21 Setembro 2022
“A decisão sobre a sobriedade está exclusivamente nas mãos dos indivíduos? Somente eles podem decidir não usar o carro, alterar o modo de aquecimento? Não. Se eles podem decidir ser mais sóbrios, consumir menos, mudar suas práticas, isso só pode ser feito de maneira eficaz se conectado ao contexto geral, ou seja, por um lado, se houver alternativas e, do outro lado, se mudarmos de sistema de valores, de estruturas cognitivas e de padrões sociais”.
A reflexão é de Dominique Méda, em artigo publicado por L’Obs, 09-09-2022. A tradução é do Cepat.
Dominique Méda é socióloga e dirige o Instituto de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Sociais (Universidade Paris Dauphine-PSL). Presidente do Instituto Veblen e membro do conselho de orientação da rede Le Lierre, ela também é coautora, com Florence Jany-Catrice, de Faut-il attendre la croissance?, que apareceu em 20 de setembro na Documentation Française em versão atualizada.
A sobriedade está no centro das atenções. O termo está sendo cada vez mais usado, inclusive por políticos que o vilipendiam e o equiparam a uma forma de regressão (querer ser sóbrio seria querer ser como os Amish – uma comunidade religiosa cristã relutante em usar tecnologias). No entanto, os usos e significados do termo permanecem muito diversos. Segundo alguns, a sobriedade refere-se essencialmente a comportamentos individuais que consistem em prestar mais atenção aos seus consumos e em tornar suas práticas mais eficientes (tomar menos banhos, baixar o termostato, desligar o wi-fi, andar menos de carro e avião...). Segundo outros, seria uma questão da sociedade se reorganizar profundamente para produzir e consumir menos.
A maioria dos dicionários indica que a sobriedade é uma qualidade relacionada a uma pessoa: “Comportamento de alguém que é sóbrio. Qualidade de quem se comporta com moderação”, escreve o Larousse. Na Grécia clássica, era uma virtude individual também erigida como princípio essencial que garantia a permanência da cidade. Em Platão, a temperança (sôphrosunê) é uma das virtudes cardeais, juntamente com a prudência, a coragem e a justiça. É sinônimo de moderação e se opõe ao excesso (hubris), à ilimitação, ao que não tem fim nem limites.
Aristóteles condena, por exemplo, a crematística, essa arte não natural de adquirir as riquezas que não busca satisfazer as necessidades legítimas da família, mas que visa o máximo de lucro. É um processo ilimitado, um mau infinito, condenado por isso mesmo. O filósofo, por outro lado, elogia a justa medida, a moderação, o limite, a prudência, que são virtudes individuais, mas também profundamente políticas.
Em Carta a Meneceu, Epicuro afirma que existem vários tipos de desejos:
“É preciso dar-se conta de que dentre nossos desejos uns são naturais, os outros vãos, e que dentre os primeiros há os que são necessários e outros que são somente naturais”.
Os desejos vãos envolvem o ilimitado: buscam um fim que nunca pode ser alcançado porque nunca há bens, poder ou honras em quantidade suficiente para satisfazer aqueles que os buscam. Os textos cristãos assumirão essa interpretação e também farão da moderação e/ou da temperança uma virtude.
A Modernidade constituiu uma ruptura radical com essa configuração, como evidencia a fábula de Mandeville (1714) e o escândalo que sua publicação causou: é de fato uma apologia ao orgulho, à vaidade, ao amor ao luxo e outros vícios, enaltecidos porque permitem multiplicar a produção de bens e, portanto, de prazeres. A Nação “goza de feliz prosperidade” precisamente porque cada ordem é “cheia de vícios”. Por outro lado, a simplicidade, a moderação e o contentamento (“esta praga da indústria”) a levarão à ruína.
Mas o ponto central é este: o enriquecimento individual – inclusive aquele obtido pelo vício – é fonte de prosperidade pública. Evocando a ideia revolucionária, defendida especialmente por Benjamin Franklin, de que o dever de todos é aumentar seu capital, Max Weber lembrou em Ética Protestante e o ‘Espírito’ do Capitalismo que “tal comportamento teria sido simplesmente proscrito na Antiguidade, assim como na Idade Média, como atitude indigna e manifestação de sórdida avareza”.
Em 1771, em seu livro Teoria do Luxo, Georges-Marie Butel-Dumont escreveu que a prosperidade advém da capacidade de um grande Estado estimular uma produção maior do que a satisfação das necessidades necessárias e, portanto, um consumo cada vez maior:
“Daí uma emulação sempre sustentada; daí uma abundante produção de substâncias e formas; daí uma grande população. A sequência desses efeitos traz a opulência, a força, em uma palavra, a felicidade duradoura de um império”.
Alguns anos depois, Adam Smith defenderá a divisão do trabalho que permite produzir cada vez mais bens e fazer fluir a abundância. A busca por uma produção cada vez maior está no cerne do progresso. O desejo de obter sempre mais é um dos seus motores mais potentes.
Nós nos encontramos mais do que nunca nesta configuração moderna que considera o volume da produção como um bom critério da riqueza global. O Produto Interno Bruto per capita, nosso indicador de referência, é considerado a medida da riqueza da nação: mede o valor agregado (pelos humanos) a cada ano à quantidade de bens e serviços produzidos e a renda deles derivada.
Mesmo que o PIB não leve em conta todas as produções – o trabalho doméstico, por exemplo –, as quantidades produzidas (portanto, transformadas) são muito decisivas. O consumo é um dos motores do crescimento (do PIB) e, de fato, é uma boa ação, senão um dever social, como evidenciam as pesquisas sobre o moral das famílias. Quanto mais consumimos individualmente, mais ricos somos coletivamente, como se todos os atos de produção contabilizados no PIB e o consumo fossem assim santificados. Toda compra de gasolina para fazer funcionar um iate particular, toda compra de passagem de avião, toda operação, mesmo que seja destrutiva para o meio ambiente, cria valor agregado e, portanto, aumenta o PIB e a riqueza social.
É com essa configuração moderna que temos que romper. De fato, não é de uma grande quantidade de bens e serviços que temos necessidade hoje (diferentemente dos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial e viram a criação do plano e das contas nacionais), mas de uma melhor distribuição – o que já afirmava John Stuart Mill em 1848, em seus “princípios de economia política”. Também não temos mais necessidade de um consumo adicional, mas antes precisamos garantir que aqueles que não conseguem satisfazer suas necessidades essenciais hoje possam fazê-lo.
Alguns continuam acreditando que nós poderemos continuar a produzir e consumir mais enquanto preservamos nossa herança natural. É o “mito do crescimento verde” denunciado por Hickel e Kallis: isso não é possível no momento e é perigoso apostar nisso. Portanto, devemos reduzir a quantidade de bens e serviços produzidos (fabricados, trocados, transportados etc.), bem como a quantidade de energia produzida, usada, consumida.
Essa decisão está exclusivamente nas mãos dos indivíduos? Somente eles podem decidir não usar o carro, alterar o modo de aquecimento? Não. Se eles podem decidir ser mais sóbrios, consumir menos, mudar suas práticas, isso só pode ser feito de maneira eficaz se conectado ao contexto geral, ou seja, por um lado, se houver alternativas e, do outro lado, se mudarmos de sistema de valores, de estruturas cognitivas e de padrões sociais.
Como imaginar que poderemos diminuir facilmente nosso consumo, que recorreremos a produtos sustentáveis, que adotaremos novas práticas se continuamos vivendo em um contexto em que tudo nos leva a um superconsumo? Não apenas a publicidade, é claro, e a obsolescência programada. Mas também a multiplicidade de produtos, a rédea solta propiciada pelo que Thorstein Veblen chama de consumo ostensivo, a ideia de que o consumo é um dever social, pois é fator de crescimento do PIB...
Precisamos de uma mudança real de valores e uma ruptura com as estruturas cognitivas, indicadores, referências e éticas em voga desde o período moderno. Precisamos de uma conversão de mentalidades, de outra relação entre seres humanos e natureza, da inserção dos primeiros na segunda, de uma nova articulação entre as ciências humanas e sociais e as ciências naturais. Precisamos substituir o paradigma da conquista e da exploração, mencionado por Aldo Leopold em Almanaque de um Condado Arenoso, por um paradigma do cuidado.
Precisamos incluir nossa produção e o PIB nos limites sociais e ambientais, que podem ser representados por dois indicadores: a pegada de carbono e o índice de saúde social. Precisamos limitar drasticamente o consumo ostensivo dos mais ricos, como lembrou o último relatório do IPCC:
“O consumo ostensivo dos ricos está na origem de grande parte das emissões em todos os países, ligado a despesas dedicadas a coisas tais como: viagens de avião, turismo, grandes veículos particulares e mansões”.
Essa mudança não ocorre facilmente. Baseia-se na implementação de novos regulamentos (da publicidade, das compras, dos usos – incluindo formas de cota, racionamento e proibição), na implantação de novos modos (veganismo, durabilidade dos objetos, simplicidade, autoprodução, circuitos curtos e locais) e no destaque dos benefícios dessas novas práticas (para a saúde, o bem-estar, o trabalho, a qualidade das relações sociais, a convivialidade, o ambiente de vida, a beleza...).
A boa vontade dos indivíduos, portanto, não será suficiente. Como podemos ver, trata-se de incentivar a implementação de novos sistemas, novos valores, novos quadros cognitivos, novos critérios e de uma nova ética. Mas também são necessárias políticas públicas acomodatícias. Como exigir que as pessoas andem mais a pé ou de bicicleta ou peguem o trem se as infraestruturas não existirem? Como conseguir um consumo menor de aquecimento em filtros de energia? Como podemos exigir menos consumo de carne se os produtos alternativos são muito caros e se nossa agricultura não foi radicalmente reformada?
Precisamos, portanto, de políticas públicas ambiciosas, decididas após consultas públicas aprofundadas, capazes de planejar ações de longo prazo, de coordenar os diferentes atores e níveis. Precisamos escolher entre todos os que existem um cenário central, detalhando a produção de energia, a realocação da produção, a renovação térmica dos edifícios, a transformação da nossa agricultura, a reforma das infraestruturas de transporte… Nós precisamos de detalhes sobre a distribuição das novas produções e a distribuição dos empregos no território, na forma como estes serão requalificados, quer se trate da artificialização dos solos, da gestão da água e das florestas, da reorganização das metrópoles, da reconversão das empresas e dos empregos.
Já temos vários tipos de cenários, especialmente os da RTE e da Ademe. Carbone 4 e I4CE também os ofereceram. France Strategy e Shift Project fizeram projeções para os empregos. Mas agora precisamos de mais detalhes sobre as diferentes dimensões desses cenários que terão de planejar ao mesmo tempo, em um mesmo documento, os investimentos necessários para vinte anos, sua distribuição em cada uma das políticas mencionadas acima, sua aplicação territorial, os empregos e as reconversões necessárias.
Hoje, temos ordens de grandeza, mas muitos pontos ainda devem ser esclarecidos: os investimentos anuais necessários são de 20 bilhões ou de 50 bilhões de euros? Como serão organizadas as qualificações necessárias: por exemplo, por quem serão formados os trabalhadores de que precisamos para realizar a renovação térmica dos prédios, que deve ser acelerada e abrangente? Fizemos poucos progressos desde o Relatório Parisot.
Quais são os locais onde será melhor proceder ao abandono e à reconstrução de novos edifícios em outros lugares? É melhor tentar atender aldeias e áreas rurais com novas linhas de trem, ônibus elétricos regulares ou outras soluções? Até que ponto devemos desmetropolisar? A construção de casas individuais deve ser proibida em determinados lugares? Quão rápido vamos converter a indústria automotiva? Quais são as áreas que destinaremos à agricultura orgânica e em quantos anos faremos a conversão?
Tantas questões sobre as quais é necessário organizar consultas e consultas densas (elas já deveriam ter começado) antes de decidir sobre o cenário detalhado. O trabalho substantivo empreendido pela rede Le Lierre sobre a sobriedade nas políticas públicas se enquadra nesses objetivos. Permitirá traduzir concretamente a ambição de transformação ecológica das políticas públicas e de formular propostas operacionais para responder ao desafio da sobriedade em uma trajetória de justiça e da adaptação diante dos desastres ecológicos. As próximas publicações sobre os grandes desafios da sobriedade (transição energética, mudanças econômicas, preservação de recursos, etc.) constituirão importantes contribuições para o debate público e outras tantas diretrizes para os tomadores de decisão públicos.
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Sobriedade: o fim do mito do crescimento? Artigo de Dominique Méda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU