04 Julho 2023
"[...] hoje Putin, em dificuldade, sente a necessidade de encontrar consenso e aprovação junto aos cristãos ortodoxos das infindáveis terras russas e faz um gesto sempre desejado pela Igreja: o dom do ícone da Santíssima Trindade por Andrei Rublev", escreve Enzo Bianchi, monge italiano e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por La Repubblica, 03-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sabemos, e sabemos por experiência histórica, que quando entre poder político e religião existe um acordo ou até mesmo uma sujeição de um ao outro sujeito social, muitas vezes ocorre uma troca de presentes, ou melhor, de favores. É claro que nesse caso até os presentes mais preciosos são um engano.
Na história da Rússia pode-se dizer que quase sempre os dois poderes tiveram necessidade um do outro, ainda que tenha havido períodos de perseguição da Igreja por parte do Estado, como durante o cativeiro comunista da Revolução de Outubro até a implosão da União Soviética com a consequente queda da ideologia ateísta. Mas não devemos esquecer que mesmo naquela hora de perseguição, quando em 1942 o estado estava profundamente ameaçado pela guerra, o ditador Stalin sentiu a necessidade de devolver as igrejas confiscadas e reabrir os mosteiros fechados, ganhando assim o favor da Igreja Ortodoxa.
Também hoje Putin, em dificuldade, sente a necessidade de encontrar consenso e aprovação junto aos cristãos ortodoxos das infindáveis terras russas e faz um gesto sempre desejado pela Igreja: o dom do ícone da Santíssima Trindade por Andrei Rublev, um presente que o patriarca Kirill aceita com um agradecimento que confirma o apoio e a aprovação até agora dados ao governo de Putin.
Desde que Putin está no poder, ele se professa ortodoxo e se mostra como uma espécie de novo Carlos Magno, protetor da igreja, financiando a construção de muitos edifícios eclesiais, onde a igreja ortodoxa está presente.
Certamente alguns podem ficar escandalizados diante de uma troca desse tipo, julgada por nós ocidentais perversa, como faz Tomaso Montanari, mas para os crentes ortodoxos esse julgamento não tem razão de ser diante do que se considera um direito e uma grande graça. De fato, o ícone da Trindade, pintado pelo santo monge Rublev por volta de 1422 para o Mosteiro da Trindade, a Lavra fundada por São Sérgio de Radonege, é o "ícone dos ícones", um apocalipse, uma revelação da beleza de Deus, uma exegese do grande e profundo mistério da Tri-unidade de Deus, círculo de relações de Amor e fonte de todo amor.
Para os ortodoxos e para todos os crentes, o evento extraordinário é o seu retorno a ser ícone de culto e não apenas um objeto de museu, uma obra de arte como era na Galeria Tret'jakov. Há riscos no transporte de uma obra de arte tão frágil como um ícone de madeira pintado há seiscentos anos, mas todas as garantias também foram dadas. Simples fiéis, monges e monjas, regozijam-se com esse retorno do ícone à Lavra de São Sérgio e peregrinações já estão previstas de toda a Rússia porque esse ícone está nas suas consciências, como Tarkovsky intuiu em seu filme
Andrei Rublev, entregou-lhes de volta a sua história entre guerra e paz, entre perseguição e liberdade. Mas mesmo essa disputa sobre o retorno do ícone ao mosteiro indica claramente que nós e os russos não somos contemporâneos.
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O dom do ícone. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU