14 Março 2023
Argentino como o tio, jesuíta como o tio, o padre José Luis Narvaja, filho de uma irmã de Jorge Mario Bergoglio, divide-se entre Argentina e Roma, onde leciona patrística no Pontifício Instituto Bíblico, e se mantém a distância dos salões do poder. O caráter reservado do estudioso, o sorriso aberto, concorda em falar sobre Francisco dez anos após sua eleição.
A entrevista é de Iacopo Scaramuzzi, publicado por La Repubblica, 13-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O que você lembra sobre seu tio da época em que era criança?
Nós gostávamos de estar com ele porque ele era simpático, era divertido. Aos domingos ele nos levava a passear em seu Renault 4. Uma vez, na época da ditadura militar, quando eu tinha 12 anos, minha mãe falou para mim e para a minha irmã: "vamos buscar um amigo do tio para levar ele ao aeroporto". Minha irmã ficou muito feliz, perguntou se o tio também iria, mas minha mãe disse que não. Quando chegamos no colégio, porém, saiu um homem: "Ah, mas é o tio!", minha irmã exclamou. Depois o homem se aproximou, entrou no carro, e na verdade não era o tio. Levamos ele para o aeroporto. Algum tempo depois soubemos que o meu tio tinha dado o passaporte a esse senhor para que fugisse da Argentina, e ele havia se vestido como meu tio, como um padre. Certamente resulta que Bergoglio saiu do país naquele dia... mas não era ele!.
Você esperava que fosse eleito papa?
Não. Em família achávamos que ele já estava idoso demais para ser eleito... mas li um artigo no jornal francês La Croix que dizia que cinco anos de Bergoglio seriam suficientes para reformar a Cúria. Bem, agora sabemos que não é verdade, ele ainda não conseguiu (ri). Mas na época eu disse para mim mesmo: talvez ele tenha uma chance. Agora alguns esquecem que naquele momento pediram para ele tomar as rédeas porque era preciso alguém para reformar, e agora há quem não queira a reforma...
Qual é o cerne da reforma de Francisco?
Reformar significa colocar Cristo no centro da Igreja, tudo o mais vem depois e é feito por Cristo quando se faz carne na Igreja, nas nossas vidas. Precisávamos de uma pessoa que tivesse força e também a clareza, para colocar Cristo no centro, para uma Igreja mais evangélica. Isso as pessoas entendem bem.
Mas as críticas e as resistências são fortes.
É normal. Há resistência em perder o controle, o poder. Em fico triste ao ouvir ou ler certas críticas, mas o Papa está acostumado, diz: "Não se preocupe, não me desequilibra".
Os últimos ataques ocorreram após a morte de Bento, por quê?
Não sei. Nós dizemos: para poder mentir é preciso duas coisas, ter uma boa memória e colocar os mortos como testemunhas. Não sei se é verdade. O que posso dizer é que um secretário (Georg Gaenswein, ndr) deveria manter segredos, se a pessoa cujos segredos ele guarda manteve silêncio, seu silêncio deveria ser respeitado.
Qual é o primeiro acontecimento que vem à mente dos dez anos de pontificado?
Lampedusa. E depois Abu Dhabi, a assinatura de uma declaração sobre a fraternidade humana com o grande imã de Al Azhar. Tudo gira em torno desses dois temas, o diálogo e os pobres.
O que você pensa sobre a crise dos abusos?
Por analogia, me vem à mente uma expressão que foi usada depois da bomba atômica, teologia depois de Hiroshima. Depois dos abusos, a Igreja não pode pensar em si mesma como antes. O Papa diz que é preciso superar a autorreferencialidade, ele propõe uma Igreja que não olhe para o mundo do alto: iluminada do alto, sim, mas nós não somos a luz.
Francisco move-se em continuidade ou descontinuidade com o passado?
O problema é o que se entende por continuidade. Uma coisa que me incomoda é o uso da palavra "tradicionalismo": eu sou fiel à tradição da Igreja, mas não a guardo no freezer. Onde colocamos o ponto fixo a partir do qual nada mais se move? Por que a liturgia de Pio V e não então aquela de Gelásio, que é mais antiga? Por que você gosta mais daquela? Essas coisas incomodam, porque existe uma ideologia por trás. No Credo dizemos que o Espírito falou através dos profetas: falou e continua a falar e ninguém o cala! Escutar o Espírito: a esse dinamismo é preciso ser fiel.
Um jornalista argentino dizia que Bergoglio é um jogador de xadrez, a cada movimento já pensa três ou quatro movimentos sucessivos, e nunca esgota todas as possibilidades numa única jogada.
Isso é bom, não é?
Nem todo mundo entende as suas decisões, às vezes ele é descrito como genioso...
Isto não tem nada a ver com xadrez...
Mudou nestes dez anos?
Ele envelheceu, não se vê? (ri). Ele também aprende: eu diria que ele também envelheceu no sentido da sabedoria. Ele diz que quando era provincial dos jesuítas era muito jovem, deveria ter dialogado mais. Mas o fundamental é o mesmo que antes: uma forte disponibilidade à escuta e uma memória impressionante.
Como está o papa agora?
Ele diz que o joelho está melhor, que está quase curado. Ele está muito bem de cabeça, quando falamos não se esquece nada, é sempre muito rápido no raciocínio, isso definitivamente não mudou. Ele tinha um médico chinês na Argentina que dizia que ele viveria 120 anos…
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“Meu tio, o Papa Francisco, deu seu passaporte a um perseguido da ditadura em fuga". Entrevista com José Luis Narvaja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU