01 Julho 2023
"Ele, testemunha do amor de Deus e da esperança do Reino, se envolve com misericórdia na vida das pessoas e se empenha em cuidar de suas feridas e curá-las. Esta deveria ser uma atividade fundamental da Igreja: preocupar-se com o sofrimento das pessoas e trabalhar pela sua felicidade, ou seja, ser uma 'religião sensível à dor'", escreve Francesco Cosentino, teólogo, professor de Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma e trabalha na Secretaria de Estado do Vaticano, em artigo publicado por Settimana News, 10-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A verdade cristã não é um conteúdo teórico estático, independente do processo atribulado e, ao mesmo tempo, fascinante da história humana; pelo contrário, o coração do cristianismo é a revelação de um Deus que se apresenta como Deus-conosco, que se imerge na humanidade, que tem rosto e carne na história de Jesus, o Cristo.
Isso significa, porém, que o cristianismo só pode se expressar e se realizar dentro dos horizontes culturais e históricos em que se encarna, como uma proposta que não se conserva fora do tempo, mas que se concretiza na relação com a cultura e com as culturas, acolhendo seus aspectos fundamentais com atitude de simpatia e, ao mesmo tempo, propiciando uma crítica profética sobre aquelas realidades que atentam contra a dignidade do homem e sua legítima aspiração a uma vida diferente, numa sociedade justa, pacífica e fraterna.
Hoje é mais urgente do que nunca uma nova leitura teológico-pastoral da realidade em que vivemos. Não somos os últimos cristãos e, no entanto, as mudanças culturais das últimas décadas colocam em crise muitos dos nossos modelos e estilos de "expressar" e "realizar" o cristianismo. Enquanto foi se apagando a euforia do mundo moderno e, mais ainda, se desvaneceu o tempo da cristandade, quando parecia existir uma maior integração entre a fé e o meio circundante, abriu caminho uma nova fase cultural que, pelo menos no Ocidente, se configura como um contexto pós-cristão[1] e ao mesmo tempo pós-ateu.[2]
Portanto, ainda faz sentido falar de Deus? De qual Deus? Como? Ou, nas palavras de Paul Tillich: "a mensagem cristã (especialmente a pregação cristã) ainda é relevante para as pessoas em nosso tempo? E se não for, qual é a causa? E isso se reflete na própria mensagem do cristianismo?”[3]
Precisamos nos questionar sobre o que mudou, especialmente com o fim da modernidade e com o advento da cultura pós-moderna. Quando nos referimos à época moderna, que pode ser situada aproximadamente entre o século XVII e o final do século XIX, o nosso pensamento corre rapidamente para o desenvolvimento das ciências modernas, para o crescimento exponencial do progresso em vários âmbitos da vida e da sociedade e à importância da razão humana que se torna protagonista sobretudo graças ao processo do iluminismo.
Os parâmetros interpretativos mudam consideravelmente: Deus não é mais o centro da ação e da história, mas o homem com suas capacidades e seu progresso, capaz de transformar e manipular as coisas e o mundo pela força da razão e pela eficiência do progresso técnico-científico. A era moderna, portanto, com sua fé na razão e no progresso e a euforia do desenvolvimento tecno-científico, caracteriza-se como um tempo triunfante, cheio de expectativas e perspectivas, repleto de futuro.
Hoje parece evidente, porém, que o projeto eufórico da modernidade com as promessas de salvação e as esperanças de redenção fracassou amplamente. A utopia da época moderna estilhaçou-se sob os golpes de um cepticismo crescente e de um pessimismo desencantado, que têm as suas raízes sobretudo nas tragédias do século XX, entre as quais as duas guerras mundiais e na constatação de que a ciência, o progresso, a tecnologia e os grandes os ideais, ao mesmo tempo em que aportaram efeitos positivos na sociedade e na história, também produziram eventos devastadores, mostraram seu lado ambíguo, tornando-se muitas vezes sistemas totalitários.
A época moderna dá lugar ao tempo da pós-modernidade: é o tempo do desgaste, do homem desanimado e desiludido que prefere habitar o presente sem grandes ideais, sem fazer grandes perguntas sobre a verdade, sem se entregar a grandes projetos. Assim, numa sociedade que, como sabemos, Bauman definiu como "líquida", o homem pós-moderno vive identidades, valores, estilos e práticas que permanecem indefinidas, abertas, móveis e que, sobretudo, são marcadas pela multiplicidade e pluralidade.
As pessoas do nosso tempo e das nossas sociedades atuais vivem na perspectiva de uma redefinição contínua da sua própria vivência e da própria ideia de vida e de sociedade, através de uma verdadeira “contaminação” de pontos de vista diferentes e de uma contínua mistura de aspectos, ideias e valores distintos. Nesse contexto, precisamos de uma nova interpretação da cultura em que vivemos.
O nosso tempo, justamente por sua configuração pós-moderna, não é marcado por um ateísmo polêmico e militante. No entanto, uma crise profunda, que assume mais os contornos do esquecimento, marca a fé cristã, a pertença eclesial, os próprios símbolos do cristianismo e o próprio conteúdo da mensagem cristã.
Estamos perante uma verdadeira “crise de Deus”, manifestada sobretudo por uma espécie de abandono do próprio problema de Deus, de um esmaecimento da inquieta pergunta religiosa: Deus é simplesmente aquele a quem já não nos referimos mais.
Para usar uma metáfora o mais eloquente possível, parece que Deus agora foi colocado às margens da vida e da sociedade, relegado às margens da existência e da consciência; e, no entanto, justamente essa situação poderia representar uma oportunidade a ser aproveitada, pois é a própria fé cristã que coloca Deus "nos confins": um Deus que deixou os céus para cruzar o limiar da história humana, um Deus que habita os confins mais frágeis da existência humana e que, morrendo fora dos muros da cidade, "nos confins", atravessa a fronteira da morte e a ilumina com uma nova vida. Ele, com sua misericórdia e compaixão, anuncia no centro de nossas vidas e de nossa história que renascer é sempre possível, porque todo limite é uma fronteira que podemos superar como um lugar habitado por sua presença e beneficiado por sua passagem.
Portanto, também como Igreja, aceitando o convite que o Papa Francisco nos dirige desde o início do seu pontificado, devemos nos situar sem medo nos confins: colocar-nos no limiar, sair das nossas comodidades e seguranças, iniciar um processo de transformação da nossa mentalidade espiritual e pastoral. A primeira tarefa de uma Igreja que pretende “habitar as fronteiras” do nosso tempo, sem moralismos nem rigidez, é proceder a um novo discernimento da cultura.
Ao mesmo tempo, o cristianismo não se achata à cultura da época simplesmente acolhendo seus impulsos e dimensões; o discernimento implica também um "juízo" que o Evangelho exprime sobre a cultura onde ela se apresenta com visões antropológicas redutoras ou com sinais do mal que, nas suas mais variadas formas, escraviza a pessoa humana e fere a sua dignidade e a sua liberdade. Isso significa que é preciso um cristianismo hospitaleiro para com o contexto, mas, ao mesmo tempo, capaz de criar uma nova cultura, de alargar os horizontes da vida, de acusar o que degrada o homem e os povos, de inaugurar novas formas e novas estilos de convívio, fraternidade e comunhão.
O que é urgente é o discernimento da cultura, ou seja, a capacidade de entrar na história com gentileza e respeito, interpretar a vivência dos nossos destinatários, entrar no campo de suas imagens, de suas linguagens e dos símbolos de suas vidas, tentando descobrir o bem escondido, o trabalho silencioso do Espírito, a presença secreta do mistério divino e, ao mesmo tempo, tentando elevar esse patrimônio e transformar as sombras anunciando a luz do evangelho.
No processo de discernimento da cultura atual, podem-se identificar alguns desafios que caracterizam o nosso tempo. Podemo-nos perguntar: o que está no limiar hoje? Quais são os confins para os quais, como comunidade cristã, devemos nos encaminhar e que implicam um renovado impulso na evangelização?
Certamente o tempo atual é sobretudo um tempo marcado por uma visão secularista da vida. A secularização passou de um nível puramente sociológico e externo para o nível mais profundo da interioridade do homem, de sua visão geral e de seus estilos de vida. Como afirma Charles Taylor, as condições internas que permitem ou impedem o acesso à fé mudaram: [4]o que está em crise é sobretudo a mudança das condições de possibilidade de crer devido à secularização, ou seja, o fenômeno diz respeito à imaginação espiritual.
De fato, a secularização atua hoje em profundidade, restringindo o desejo do homem, apequenando as esperanças que vão além do imediato, condicionando o nosso imaginário interior e, portanto, a nossa interpretação da vida. Nesse horizonte se coloca aquela nova forma de ausência de Deus o que não é um verdadeiro ateísmo, mas, como dissemos, uma espécie de esquecimento, uma indiferença religiosa, uma apatia em relação à questão de Deus. Simplesmente preferimos visitar o mundo, sem perguntas, acostumados à ditadura do consumismo e da pressa, incapazes de espaços de silêncio e relações pessoais verdadeiras e, em tal situação, não há lugar para Deus e para a fé.
Essa condição coloca certos desafios ao cristianismo que deveriam ser enfrentados tanto no plano mais estritamente teológico como no plano eclesial. Em primeiro lugar, diante de uma evolução tão complexa no mundo da consciência pessoal, é necessário reinvestir todas as energias cristãs e eclesiais num renovado anúncio do Evangelho.
A evangelização deve ser recolocada no centro de toda ação espiritual e eclesial. Não se limitando a algumas atualizações das linguagens e outras mediações, mas do empenho de repropor de modo novo a proximidade/vizinhança de Deus que nos foi revelada em Jesus Cristo, como promessa de felicidade para a vida humana e para cumprimento da história. Trata-se, portanto, de um esforço coral para repropor a própria fé não como conteúdo de verdades abstratas, conjunto de informações a aprender ou mandamentos a observar, mas como o evento decisivo de um encontro pessoal com Deus.
Isso implica uma renovação das linguagens, uma inversão total das abordagens atuais da catequese da infância, uma visão geral que liberte a evangelização do risco de se reduzir a uma simples transmissão intelectual/cognitiva de um conteúdo, para se tornar "generativa", isto é, para " iniciar" à fé e às relações humanas baseadas no amor. Isso implica um intenso trabalho de purificação do nosso imaginário, das nossas linguagens e, em particular, das imagens e representações de Deus que praticamos.
E aqui surge um segundo desafio intimamente ligado ao primeiro: purificar e transformar as nossas imagens de Deus Evangelizar sim, mas qual Deus? Tudo o que se pode fazer na evangelização, nas linguagens, nos modos de crer e na Igreja deve tender a anunciar e manifestar o Deus que se revelou em Jesus, o Deus da compaixão e da ternura, o Deus da liberdade que não substitui o homem e não pretende governar tudo do alto, Deus amigo do homem.
O tema da imagem de Deus está ligado também ao da imagem, forma e estilo da Igreja. Na sociedade leiga, secularizada e plural em que vivemos, são muitos os desafios que também interessam o modo de ser e de viver a comunidade cristã, a começar pela necessidade de uma nova configuração da relação entre paróquia e território, mais atenta aos ritmos de vida atuais.
Uma Igreja que ainda se apresente com uma face austera, como o único e absoluto depósito da verdade fora da qual não há salvação e que prefere o registro da condenação ao do evangelho, não pode ser atraente. Superando a preocupação com a relevância social e política, a Igreja deverá pensar-se como uma comunidade em caminho no meio das agruras da vida, peregrina, que acompanha os seus filhos na história para a descoberta do Reino.
Trata-se de mediar o anúncio do evangelho para fazer emergir o seu conteúdo de libertação e a capacidade de promover também um estilo de vida alternativo. Ao mesmo tempo, um cristianismo crítico em relação a determinados mecanismos de escravidão torna-se também capaz de compaixão; é um cristianismo que se preocupa em promover um humanismo pleno na direção da justiça evangélica contra qualquer economia que exclua, e testemunhe nas obras antes que nas palavras, a compaixão de Jesus.
Ele, testemunha do amor de Deus e da esperança do Reino, se envolve com misericórdia na vida das pessoas e se empenha em cuidar de suas feridas e curá-las. Esta deveria ser uma atividade fundamental da Igreja: preocupar-se com o sofrimento das pessoas e trabalhar pela sua felicidade, ou seja, ser uma “religião sensível à dor”.[5]ou – para citar o Papa Francisco – um hospital de campanha.
[1] Cf. É. Paulat, L’era post-cristiana. Un mondo uscito da Dio, SEI, Torino 1996.
[2] Cf. J. Vernette, L’ateismo, Xenia, Milano 2000, pag. 1.
[3] P. Tillich, L’irrilevanza e la rilevanza del messaggio cristiano per l’umanità di oggi, Queriniana, Brescia 2021, p. 31.
[4] C. Taylor, L’età secolare, Feltrinelli, Milano 2009, p. 13.
[5] Cf. J.B. Metz, Memoria Passionis. Un ricordo provocatorio nella società pluralistica, p. 154.
Trecho de Orientamenti Pastorali, 4/2023, EDB. Francesco Cosentino é membro da Secretaria de Estado, professor de teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana. Publicou o ensaio Dio ai confini. La rivelazione di Dio nel tempo dell’irrilevanza cristiana (San Paolo, 2022).
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Deus nas fronteiras? Discernir a cultura atual. Artigo de Francesco Cosentino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU