21 Março 2023
Durante anos, ele negou ser o fundador e comandante da “companhia Wagner”, da qual, porém, hoje se orgulha por ser o “melhor exército do mundo”. Sua biografia – da prisão ao restaurante, até as farpas de hoje contra o resto da elite do Kremlin – é uma síntese da história pós-soviética.
A reportagem é de Stefano Caprio, publicada po4 Asia News, 18-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O desafio de Bakhmut, uma batalha desesperada para conquistar 0,02% a mais de território no cada vez mais devastado Donbass, está se tornando um ponto fundamental não tanto para o destino da aventura militar dos russos na Ucrânia, mas para delinear o futuro do putinismo, que assume tons cada vez mais sombrios e satânicos, e, consequentemente, de muitos equilíbrios geopolíticos na ordem mundial.
Os fornecimentos de armas e munições de um lado e de outro, também em vista de um novo confronto de massa na primavera, evidenciam as dimensões mais extremas das estratégias militares e, na Rússia, exaltam cada vez mais a figura de Yevgeny Viktorovich Prigozhin, ex-presidiário, “cozinheiro” de Putin, oligarca e chefe militar, ideólogo e político, hoje até autocandidato à presidência da Ucrânia.
A biografia de Prigozhin é uma síntese da história pós-soviética. Aos 61 anos, nascido em Leningrado como Putin e o Patriarca Kirill, tendo ficado desde cedo órfão de pai (instrutor de esqui cross-country), Yevgeny cresceu com a mãe enfermeira. Venceu algumas competições de esqui, o que lhe permitiu frequentar uma escola especial para desportistas, e seus colegas também o recordam como alguém que “gostava muito de ler”.
No entanto, a sua carreira esportiva foi logo interrompida, quando aos 18 anos foi condenado a dois anos por furto, a ser cumprido nos serviços sociais. Antes de cumprir a pena, porém, foi acusado de diversos atos de vandalismo, recebendo mais uma pena de 13 anos de prisão.
A carreira empresarial de Prigozhin começou na prisão, tendo se tornado “brigadeiro” das equipes de autogestão dos detentos (geralmente formadas pelos bandidos mais violentos), obrigando todos os camaradas a prepararem souvenirs para serem vendidos lá fora, acumulando uma primeira fortuna não desprezível para os últimos anos soviéticos.
Ainda segundo relatos de seus companheiros de cela, “todos os dias ele inchava os músculos com os exercícios e não parava de ler livros”. Ele conseguiu obter uma redução da pena, saindo da prisão no fatídico ano de 1990 da virada de Gorbachev.
Ele não continuou sua carreira criminosa e se matriculou no instituto químico-farmacêutico de Leningrado sem, no entanto, obter o diploma. Em vez disso, foi um dos primeiros a se lançar no desenfreado mundo dos negócios dos primeiros anos pós-soviéticos. Sua fama de “cozinheiro” começou com as barracas de rua, onde preparava cachorros-quentes, um símbolo da americanização da Rússia de Yeltsin.
Em pouco tempo, em 1995, ele abriu seu primeiro restaurante, Staraya Tamozhnya (“Velha Alfândega”), no antigo prédio da Kunstkamera da rebatizada São Petersburgo, o primeiro restaurante de elite da capital do norte, frequentado pelos moradores locais mais conceituados. Mais tarde, Prigozhin experimentou vários outros formatos de restaurante: Russky Kitsch, a rede judaica Set Sorok, Blin!Donalt’s (“Uau!Donalt”, uma paródia do McDonald’s) e outros.
O apogeu da fama de “cozinheiro” foi alcançado em 2001, em um novo restaurante à beira-mar, New Island, em que o novo presidente Vladimir Putin organizou um encontro com seu homólogo francês Jacques Chirac e no ano seguinte com Georges W. Bush. Em 2003, Putin até organizou seu aniversário lá, consolidando o vínculo privilegiado com Prigozhin e sua cozinha.
O negócio expandiu-se vertiginosamente com o serviço de catering, da qual se tornou o principal empresário na Rússia com a empresa Konkord, servindo particularmente os jantares de honra do Kremlin e até as inaugurações presidenciais.
As cantinas escolares de Moscou e São Petersburgo também eram organizadas pela empresa de Prigozhin, até que em 2010 foi assinado um gigantesco contrato exclusivo com o Ministério da Defesa para alimentar soldados e oficiais.
A passagem das panelas para as armas automáticas é realmente muito obscura. Durante anos, Prigozhin negou ser o fundador e comandante da “companhia Wagner”, da qual hoje se orgulha por ser o “melhor exército do mundo”. Sua atividade está ligada ao início da “guerra híbrida” no Donbass, após a revolta do Maidan de Kiev e a anexação da Crimeia em 2014.
As primeiras notícias públicas apareceram, no site de São Petersburgo Fontanka.ru em 2015, no qual se contava que, dois anos antes, em 2013, dois gerentes de uma agência de segurança privada, Moran Security Group, Vadim Gusev e Evgenij Sidorov (de fato, nomes de fachada de Prigozhin) haviam registrado em Hong Kong a empresa “Corpus Eslavo”, Slavjanskij Korpus, para a defesa dos navios comerciais dos piratas, contratando cerca de 300 guardas para a “defesa das minas e dos poços de petróleo” na Síria, onde, na realidade, participaram da guerra civil em curso.
Os membros do grupo retornaram posteriormente à Rússia, onde foram inicialmente presos por “atividades mercenárias ilegais”. Um dos líderes era Dmitry Utkin, o “coronel” hoje com 52 anos de idade, que logo depois apareceu em ação em Lugansk para defender a população russófona do exército ucraniano. Pela primeira vez, ele foi associado ao nome da “companhia Wagner”, apelido de Utkin para a evocação do musicista inspirador do Terceiro Reich, do qual o ex-spetsnaz era aparentemente um grande admirador.
O símbolo da empresa mostra no centro a estrela soviética, com duas espadas entrelaçadas sobre um fundo marrom-avermelhado, as cores do “comunismo fascista” [fascio-comunismo] e as palavras “Sangue, Honra, Pátria, Coragem” ao redor. Outras fontes atribuem o início da operação a um acordo entre oficiais de defesa russos com uma agência de segurança na África do Sul, a Executive Outcomes, que reunia militares formalmente aposentados, mas ainda em pleno funcionamento.
De fato, a guerra na Ucrânia foi travada durante oito anos pela Wagner, com centenas de membros que, alternadamente, se juntavam aos separatistas nas lutas de cidades e distritos, sob o comando de um dos chefes dos mercenários, Igor Girkin, conhecido como Strelkov (o Arqueiro), que se tornou o rosto público dos militantes pró-Rússia de Donetsk. O grupo também capturou o aeroporto de Lugansk e se encarregou de selecionar os personagens locais mais agradáveis ao Kremlin, colocando outros fora de ação com métodos brutais.
Ainda em junho de 2022, os tribunais de Moscou condenavam aqueles que atribuíam a Prigozhin a liderança da Wagner, como o renomado jornalista Venediktov, mas, a partir de setembro do ano passado, o próprio “cozinheiro” e oligarca começou a ir publicamente aos vários locais de detenção para recrutar soldados para acrescentar ao seu grupo de mercenários.
É difícil quantificar o número de mercenários da Wagner, que obviamente nunca foi publicado de forma alguma. Certamente, foram retirados das prisões 2.000 a 3.000 prisioneiros, muitos dos quais morreram em batalha, e os efetivos do grupo podem chegar a 15-20 mil pessoas entre os muitos lugares do mundo onde a companhia atua, com contínuas rotações de novos recrutas.
O próprio Prigozhin falou recentemente de membros estrangeiros agregados em vários países, até mesmo no odiado Ocidente europeu e americano. Não estão claros nem os financiamentos de que dispõe, tanto públicos quanto privados, em um valor estimado em cerca de 200 milhões de euros por ano, em parte assegurados pelos restaurantes e centros comerciais de Prigozhin. O próprio fundador afirmou que “a Wagner é financiada com o dinheiro ganho com a venda das lágrimas e dos sofrimentos das democracias ocidentais”.
Além da Ucrânia e da Síria, as duas guerras em que a Wagner está oficialmente envolvida, a empresa atua em vários países africanos: Sudão, Líbia, África central, Moçambique, Mali e Burkina Faso, apoiando de diversas formas as partes em conflito nas guerras civis e nas disputas de poder. Portanto, não é improvável que tenham razão os políticos europeus que acusam Prigozhin de atuar também sobre os fluxos de migrantes a serem enviados pelo Mediterrâneo, através da Líbia e da própria Síria, para colocar em dificuldades os governos inimigos.
A fama mais sinistra de Prigozhin está ligada à execução de um membro da Wagner, Yevgeny Nuzhin, ocorrida em Kiev pelo exército ucraniano em novembro passado. Nuzhin, de origem cazaque, era um criminoso e assassino condenado a 25 anos de prisão, tendo sido alistado por Prigozhin e se tornado um dos comandantes de campo na Ucrânia, onde havia se tornado muito popular entre os soldados. Fotos de sua execução a golpes de kuvalda, a marreta para trabalhos pesados, foram divulgadas e, desde então, a ameaçadora ferramenta tornou-se o novo símbolo da Wagner e do próprio Prigozhin, que envia eloquentes exemplares a seus piores inimigos.
Além das ações militares, o “cozinheiro” também é famoso pela “fábrica de trolls”, ou seja, os ataques hackers e as intromissões nas campanhas eleitorais em países ocidentais, começando pelos Estados Unidos na eleição de Donald Trump, em 2016, e no mesmo ano também no referendo inglês do Brexit. Prigozhin admitiu recentemente que “nós interferimos, estamos interferindo e continuaremos interferindo de forma precisa e cirúrgica, à nossa maneira”.
Em muitos lugares, Prigozhin é comparado a Rasputin, o monge que influenciava a política do czar Nicolau II, que hoje tenta influenciar Putin contra o resto da elite do Kremlin, em sua opinião “um bando de incompetentes, que realmente não querem vencer a guerra”. Rasputin foi assassinado, com grande dificuldade, pelos nobres conspiradores em 1916, até porque queria desencorajar o czar de entrar na guerra.
Cem anos depois, o espírito do monge de nome semelhante ao do novo czar parece querer a revanche, desta vez incitando à violência mais extrema. Putin significa “o homem do caminho” (Put); Ras-putin, “o homem da encruzilhada”, na qual a Rússia deve escolher seu destino.
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Prigozhin, o “cozinheiro” do putinismo extremo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU