23 Março 2023
"A água, mais do que qualquer outro bem, representa a vida na Terra, e os sinais desses períodos de seca não são um bom presságio. Sanar a relação com essa específica molécula, que compõe 70% de todo o planeta, significaria dar um grande passo para a salvaguarda da humanidade", escreve Carlo Petrini, fundador do Slow Food, ativista e gastrônomo, sociólogo e autor do livro Terrafutura (Giunti e Slow Food Editore), no qual relata suas conversas com o Papa Francisco sobre ecologia integral e o destino do planeta, em artigo publicado por La Repubblica, 22-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A mudança climática atingiu sua fase de irreversibilidade. A demonstrar isso não são mais apenas os dados divulgados há anos por estudiosos, ativistas e jornalistas sensíveis ao tema. Hoje quem fala são os fatos. Se durante décadas a política não teve ouvidos para escutar os avisos no campo ambiental, os cenários que se avizinham exigem que se mantenham os olhos bem abertos e começar a tomar contramedidas sobre os efeitos que já estão ocorrendo. Em primeiro lugar: a seca, uma questão alarmante que espero esteja no centro do debate do atual Dia mundial da água.
Há 65 anos não se via uma crise hidrogeológica tão evidente na Itália. Em todo o território nacional em 2022 houve menos da metade das precipitações esperadas. Falando da região onde moro, o Noroeste, foram superados todos os recordes de dias consecutivos sem chuva. E 2023 não deu sinais de reverter essa preocupante tendência. Há mais de um ano os rios estão abaixo do nível zero hidrométrico, a pouca neve nas montanhas se dissolve num piscar de olhos e as preocupações com o próximo verão não deixam dormir sonos tranquilos a muitos agricultores.
Falo de fatos que estamos vivenciando hoje, aqui no Piemonte como em muitas outras regiões do mundo. No entanto, até mesmo os nossos comportamentos cotidianos parecem não assumir nenhum tipo de responsabilidade sobre essa questão. Deve-se enfatizar que 35% da água potável se perde na rede hídrica urbana. Sem falar no desperdício de água que se esconde atrás da produção de bens de primeira necessidade: a redução do desperdício anual de alimentos (igual a 30% dos alimentos produzidos) permitiria sozinha economizaria tanta água quanto a necessidade hídrica de Nova York nos próximos 120 anos.
Para agravar a projeção desses dados, a FAO nos diz que continuando com essa tendência de consumos e face ao crescimento populacional, em 2050 necessitaremos de 35% de água potável a mais para atender às necessidades alimentares de toda a população mundial.
Em vez disso, os fatos nos dizem que cada vez há menos água, e a pouca de que dispomos é cada vez mais poluída (só para dar um exemplo, estima-se que 83% da água consumida no mundo seja contaminada por microplásticos). Eis que a urgência maior que deveria estar no centro das discussões de Nova York - onde a partir de hoje as Nações Unidas reuniram a primeira Conferência da ONU sobre a água -, deveria ser para trazer de volta ao centro de qualquer tipo de interesse os temas ligados ao bem mais precioso que temos.
Por tempo demais esses tipos de reuniões, assim como as políticas internas de cada Estado, se mostraram vítimas e promotores daquele eterno dualismo que contrapõe e antepõe a economia à ecologia. E os fracos sinais que dele derivam acabam por ter efeitos negativos também nos comportamentos de uma população que até hoje nunca foi direcionada e responsabilizada para práticas virtuosas; porque o desperdício e o consumo fazem parte do crescimento econômico.
A esse respeito, falou com propriedade o Presidente Mattarella durante uma visita ao Quênia na semana passada: “Não teremos um segundo tempo” e “Não se pode acalentar a ilusão de perseguir primeiro os objetivos de desenvolvimento econômico para depois enfrentar num segundo momento as problemáticas ambientais".
É bastante evidente que o panorama atual não poderá garantir por muito mais tempo resultados econômicos satisfatórios se não houver primeiro um empenho em sanar a relação com o ecossistema Terra. Infelizmente, a situação se agravou a tal ponto que não é possível garantir uma vida saudável e digna em muitas áreas do planeta.
O tema das secas, que hoje nos afeta de perto em nível nacional e local, há séculos é uma desgraça para muitos povos.
Ter sido indiferente aos seus problemas nos levou agora a sentir pessoalmente o drama da falta de água nos territórios. Por isso, é obrigatório para todas as pessoas - das salas de discussão das Nações Unidas às nossas casas - assumir consciência, responsabilidade e atenção contínua para a gestão dos recursos hídricos.
A água, mais do que qualquer outro bem, representa a vida na Terra, e os sinais desses períodos de seca não são um bom presságio. Sanar a relação com essa específica molécula, que compõe 70% de todo o planeta, significaria dar um grande passo para a salvaguarda da humanidade.
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Agir para salvar a humanidade. Artigo de Carlo Petrini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU