21 Março 2023
Muitos países poderiam produzir de forma autônoma os alimentos necessários para sua população, segundo dados da FAO reelaborados por uma pesquisa holandesa. Porém, é necessário rever a produção agrícola e cortar os desperdícios.
A reportagem é de Viola Rita, publicada por La Repubblica, 20-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Vários países do mundo seriam capazes de produzir autonomamente todos os alimentos necessários para sustentar sua população. Quem afirma isso é um estudo conduzido por um grupo da Universidade de Leyden, na Holanda, que criou um modelo de previsão baseado em dados estatísticos de produção e consumo de alimentos fornecidos pela FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação).
De acordo com os resultados do estudo, publicado na One Earth, 51% da população global vive em nações que seriam capazes de se autossustentar, em termos de alimentação, com recursos próprios de produção. Tudo isto seria possível desde que fosse reduzido o consumo médio de carne e se utilizasse mais fruta, verduras e proteínas de origem vegetal, e fossem cortados os desperdícios. A pesquisa tem limites, por se basear em projeções estatísticas, mas indica que há muita margem para melhorias também em âmbito agrícola.
O estudo parte da necessidade de entender até que ponto cada país consegue se tornar mais independente da rede de comércio global. Esse é um passo cada vez mais desejável e necessário, principalmente se pensarmos em epidemias, guerras e outras emergências nacionais e internacionais. Os pesquisadores, coordenados por Nicolas Navarre da Universidade de Leyden, examinaram dados sobre produção agrícola e hábitos alimentares de 204 países no mundo. Os autores se perguntam se, com base nas capacidades agrícolas do território de cada país, as nações selecionadas teriam potencialidade para se tornarem autossuficientes na produção de alimentos.
No modelo, além de usar dados da FAO, eles consideraram uma determinada dieta, considerada saudável e sustentável para o meio ambiente, definida e proposta por um grupo de especialistas internacionais da Comissão Eat-Lancet. Essa Comissão, ligada justamente à revista The Lancet, é formada por 37 cientistas de 16 países. Ainda em discussão, a dieta "planetária", válida para todos os países, baseia-se na redução do consumo de carnes e privilegia alimentos como frutas, verduras, legumes e gorduras insaturadas.
Os resultados do estudo indicam que 86 das 204 nações - o que corresponde a 51% da população global - poderiam adotar com sucesso a dieta Eat-Lancet e se tornar independentes em termos de alimentação. Além disso, por meio de intervenções direcionadas nos plantios e mudanças nos consumos, até 95% dos países poderiam desenvolver autonomamente um sistema mais sustentável, sempre baseado na dieta Eat-Lancet.
A chave para a autonomia, segundo os cientistas, baseia-se em dois pilares: comer menos carne e cortar os desperdícios. Dois terços das emissões de gases de efeito estufa estão de fato ligados à criação animal, enquanto um terço do que produzimos em nível global é jogado fora.
No esquema proposto, os autores indicam consumir carne uma vez por semana - ou até uma ou duas vezes mais se for possível reduzir ao mesmo tempo os desperdícios de maneira significativa. Se a criação animal intensiva for reduzida e os recursos produzidos forem melhor utilizados, isso permite repensar todo o sistema (além de reduzir, por exemplo, o desmatamento maciço e aumentar a produção local), caminhando para a autossuficiência nacional. Os cientistas especificam que o objetivo não é, no entanto, a autarquia, ou seja, a total independência dos mercados e das importações, um isolamento que poderia ser arriscado em caso de problemas.
O quadro teórico traçado pela pesquisa parece cor de rosa, mas a realidade indica que ainda estamos muito distantes desse objetivo. As razões são variadas e estão sendo examinadas por cientistas e representantes das instituições. "Diante de indicações estratégicas significativas, como a redução do consumo de carne e açúcares, a dieta Eat-Lancet, contudo, apresenta limitações", comenta Angelo Gentili, responsável nacional de agricultura da Legambiente. "De fato, não entra no mérito dos métodos e das modalidades nas quais se baseiam os sistemas agrícolas, por exemplo, sobre a importância de combater a agricultura intensiva e reduzir o uso de substâncias químicas, como pesticidas e fertilizantes, principalmente aqueles que contêm nitrogênio". Essas moléculas ameaçam os insetos polinizadores e colocam em risco ecossistemas inteiros.
"A autossuficiência alimentar não pode ser alcançada sem enfrentar essa questão", ressalta Gentili. “Ter um panorama completo, que inclua também um detalhamento sobre esses aspectos, é essencial para poder realmente repensar o sistema agrícola e alimentar e caminhar para uma maior autonomia”. Esse argumento não pode ser ignorado nem mesmo em nível estratégico e operacional: a Comissão Europeia, de fato, propôs reduzir o uso de pesticidas químicos em 50% junto com o uso dos pesticidas mais perigosos até 2030. Mas também é uma questão qualidade e salubridade da alimentação, segundo Gentili, que relembra os dados do documento da Legambiente Stop pesticidi 2021: cerca de 35% das mais de 2.500 amostras de alimentos analisadas, de origem italiana e estrangeira, continham resíduos de pesticidas, ainda que dentro dos limites legais.
O tema abordado no estudo One Earth é muito afim do conceito de "soberania alimentar", no centro do debate político e econômico também na Itália, onde um ministério especial foi recentemente criado - ou melhor, renomeado -. O conceito de soberania alimentar não nasceu hoje, mas há mais de 25 anos a partir de um movimento internacional de agricultores, que colocam no centro o direito à "alimentação saudável e culturalmente apropriada", conforme afirma a "Declaração de Nyéléni" de 2007. A ideia é que os alimentos sejam obtidos dentro de sistemas agrícolas e alimentares que protejam o meio ambiente e valorizem as atividades locais desenvolvidas por agricultores e famílias, com vistas à promoção da sustentabilidade ambiental, social e econômica. Tudo isso, portanto, se contrapõe ao processo de globalização na produção.
Mas como passar da teoria à prática? “No contexto nacional e europeu, a soberania alimentar conjuga-se com a agroecologia”, esclarece Gentili, “um conjunto de métodos e abordagens agrícolas que integram as necessidades produtivas com a defesa do ecossistema, por exemplo através da redução da utilização de produtos químicos, nocivos para a biodiversidade e para o ambiente". A perspectiva da agroecologia, continua o especialista, é valorizar o território e converter a agricultura, excessivamente intensificada após a revolução verde, para um sistema mais sustentável.
Mas estamos longe de resultados significativos. "Pouco ainda está sendo feito", destaca Gentili. "Uma das chaves para a mudança é certamente a Política Agrícola Comum (PAC), instituída pela União Europeia, que há anos vem dando forte apoio ao setor agrícola. O compromisso deve ser direcionado para a agroecologia, promovendo a biodiversidade e a agricultura orgânica e reduzindo o desperdício de alimentos, outro parâmetro fundamental sobre o qual agir para realmente repensar o sistema”.
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A soberania alimentar é possível comendo menos carne e evitando desperdícios - Instituto Humanitas Unisinos - IHU