03 Fevereiro 2023
"Ultradireita insuflou seu embrião de pátria-cristã. Política mesclou-se a catarse religiosa. Todo vestígio de República deve ser profanado, virando do avesso o sentido de revolução: caso ocorra no país, ela será verde-amarela, nunca vermelha", afirma Coletivo Desmedida do Possível, em artigo publicado por Outras Palavras, 02-02-2023.
Coletivo Desmedida do Possível é composto por Antonio Mota, Daniel Feldmann, Debora Goulart, Fabio Agostinho, Fabio Luis B. Santos, Fernando Cunha Sato, Fernando Kinas, Frederico Lyra, Gabriel Rocha, Guilherme Meyer, Henrique Costa, Isabel Loureiro, Patrícia Mechi, Tales Ab´Saber, Thais Pavez e Thiago Cannetieri.
O bolsonarismo não dá trégua. No governo, a metralhadora de maldades do seu líder pautou a vida pública do país. Na oposição, sequer concedeu a Lula o primeiro domingo para descansar, como Deus mandou. Se havia expectativa de uma pacificação nacional, o sonho acabou.
O que fazer com o bolsonarismo? 8 de janeiro colocou o governo e o país diante desta questão.
Ao quebrar os símbolos da república evocando uma intervenção militar, se escancarou uma dinâmica que chamaremos de fascista: uma subjetivação delirante, que mobiliza massas lutando por autoritarismo, como se lutassem por sua libertação.
O fascismo é uma conversão subjetiva de sentido guerreiro, sádico e sacrificial. Do ponto de vista sociológico, os fascistas são múltiplos: de financistas a entregadores, de evangélicos a militares, de lúmpens a celebridades, de pobres a bilionários. Os conversos aceitam tudo: do genocídio dos campos de concentração ao genocídio da pandemia.
Esta disposição fascista é ativada por Bolsonaro, mas não é ele. Ao contrário: como o líder é débil, apela-se para o exército.
O assalto a Brasília foi um ataque simbólico, que também foi um ataque real. E vice-versa.
A estratégia golpista era produzir o semblante de uma revolta popular nacional que forçasse uma missão de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), colocando o exército nas ruas. Efetivamente, registraram-se bloqueios e sabotagens em outros pontos do país. Por outro lado, os caminhoneiros que pararam estradas um mês antes já tinham sido multados e presos.
Em Brasília, as forças da ordem demoraram três horas para agir, enquanto as sedes dos três poderes eram depredadas. Embora não houvesse acordo a ponto de o exército entrar no golpe ao lado dos “revolucionários” de Bolsonaro – como eles esperavam –, houve coordenação e apoio por omissão do cumprimento do dever. Foi uma tentativa de golpe.
Os patriotas acampados através do país encontravam-se em estado de exaltação extrema e crescente. Ainda que financiados, deixaram sua rotina, seus trabalhos, suas famílias (enfim, a normalidade), para ouvir e reafirmar diariamente que a redenção da comunidade que eles imaginam – “a nação cristã” – só aconteceria por meio de uma destruição necessária. A invasão ao congresso representou a passagem da espera messiânica por um “grande acontecimento” profético, para a tentativa ativa de alcançar o mundo do milênio, que tem a forma de uma pátria totalmente cristã. O evento com data marcada foi também uma catarse religiosa, deflagrada pelo quebra-quebra.
Além de ser catártica, a invasão produziu um sentido: reforçou os limites externos da pátria-cristã imaginada, uma pátria que fala a língua do texto bíblico. Essa comunidade foi fermentada por experiências que antecederam os acampamentos no período eleitoral, como “marchas para Jesus” ou manifestações do sete de setembro, reunindo pessoas vindas de várias partes do país que não guardam uma relação entre si. Essas jornadas formaram significados: “nós somos patriotas e cristãos” e por isso estamos aqui, nesses mesmos espaços, vamos aos mesmos lugares, usamos a mesma camiseta amarela, vivemos a mesma temporalidade (“nós” acreditamos que o fim está próximo) e falamos a mesma língua (um português enxertado com a linguagem velho testamentista e apocalíptica). Nesse nacionalismo messiânico, milenarismo e pátria cristã se confundem.
O reforço do sentimento de um “nós”, que pertence exclusivamente ao embrião de pátria-cristã, envolve apagar a existência de “eles”. A camiseta da seleção “é nossa” e a praça dos três poderes não pode ser ocupada “por eles” (que tomaram esse espaço uma semana antes, na posse de Lula). O direito dos “patriotas” à nação é tão natural como o direito do capitalista aos meios de produção. Circuitos de reconhecimento e de direitos são comprimidos: a nação é um “nós”, restrito aos patriotas. É preciso botar pra fora esquerdistas, migrantes, índios, professores, artistas e outros inúteis.
Só não mataram 30 mil, como Bolsonaro pensou necessário, porque não deu. Ainda.
O assalto a Brasília foi também uma performance, em que se profanaram os símbolos da república e da democracia, como disse o ex-ministro do STF, Celso de Mello. A mensagem é: nenhum destes objetos tem valor para nós – seja valor estético, histórico ou político. Estão cagando para a democracia, literalmente. Os símbolos da nação republicana se contrapõem ao sonho embrionário da pátria cristã, diluindo suas fronteiras externas numa sociedade mais ampla e em crise e, por isso, é necessário fazê-los desaparecer. As facadas no quadro de Di Cavalcanti, atingem o coração de uma arte que coloca em foco a representação popular do país.
Foi também um espetáculo, em que se mostrou disposição para inviabilizar o governo Lula.
Golpe não houve, mas a imagem de massas tomando Brasília pode ser acessada no futuro.
Qual seria o efeito de uma performance similar, em um momento em que o governo estiver acuado, com a popularidade em baixa? Lembremos que o mensalão foi contido no começo do governo Lula, mas a Operação Lava Jato não.
Em outro nível, os patriotas criam o seu script mundial. Os brasileiros foram impulsionados pelos patriotas do Capitólio, e avançaram mais uma casa: tomaram os três poderes, visando produzir um golpe. Ainda que não tenham conseguido, essas “catarses” são fundamentais para construir um script, inclusive a partir das imagens que geram. Reproduzidas infinitamente pelas redes sociais, permitem a relativa unificação de uma visão de mundo de extrema-direita, no plano nacional e internacional.
O que virá a seguir?
No plano institucional, o tiro saiu pela culatra. O assalto a Brasília foi amplamente rechaçado. Em lugar do golpe, produziu-se uma coesão inesperada, que garantirá, ao menos por um tempo, a ensejada “governabilidade” ao presidente que começa.
Mas também está claro que a guerra bolsonarista transcende este plano. E sua eficácia desafia o realismo político. Lembremos que Bolsonaro quase se reelegeu pela destruição causada por seu governo, e não apesar dela.
Dado que o tempo da espera messiânica não é linear (como o tempo progressista), pois passado e futuro estão fusionados em uma guerra pela eternidade, será que faz sentido pensar o êxito dos patriotas no registro de um “plano racional” de tomada do poder?
Talvez o maior triunfo desta política não seja ganhar eleições ou conseguir a intervenção militar, mas virar do avesso o sentido da revolução. Pois se revolução houver no mundo no futuro próximo, ela não será vermelha.
A esquerda defende as instituições para que as instituições defendam a sociedade – e a própria esquerda. Afinal, historicamente o fascismo destrói sociedades, defendendo o capital.
No bojo da reação ao assalto bolsonarista ganhou corpo um afã punitivista na esquerda. Uma página do Instagram encaminhava denúncias para Alexandre de Moraes. É evidente a necessidade de punir os manifestantes. Mas não estaríamos flertando com um gozo punitivista? Nessa esquerda de cidadãos do bem nos tornaremos todos policiais?
Confiaremos no Estado para enfrentar um fenômeno político que ganha força por fora da política institucional? Mais especificamente: como delegar ao exército e à polícia a tarefa de investigar e punir um movimento político que os atravessa de cima a baixo?
Lula ordenou proteção aos Yanomami e para isso, pretende contar com os militares. Mas como estancar o garimpo, sem gerar uma rebelião? Ou sem humilhar famílias inteiras que se identificam ou se solidarizam com a garimpagem? Dizem à boca pequena que se o garimpo fechar, vão matar geral. Mas quem vai desalojá-los se os militares estiverem envolvidos no negócio? E o crime organizado também?
A multiplicação de clubes de tiro no país nos últimos anos seguiu a expansão da fronteira do agronegócio e da mineração na Amazônia legal. São núcleos de socialização e articulação política do bolsonarismo.
E se Roraima se tornar a regra e não a exceção? E se a fronteira não for lugar do atraso, mas espelho do futuro? Será que havia uma verdade na fixação bolsonarista – e viraremos uma Venezuela, onde militares organizam e defendem o extrativismo em meio a capitais grandes e pequenos, mafiosos e empreendedores?
O apoio à punição estatal pode ser sintoma de uma impotência geral para impedir a disseminação do bolsonarismo na sociedade. Mas como se defender dele sem o Estado?
Para enfrentar estes dilemas, Marx sugeria: análise concreta da situação concreta.
É necessário investigar e punir os crimes do governo Bolsonaro, assim como é preciso punir os assaltantes de Brasília e seus cúmplices. Se houver uma nova anistia, a ameaça militar penderá de forma permanente sobre os civis. E alimentará o messianismo bolsonarista na sua busca perpétua por salvadores da pátria.
Mais do que fortalecer instituições como a polícia e o exército, o punitivismo é uma cultura política da direita. Por outro lado, a direita se apropria do repertório revolucionário da esquerda, noves fora a intervenção divino-militar.
Enquanto isso, a imprensa se refere aos assaltantes de Brasília como “terroristas” e jamais como extrema-direita. “Terrorista” é como os insurgentes do estallido social chileno foram descritos. E também os mapuches. E também como Bolsonaro nomeava, ente outros, PT, MST e MTST.
É necessário atentar à relação entre meios e fins. Assim como é preciso cautela ao corroborar a violência estatal em nome do combate ao bolsonarismo, é preciso cuidado ao condenar os meios da revolta, porque os fins são inaceitáveis. É certo que, em 8 de janeiro, meios e fins se fundiram de modo grotesco, em uma performance política indefensável.
Mas se tornarmos ilegítimos todos os meios que permitem a mudança radical e que envolvem conflito, a esquerda não comprometerá seus próprios fins? Deveriam os franceses ter deixado a Bastilha de pé?
Ao criminalizar e punir como sempre fez a direita, para coibir insurgências como sempre desejou a esquerda, não avançaremos mais uma casa rumo ao fim da história?
Será que, ao equalizar os meios, não empataremos os fins?
A resposta é não. Pois se tudo der certo no governo Lula, instituições serão reconstruídas e a normalidade passada será reposta.
Mas onde esse normal nos levará? Não foram essas instituições e essa normalidade que nos trouxeram até aqui? O sucesso lulista não é Belo Monte?
Enquanto Bolsonaro assumiu a presidência dizendo que era preciso desconstruir muita coisa, Lula fala em reconstrução. Mas reconstruir para que? Reconstruiremos a sociedade e os dinamismos que produziram o bolsonarismo? O que imaginar para além da reconstrução e da desconstrução?
É possível apoiar a enfermaria lulista, enquanto se investe nos laboratórios de vida social fora da mercadoria, e do próprio lulismo? É possível defender e não defender as instituições? Apoiar e criticar a normalidade que se procura restituir?
Talvez isso só seja possível em um país que já aprendeu a torcer e a não torcer por Neymar.
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Um sentido inusitado do 8 de janeiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU