Ouro e sangue. Artigo de Tomaso Montanari

Cristo Corona di Spine (Foto: Beato Angelico | Wikimedia Commons)

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10 Abril 2023

Não se pode deixar de pensar que o que fez Jesus suar sangue deve ter sido, mais do que qualquer outra coisa, a visão simultânea das atrocidades que seriam perpetradas em seu nome – por séculos e séculos, até nós – por aqueles que se diriam cristãos: na mais terrível das traições.

O comentário é do historiador da arte italiano Tomaso Montanari, professor da Universidade Federico II de Nápoles. O artigo foi publicado no caderno Il Venerdì, do jornal La Repubblica, 07-04-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o artigo.

“Eis o homem!” (João 19,5). Flagelado, coroado de espinhos, vestido de púrpura por escárnio: é assim que Pôncio Pilatos mostra Cristo à multidão. Eis aquele homem: eis o ícone vivo de cada Homem torturado pelo poder.

Nesse painel fora de contexto, que talvez foi parar em Livorno após os saques napoleônicos do Vaticano, o pincel místico do Beato Angélico ascende a um registro inusitado.

Guido di Pietro, chamado de Beato Angélico, “Rosto de Cristo coroada de espinhos”, têmpera sobre madeira, aprox. 1445-1550, Catedral de Livorno (Foto: Wikimedia Commons)

Talvez motivado pela visão de Verônica (a imagem do rosto de Cristo impressa milagrosamente no lenço com que Verônica o enxugou durante a subida ao Calvário, conservado em São Pedro), pela leitura das meditações de seu coirmão dominicano Antonino Pierozzi (que exortava a imaginar a “face” do Cristo da Paixão, com os “olhos cheios de lágrimas e de sangue”), pelas visões místicas de Brígida da Suécia (que também dizia ter visto aqueles olhos vermelhos de sangue) e certamente conhecendo, no original ou em cópia, um dos rostos de Cristo do grande flamengo Jan Van Eyck, Angélico pinta uma imagem avassaladora.

A nitidez do esmalte da cor, a refinada preciosidade das vestes, a consistência material daquela auréola de ourives, o cinzelamento de cada mecha do cabelo: todo esse esplendor é funcional para aumentar a impressão dramática de uma máscara inédita de sofrimento. A Paixão de Cristo, conta-nos o pintor angelical, envolveu um corpo concreto demais: foi um massacre.

E, se esse sangue certamente escorrer pelas agulhas da coroa plantadas até o cérebro, escrevera Antonino, vendo-o é impossível não pensar na página do Evangelho que narra o que havia ocorrido na noite anterior, depois da última ceia: “Chegando ao lugar, Jesus disse para eles: ‘Rezem para não caírem em tentação’. Então, afastou-se uns trinta metros e, de joelhos, começou a rezar: ‘Pai, se queres, afasta de mim este cálice. Contudo, não se faça a minha vontade, mas a tua!’. Apareceu-lhe um anjo do céu, que o confortava. Tomado de angústia, Jesus rezava com mais insistência. Seu suor se tornou como gotas de sangue, que caíam no chão” (Lucas 22,40-44).

É aí que inicia a paixão, a agonia: ou seja, a luta. Não só contra o humaníssimo medo de morrer, mas contra o acúmulo de pecados de cada ser humano de todos os tempos, que Cristo vê naquele momento um a um, enquanto os carrega sobre seus ombros.

E não se pode deixar de pensar que o que o fez suar sangue deve ter sido, mais do que qualquer outra coisa, a visão simultânea das atrocidades que seriam perpetradas em seu nome – por séculos e séculos, até nós – por aqueles que se diriam cristãos: na mais terrível das traições.

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