02 Fevereiro 2023
"A lógica liberal-fascista, que vê “capital humano” onde há pessoas, despreza os povos originários, que não organizam sua vida na dinâmica de acumulação. Trata-os como “peso social”. Os Yanomami mostram que é preciso romper com essa ideia", afirma Túlio Batista Franco, doutor em Saúde Coletiva pela Unicamp, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde coordena o Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da UFF, em artigo publicado por Outras Palavras, 31-01-2023.
“Isso [pensar o futuro] implica responsabilidade, em não negociar mais nada, em não aceitar os termos que o capitalismo impõe: de sermos uma sociedade da mercadoria e pronto.”
(Ailton Krenak)
Nesta semana o Brasil e o mundo viram estarrecidos os corpos famélicos que habitam o território Yanomami, em Roraima. Desnutrição grave associada a outras doenças abraçou parte significativa da população indígena em todas as faixas etárias, mas crianças e idosos são os mais atingidos. O nome para designar este povo, “yanomami”, foi produzido pelos antropólogos a partir da palavra yanõmami que, na expressão yanõmami thëpë, significa “seres humanos”.
Para o governo Bolsonaro de característica liberal-fascista, apesar do nome Yanomami, “seres humanos” é uma expressão em que ele não reconhece aos povos originários. Arrisco dizer que este governo se associa à versão do neoliberalismo, que qualifica o corpo como um “capital humano”, e como tal ele é monetarizável, ou seja, se atribui um valor aos corpos. O “capital humano” é calculado com base na sua origem social, padrão de consumo, renda, formação escolar, cor, gênero, etnia, etc… A sociedade financista se firma sobre estes conceitos, e se consolida na sociedade ao produzir um novo protagonista social, ao ressignificar o sujeito econômico cujo centro da sua atividade é a “concorrência”. Assim, o novo sujeito social, liberal, passa a ser o centro nevrálgico de disseminação do ideário liberal, e sua prática na microfísica das relações humanas. Foucault foi profético no seu curso no Collège de France em 1978, “O Nascimento da Biopolítica”, ao dar visibilidade à genealogia do neoliberalismo, e associá-lo à produção da vida, uma biopolítica associada à acumulação, competição, ganância, egoísmo e dinâmica concorrencial na vida cotidiana.
O “sujeito da concorrência” se institui a partir de um vigoroso processo de subjetivação liberal-fascista, que tem como instrumentos a linguagem direta e metafórica popular, mídias de fácil consumo abastecidas por “Fake News”, produção do inimigo, persecução e ódio. A subjetividade capitalística constitui modos de vida na população que leva à disseminação da lógica financista na economia, e instaura o fascismo, não só como regime político, mas, constitui no cotidiano “uma vida fascista”, onde as pessoas passam a operar sua vida tendo como referência os valores, pensamentos, ações que sustentam todo tipo de discriminação, tendo o racismo à frente, no caso brasileiro. Assim, o modo de vida fascista se institui entre nós.
“O povo da mercadoria’. É assim que o grande Xamã Yanomami Davi Kopenawa reconhece as pessoas que enxergam nas florestas os insumos que são precificáveis, o povo que “come tudo que vê pela frente”, os rios, montanhas, árvores, o ar. De forma predatória avançam com fogo sobre as florestas, formam imensas cicatrizes na terra em busca do ouro, deixam as montanhas sangrando, enfim, como nas palavras do Xamã, vão produzindo a “queda do céu”, o fim do mundo para os Yanomami. O imenso bioma amazônico com sua materialidade e espiritualidade, significa o mundo, e sua destruição levará ao fim do povo que ali habita. O pensamento liberal-fascista de tão obtuso e precário, é incapaz de reconhecer que a pessoa humana é parte constitutiva da natureza, e não sobreviverá sem que esta esteja viva e produtiva.
A lógica capitalística que pensa os corpos como “capital humano”, enxerga nos povos originários, que não organizam sua vida na dinâmica de acumulação, como vidas que por isto mesmo representam um peso social ao estado, e então, são dispensáveis, elimináveis, matáveis.
É com este pensamento que o governo liberal-fascista no Brasil pensou a política para os Yanomami, ou seja, sua eliminação facilitaria o almejado objetivo de apossar das suas terras, e explorar o ouro presente no subsolo. Mesmo que isto custasse as milhares de vidas humanas, silvestres, enfim, a destruição do bioma amazônico na região. O abandono é uma forma de homicídio, em se tratando de um povo, é genocídio. A exposição do povo Yanomami à inanição, violência, mercúrio e outros metais, maus tratos, malária, pneumonia, Covid-19, e outros males mortais foi um projeto de extermínio. Esta necropolítica ceifou a vida de 570 crianças, que morreram de causas evitáveis, dados subnotificados segundo indigenistas, assim como centenas de adultos foram mortos, debilitados, impedidos que estiveram de realizar as atividades corriqueiras de plantio, caça e pesca.
Toda trágica experiência atual dos Yanomami, a que o mundo assiste horrorizado, tem sua origem e fundamento no neoliberalismo, irmão siamês do fascismo. Um mundo de paz e harmonia, equilíbrio climático, bem-viver, será uma conquista que virá com o esforço coletivo de defesa da democracia, e impedimento a qualquer tentativa em estabelecer um governo autocrático e liberal de se estabelecer no Brasil. Estamos longe disto, mas o futuro começa a ser construído desde já.
Os esforços atuais de reconstrução do país devem ser ao mesmo tempo a reconstrução de um povo com base no seu próprio protagonismo. A democracia direta precisa estar associada à democracia representativa, trazendo as comunidades para opinarem sobre seu próprio futuro. Esse fazer cotidiano dos grupos e movimentos sociais é um aprender permanente com as experiências. A política tem uma dimensão pedagógica que lhe constitui fortemente, no modo freiriano de experimentar o mundo: aprender fazendo, lutando, esperançando, sempre no gerúndio, porque é um acontecendo, permanente e ilimitado.
É assim que se pensa ser possível promover uma ruptura com o pensamento e subjetividade liberal. O antídoto ao “sujeito liberal”, passa pela constituição do “sujeito solidário”, formado com base na ideia de comunidade, produção do comum, onde estão presentes práticas de vizinhança, proximidade não apenas territorial, mas de pensamento. Os Yanomami assim como outros povos originários podem nossos mestres nessa construção. Reconhecer que eles são os guardiões da nossa casa, que a floresta amazônica só existe porque eles estão lá, e que o “futuro é ancestral” por força de tornar possível a preservação da vida no planeta.
Os corpos infantis fragilizados das crianças Yanomami, sangram também a nossa alma. Serão dispositivos para produzir potência, força motriz social e histórica para a necessária e radical mudança do país e de seu povo.
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Quem são os corpos matáveis? Artigo de Túlio Batista Franco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU