03 Mai 2023
"Não se trata apenas de um divisor de águas de caráter político. É algo profundamente enraizado na profundeza da personalidade, no 'caráter' poderíamos dizer", escreve o cientista político italiano Marco Revelli, professor da Universidade do Piemonte Oriental “Amedeo Avogadro”, em artigo publicado por La Stampa, 30-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Direita e esquerda de Norberto Bobbio está prestes a completar trinta anos. De fato, aquela que está chegando às livrarias agora é a "edição de trinta anos" (como consta na capa) daquele "livrinho" de ouro que quebrou todos os recordes editoriais de ensaística: traduzido para 27 idiomas (todos os principais do mundo e outros ainda) vendeu 10.000 exemplares no primeiro dia, 100.000 no primeiro mês e 300.000 no primeiro ano, continuando depois a conquistar leitores por todos os 29 seguintes, e permanecendo atual ainda hoje.
Publicado pela primeira vez em fevereiro de 1994, mas escrito durante o verão do ano anterior e preparado com uma série de notas nos três anos anteriores, o livro era uma reação vigorosa do octogenário mestre da democracia ao clima que sentia estar mudando rapidamente: a incipiente crise do paradigma de valores da esquerda sob o impacto da grande onda hiper liberal que vinha das margens do Atlântico (reaganismo e thatcherismo). E o paralelo bordão que se disseminava sobretudo na Itália, sobre o fim da distinção entre direita e esquerda, como corolário do mais geral "fim das ideologias", e como auspiciado pródromo de uma sociedade política livre das antíteses anteriores.
Ao fundo, mas nem tanto, percebia-se no ar a incipiente irrupção no horizonte político italiano de Berlusconi, que com seu partido empresa, a forte personalização, a redução da linguagem política a comunicação publicitária e seu populismo ante-litteram, era a antítese integral em relação ao mundo de Bobbio, fundado, ao contrário daquele, em uma exigente concepção da democracia entendida como dialética entre paixões civis opostas (o pluralismo, justamente) e sobre uma ordem do discurso político estruturada em torno da antítese entre Direita e Esquerda.
Lido em tal contexto, o livro é, na sua essência, uma generosa e orgulhosa defesa da sobrevivência e operatividade da “grande dicotomia” (como ele a define). Como filósofo neoiluminista e cientista político weberiano que era, ele levava em séria consideração todos os argumentos dos negadores, daqueles que acusavam aquela distinção de estar "ultrapassada", ou seja, já não corresponder mais às forças políticas em campo e aos que negavam a sua validade em si por ser abstrata e "causadora de divisão". E os refutava, cada um, no mérito. Para aqueles que afirmavam que era tão genérica a ponto de conter muitas entidades heterogêneas, respondia que nenhuma classificação apresenta categorias unívocas ou homogêneas (basta pensar na distinção de gênero entre homens e mulheres, quantos tipos de uns e de outras contém).
Aos que, por outro lado, a contestavam por ser demasiado "simplificadora", ele respondia que para um “universo conflituoso” como o da política, dividi-lo “em dois hemisférios não é uma simplificação, mas uma representação fiel da realidade”. A quem, ainda, alegava que a globalização apagaria as "velhas" divisões políticas com seus efeitos uniformizadores, recordava que “só quem acredita na presença invasiva do mercado e confia ao mercado a solução de todos os problemas da convivência civil pode acreditar que a via da globalização seja apenas uma, aquela da ‘mercantilização’ total das relações humanas”. A conclusão era a convicção que "a distinção não está morta e enterrada, mas mais viva do que nunca".
Naturalmente, reconhecia-se a caducidade de alguns dos tradicionais fatores de distinção: a ideia de progresso, posta em crise tanto pelos desafios ecológicos quanto pela emergência de uma direita que fazia da mudança sua própria bandeira; a referência à estrutura social com a direita identificada com as classes "altas" (e dominantes) e a esquerda com as classes trabalhadoras (e subalternas); as diferentes "filosofias da história", todas em crise diante de um tempo cada vez mais "achatado" e esmagado sobre o presente...
Mas um, acima de todos, um grande tema discriminador entre quem está na direita e quem está na esquerda, permanecia em pés, bem firme e capaz de suportar o desgaste dos anos, ou seja, o valor da Igualdade, não por acaso totalmente esmiuçada em um capítulo com o significativo título "A Estrela Polar". A distinção entre igualitários e desigualitários, que nenhuma virada na história e nenhum "embaralhamento das cartas" está em condições de ofuscar.
Não se trata apenas de um divisor de águas de caráter político. É algo profundamente enraizado na profundeza da personalidade, no "caráter" poderíamos dizer. Bobbio fala sobre isso abrindo um breve vislumbre de sua própria experiência pessoal, e recorda quando, em sua época de criança, passava longas férias no campo e ele, pertencente a uma família da burguesia de Turim, se encontrava com os outros, da mesma idade, filhos de camponeses pobres, e mensurava a sua desigualdade: "não podíamos deixar de notar - escreve - o contraste entre as nossas casas e as deles, as nossas comidas e as deles, as nossas roupas e as deles (no verão andavam descalços).
Todo ano, voltando de férias, ficávamos sabendo que um de nossos companheiros de brincadeiras havia morrido durante o ano de tuberculose. Não me lembro, no entanto, de uma única morte por doença entre meus colegas de escola, na cidade". Pois bem, o mal-estar diante do "espetáculo da desigualdade" - poderíamos dizer o escândalo da desigualdade - ou, inversamente, a sua aceitação, ou até mesmo o comprazimento, marca o divisor de águas entre Direita e Esquerda, hoje como então. E resiste a toda reviravolta, por mais intensa que seja.
A esse respeito, basta pensar em um famoso artigo que Bobbio publicou em 9 de junho de 1989, logo após a queda do muro de Berlim, sob o título "A utopia invertida". Ao constatar o fracasso do "comunismo histórico", afirmava, no entanto, que era "tolice" limitar-se a comprazer-se ou iludir-se de que assim tivesse sido "posto fim à sede de justiça" que entre os últimos de todo o mundo a utopia comunista tinha (falsamente) prometido atender. E concluía: “Agora que não há mais bárbaros – diz o poeta – o que será de nós, sem bárbaros?”. É por isso que Direita e Esquerda de Bobbio resistiu por tantos anos, ressurgindo das profundezas, a cada nova edição, com introduções sempre diferentes, até hoje, no tempo em que as desigualdades se tornaram abismais, e a ideia de hierarquia volta a espreitar entre os palácios do governo.
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“Direita e Esquerda” de Bobbio. Lutar pela igualdade continua a verdadeira diferença. Artigo de Marco Revelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU