Eugene McCarthy foi insurgente e Kennedy viu-se como a última esperança tanto para acabar com a Guerra do Vietnã como para manter algum Richard Nixon fora da Casa Branca. Apesar de a candidatura à presidência geralmente não ser um ato de sacrifício, para Kennedy foi — embora ninguém pudesse prever até que ponto.
Porter sabe usar seus recursos para alcançar o máximo impacto emocional possível. Se grande parte do que vemos parece novo, pode ser porque a filmagem é muito íntima — não noticia, mas expressa personalidades, relacionamentos e a atmosfera. Porter usa closes mais longos do que a maioria dos cineastas de não ficção se atreveria, mas sabe quando e por que fazê-lo. Ela fala com as pessoas certas, pessoas que têm recordações vívidas de Kennedy e da campanha de 68, como They include William Vanden Heuvel, William Arnone, Pete Hamill, Marion Wright Edelman e Dorothy Huerta. Muitas outras aparecem nos vídeos, como o assassino Sirhan Sirhan durante a audiência de liberdade condicional de 2011. Talvez ainda mais pungente seja John Lewis, que não consegue interromper as lágrimas ao recordar a morte de seu amigo, logo depois da de Luther King.
Assim como a morte de J.F.K. encerra o primeiro episódio, a morte de R.F.K. termina o terceiro. O quarto episódio chama-se "Fazer justiça por Bobby", que deve ser uma ironia. Toda a investigação do assassinato do departamento de polícia de Los Angeles é retratada como precipitada, deficiente e com cunho político. Paul Schrade, que foi sindicalista e também era confidente de Kennedy — que foi uma das outras cinco pessoas feridas durante o assassinato — continua procurando respostas para questões não resolvidas. (Ele testemunhou na última audiência pela liberdade condicional de Sirhan, em 2016.) É curioso ser necessário cuidado com os spoilers numa história de 50 anos atrás. Basta dizer que Porter conseguiu colocar vida, sangue e urgência em uma aula de história que parece tão urgente quanto o amanhã.
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Agora na Netflix: a heroica jornada de Bob Kennedy - Instituto Humanitas Unisinos - IHU