01 Abril 2023
As religiões nascem e morrem: trata-se de ver se o cristianismo continuará sendo capaz de responder à necessidade religiosa que evolui e se a Igreja será capaz de estar à altura do novo cristianismo que se anuncia.
A opinião é de Giovanni Cominelli, filósofo italiano, em artigo publicado por La Barca e il Mare, 29-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A Igreja de São Pedro nunca foi uma comunidade tranquila. Apenas 20-30 anos após a morte de Jesus Cristo na cruz, Pedro e Paulo encontraram-se – depois do chamado incidente de Antioquia, referido na Carta aos Gálatas 2,11-14 – em Jerusalém para decidir, de uma vez por todas, se os gentios convertidos à doutrina de Jesus tinham que se submeter às leis de Moisés, incluindo a circuncisão.
A discussão foi dura, como se percebe em Atos 15,1-19: “seditione non minima”, diz o texto com um evidente eufemismo. Um primeiro grupo de cristãos judaizantes iria embora por conta própria, não compartilhando a virada epocal de Paulo, que relata: “reconheceram que a mim fora confiado o Evangelho para os incircuncisos”.
Foi apenas o começo, ao longo dos 2.000 anos.
Não é de se admirar, portanto, que a Igreja do Papa Francisco também seja atravessada por conflitos, contestações, lutas acirradas pelo poder e que o alvo seja o próprio papa, pessoalmente.
Bergoglio? Comunista, globalista, populista, peronista, revolucionário, conservador, herege, antipapa, jesuíta, aqui entendido como um insulto… E ainda: incerto, decisionista, falastrão, ambíguo, centralista…
De onde vem tanta agressividade?
Do fato de que a Europa, conquistada ao longo de um milênio pelo cristianismo, está se despedindo dele: as igrejas estão cada vez mais vazias, os seminários fecham as portas, os “pecados” não são mais contados nos confessionários.
Como ressalta Pierre Manent, professor de Filosofia Política na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris: “Os europeus não sabem o que pensar nem o que fazer com o cristianismo”. O cristianismo e, portanto, a Igreja – não existiria o cristianismo sem a Igreja – não são mais considerados pela maioria das pessoas, na Itália e na Europa, como instrumentos para entender o mundo e para viver no mundo. Tampouco para os fins da salvação.
Qual salvação, aliás? Estamos todos convencidos de que já fomos salvos por nós mesmos.
A síntese cultural e espiritual de Jerusalém, Atenas e Roma está se desintegrando. O Papa Bento XVI havia denunciado isso no discurso proferido na Aula Magna da Universidade de Regensburg em 12 de setembro de 2006, quando havia descrito as três ondas da “des-helenização” do cristianismo:
a) a Reforma Protestante, que queria libertar a fé da metafísica grega, afirmando o princípio exclusivo da “Sola Scriptura”;
b) a teologia liberal de Adolf von Harnack, que, movendo-se em sentido contrário ao de Lutero, pretendia tirar de Jesus a veste semítica da “Sola Scriptura” para revesti-lo com a socrática do filósofo moral;
c) a cultura ecumênico-globalista, para a qual a mensagem do Novo Testamento deve ser “exculturada” do helenismo e “inculturada” nas várias culturas mundiais.
Estas haviam sido compiladas por Samuel P. Huntington na revista Foreign Affairs, em 1993, em polêmica com F. Fukuyama – que se iludia acerca de uma globalização liberal-democrática geral pós-Guerra Fria – em uma lista: cristão-ocidental, cristão-oriental, latino-americana, islâmica, hindu, chinesa, japonesa, budista, africana.
Segundo o estudioso estadunidense, teria sido posto em movimento um processo de “desocidentalização”, que teria sido acelerado pelo crescimento populacional, pelo desenvolvimento econômico e pela modernização tecnológica.
Ao contrário daqueles que previam que a globalização liderada pelo Ocidente induziria a uma análogo ocidentalização dos valores, Huntington defendia que “a modernização posterior acaba alterando os equilíbrios de poder entre o Ocidente e as sociedades não ocidentais, alimenta o poder e a autoestima dessas sociedades e fortalece nelas o senso de pertença à própria cultura”.
Quaisquer que sejam as causas disso, o drama da apostasia da Europa ocidental diz respeito a todos nós, crentes, não crentes ou cristãos anônimos.
Ele nos diz respeito porque a história do cristianismo e da Igreja se cruza profundamente, aqui no Ocidente, com a nossa história coletiva e com as nossas existências. O cristianismo – e as religiões históricas pré/pós-cristãs – respondeu a dois tipos de necessidades humanas, produzidas pela evolução da espécie “sapiens”.
A primeira é a “necessidade metafísica”: a demanda de dar um sentido à própria finitude, à dor, ao negativo, ao mal, à morte. Podemos nos atordoar o quanto quisermos e nos distrair de mil maneiras, mas essa é uma demanda que escorre como a lava debaixo da nossa crosta cotidiana mais dura. É a necessidade de transformar o “acaso” em que fomos jogados assim como os dados em um “destino” escolhido.
O segundo tipo de demanda/necessidade é a dos laços comunitários e sociais. É uma pergunta ética: em qual tabela de valores mantemos unidas as relações, as comunidades humanas, as sociedades? É a necessidade de transformar o “caos” em “cosmos”, de construir ilhas de ordem na desordem da entropia.
A religião responde a essas demandas antropológicas essenciais. E, se os não crentes “não creem” que as religiões foram reveladas pelo Deus que elas mesmas “revelam” e que, portanto, a religião é apenas uma construção histórico-social, nem por isso eles não conseguem facilmente “produzir sentido na própria casa”, como diria Habermas. O qual não alimenta de forma alguma a ilusão de que os valores cristão-liberais continuarão fluindo nas nossas sociedades europeias, se a fonte cristã original se reduzir a um fio d’água.
O que é certo é que o itinerário histórico e pessoal do “acaso” ao “destino”, do “caos” ao “cosmos” parece bastante atormentado. Se a “necessidade religiosa” é uma constante antropológica, o cristianismo, aqui na Europa, é a resposta histórica.
O Papa Francisco, “vindo do fim do mundo” – daquele mundo “não cristão-ocidental” da cultura latino-americana – viu-se enfrentando a desocidentalização prevista por Huntington e da des-helenização denunciada pelo Papa Bento XVI.
O Papa Francisco tentou reavivar o espírito do Concílio Vaticano II: sair ao encontro do mundo. O Humanismo e o Renascimento haviam aberto, há seis séculos, as primeiras fraturas entre o mundo e a Igreja, que o século XVII científico, o século XVIII iluminista, o século XIX hegeliano-marxista e darwiniano ampliaram desmedidamente. A Igreja se fechou dentro de seus muros com o Concílio de Trento (1545-1563), com o Sílabo de 1864, com o Concílio Vaticano I (1869-1870).
Quando ela tentou tardiamente uma saída com o Concílio Vaticano II (1962-1965), não encontrou mais inimigos que a cercassem, mas sim o deserto dos indiferentes. O Concílio não deteve a secularização. E, quando João Paulo II, ele também “chamado de um país distante”, em 22 de outubro de 1978 gritou do alto da sacada de São Pedro: “Não tenham medo! Abram ou, melhor, escancarem as portas para Cristo!”, nem mesmo a sua catolicíssima Polônia lhe deu ouvidos. Pelo contrário, de acordo com uma agressiva corrente tradicionalista, o Vaticano II teria escancarado a estrada para a secularização. Os cinco papas do pós-Concílio encontraram-se nesse dramático clímax como “vox clamantis in deserto”.
Ora, neste início de terceiro milênio, os processos de globalização econômica e cultural, as novas tecnologias da informação, a inteligência artificial e a engenharia genética... estão submetendo as instituições, as culturas, as tradições, as religiões a um rápido desgaste.
A Igreja Católica também está envolvida nisso. Diante desses desafios da história, parece duvidoso que a Igreja possa se sustentar apenas com a sinodalidade, ainda mais permanecendo como uma estrutura monárquica vertical, ou com o sacerdócio feminino ou com a abolição do celibato dos padres... Embora estes possam ser, talvez, passos necessários.
No fim, para os fiéis, para os cristãos anônimos, para os não crentes, parece heroica e necessária a travessia do deserto do Papa Francisco. Ao contrário de seu último antecessor, que entrou em alta competição teológica com as filosofias do mundo, ele impulsiona os cristãos a viverem a Igreja como “um hospital de campanha”, como um lugar onde se curam as feridas que o devir histórico inflige ao tecido existencial e coletivo.
Não que Francisco seja agnóstico em nível doutrinal, mas ele não crê que o futuro da Igreja esteja em jogo hoje aí. É no impulso comunitário e missionário que se decide, como ele explica na Evangelii gaudium. Daí os posicionamentos “políticos” sobre a paz e a guerra, sobre a fraternidade universal, sobre as periferias existenciais, sobre a defesa da terra, da vida e da corporeidade humana...
A fé cristã florescerá novamente a partir daí? Talvez. As religiões nascem e morrem: trata-se de ver se o cristianismo continuará sendo capaz de responder à necessidade religiosa que evolui e se a Igreja será capaz de estar à altura do novo cristianismo que se anuncia.
A Providência não é um refúgio tranquilo em relação à história do mundo. Por outro lado, o próprio cristianismo como nova religião surgiu do cadinho das imponentes transformações sociais, culturais e espirituais do helenismo, na encruzilhada entre a Índia, o Oriente Médio e o Mediterrâneo, que a globalização política de Alexandre Magno, que morreu em 323 a.C., havia desencadeado e posto em comunicação recíproca.
O que está em jogo continua sendo a defesa e o crescimento do humano no ser humano. Sem o cristianismo, isso seria muito mais difícil.
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Bergoglio e a (irreversível) crise do cristianismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU