17 Janeiro 2023
"Um governo realmente a serviço da nação será capaz de garantir direitos a todo os cidadãos, sem nenhuma forma de discriminação", escreve Élio Gasda, doutor em Teologia pela Universidad Pontifícia Comillas (Madri), pós-doutorado em Filosofia Política (Universidade Católica Portuguesa), professor da área de Ética Teológica e Práxis Cristã e diretor da Coleção Theologica FAJE.
A tentativa de golpe de Estado promovida por setores de extrema direita que invadiram e depredaram a sede dos Três Poderes em 08 de janeiro foi controlada. O extremismo criminoso deve ser enfrentado diuturnamente.
O tema dessa reflexão não é a vergonha internacional imposta ao Brasil pelo bolsonarismo, mas a afirmação do presidente Lula da Silva: “Nós não vamos permitir que a democracia escape das nossas mãos porque é a única chance de a gente garantir que esse povo humilde consiga comer três vezes ao dia ou ter direito de trabalhar”. Quais seriam os sinais que apontam para um governo mais democrático e próximo das aspirações “desse povo humilde”?
Reestruturação da política de controle de armas. O primeiro decreto assinado por Lula é de excepcional valor simbólico: governar é construir a paz fundada na justiça social. Lula reestabelece uma política de controle de armas mais severa. O decreto suspende o registro para aquisição e transferência de armas e munições de uso restrito por caçadores, colecionadores, atiradores e particulares (CACs), barra a autorização de novos clubes de tiro até a publicação do novo regulamento; reduz de seis para três o número de armas para o cidadão comum; proíbe a prática de tiro desportivo para menores de 18 anos; reduz acesso a armas e munições; autoriza porte de arma apenas a quem comprovar necessidade; ordena que todas as armas adquiridas a partir do decreto n° 9.785, de 2019, sejam recadastradas no Sistema Nacional de Armas.
Reativação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). O Conselho foi extinto por Bolsonaro em seu primeiro dia de governo. O Brasil conviveu com a liberação indiscriminada de mais de 1.500 agrotóxicos e voltou para o Mapa da Fome das Nações Unidas. O Consea, composto por membros do governo e da sociedade civil, assessora a presidência no combate à fome, prioridade número um de Lula da Silva. Por esse órgão consultivo foram elaboradas, por exemplo, políticas de incentivo à agricultura familiar, o Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa Nacional de Alimentação Escolar.
O governo tem 37 ministérios, com 26 homens e 11 mulheres, 10 pessoas negras e 2 indígenas.
Nunca houve tantas mulheres ministras de Estado no Brasil. Elas foram grandes responsáveis pela eleição de Lula da Silva. Sinal aponta para uma urgência: enfrentar o machismo violento enraizados nas estruturas sociais. No primeiro semestre de 2022, o Brasil bateu recorde de feminicídios, com 700 casos.
Pela primeira vez o Brasil terá um Ministério das Mulheres. Será comandado por Aparecida Gonçalves, ativista do movimento de mulheres, especialista no combate à violência de gênero. Houve um processo de destruição das políticas públicas para as mulheres durante o governo Bolsonaro. É preciso dar um basta ao machismo violento imposto às mulheres diariamente nas ruas e em suas casas. O programa Mulher Viver Sem Violência, que tem como referência a Casa da Mulher Brasileira, será retomado. A ministra se compromete a avançar na igualdade salarial entre mulheres e homens, no combate aos assédios moral e sexual.
As mulheres precisam conquistar cada vez mais espaço nas instâncias decisórias em todas as áreas. A saúde é uma área vital da sociedade. Nísia Trindade, será a primeira mulher a assumir o Ministério da Saúde. Foi a primeira mulher a presidir a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Vinculada ao Ministério da Saúde, a mais destacada instituição de ciência e tecnologia em saúde da América Latina.
Em 2021, Nísia foi condecorada com o grau de Cavaleira da Ordem Nacional da Legião de Honra da França, em reconhecimento à sua atuação nas áreas da Ciência e da Saúde. Sua gestão irá priorizar o Sistema Único de Saúde (SUS), único sistema de saúde pública do mundo que atende mais de 190 milhões de pessoas, sendo que 80% delas dependem exclusivamente dele para qualquer atendimento de saúde.
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações também será comandado por uma mulher: Luciana Santos. Em seu discurso de posse, a ministra disse que vai "honrar as milhares de mulheres que produzem e pesquisam, vai honrar a luta antirracista e a luta das pessoas negras por espaço nas pós-graduações e no campo de pesquisa”. Margareth Menezes, cantora e produtora cultural, assume o Ministério da Cultura. Menezes é embaixadora do Folclore e da Cultura Popular pela IOV/UNESCO, reconhecida pelo Mipad 100, da ONU, em 2021, como uma das personalidades negras mais influentes do mundo.
Para superar a herança do passado escravista brasileiro, foi recriado o Ministério da Igualdade Racial. Uma mulher será a ministra: Anielle Franco, jornalista negra do complexo de favelas da Maré (Rio de Janeiro), mestra em Relações Étnico-Raciais. Feminista antirracista, a diretora do Instituto Marielle Franco, iniciou em 2021 o projeto Escola Marielles de formação política de meninas e mulheres negras, periféricas e LGBTQIA+. Anielle é irmã de Marielle Franco, vereadora assassinada no Rio de Janeiro em 2018. “O fascismo, assim como o racismo, é um mal a ser combatido em nossa sociedade” (Anielle Franco).
A senadora Simone Tebet, presença fundamental para a eleição de Lula da Silva, será a ministra do Planejamento. “Estou indo para um ministério que hoje é extremamente masculino. Quero não só ter mulheres, mas mulheres pretas”. Sua secretaria terá equilíbrio de gênero: São 3 homens e 3 mulheres na hierarquia de comando. O ministério dos esportes terá uma mulher no comando pela primeira vez. Ana Moser trabalhará pela inclusão de atletas trans.
O protagonismo da mulher se dará também nas presidências do Banco do Brasil, com Tarciana Medeiros, e na Caixa Econômica Federal, presidida por Maria Rita Serrano. Ainda há mais. O protagonismo da mulher se dará em duas áreas que caracterizam o governo Lula: povos indígenas e meio ambiente.
Para combater 500 anos de genocídio e espoliação, pela primeira vez na história do Brasil um ministério é criado para os Povos Indígenas. E uma mulher indígena será ministra de Estado. Sônia Guajajara. Em maio de 2022, foi eleita pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo. Nascida na Terra Indígena Araribóia, é do ramo linguístico Tupi. Atualmente, mais de 160 línguas e dialetos são falados pelos povos indígenas no Brasil.
O Ministério tem por função reconhecer, garantir e promover os direitos dos povos indígenas; proteger os povos isolados e de recente contato; demarcar, defender e gerir territórios e terras indígenas; monitorar, fiscalizar e prevenir conflitos em terras indígenas e promover ações de retirada de invasores dessas terras. Integram o Ministério dois órgãos antes vinculados ao Ministério da Justiça e Segurança Social: Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), criado em 2015 por Dilma Rousseff para garantir a participação dos indígenas na formulação de políticas, mas foi extinto por Bolsonaro.
A Funai será presidida pela primeira vez por uma mulher. Joenia Wapichana vive na Amazônia, fronteira com Venezuela. Joenia, que tem Mestrado em Direito Internacional pela Universidade do Arizona, acumula uma longa trajetória de defesa dos povos originários. Foi a primeira mulher indígena a exercer a advocacia no país, também a primeira deputada federal indígena do Brasil.
O Ministério terá o grande desafio de aglutinar políticas voltadas aos 305 povos indígenas brasileiros e a defesa de seus territórios. O Brasil tem 722 terras indígenas conhecidas. Todas elas deveriam ter sido demarcadas até 1993, segundo a Constituição Federal, mas apenas 487 foram homologadas (conclusão do processo de demarcação). Além da Secretaria Executiva, o Ministério é formado por três secretarias com sete departamentos
Secretaria de Direitos Ambientais e Territoriais Indígenas, Secretaria de Gestão Ambiental e Territorial Indígena, Secretaria de Articulação e Promoção de Direitos Indígenas, Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Fundiários Indígenas.
A indicação de duas lideranças indígenas significa o reconhecimento efetivo dos povos indígenas e com destaque especial para o protagonismo das mulheres indígenas.
A comunidade internacional estava apreensiva com o Brasil com o aumento descontrolado do desmatamento, de invasão das terras indígenas e desestruturação dos órgãos de fiscalização ambiental durante governo Bolsonaro. Por isso, já no primeiro dia de governo, Lula da Silva assinou seis decretos: Criação da Comissão Interministerial Permanente de Prevenção e Controle do Desmatamento; Restabelecimento do Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal; Planos de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento no Cerrado, na Mata Atlântica, na Caatinga, no Pampa e no Pantanal, retomada do Conselho Nacional do Meio ambiente; Reativação do Fundo Amazônia paralisado no último governo, mesmo com doação de mais de R$ 3 bilhões repassada por Noruega e Alemanha. Noruega retomou o programa e o presidente da Alemanha anunciou a liberação de recursos. Lula assinou o retorno da Agência Nacional de Água (ANA) e do Serviço Florestal Brasileiro (SFB). Estas medidas são sinais fortes de proteção do meio ambiente.
O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, o mais estratégico do século XXI, será liderado por uma mulher: Marina Silva. 20 anos depois, a “filha da Amazônia” e amiga de Chico Mendes reassume o status de ministra de Estado: “A emergência climática se impõe. Queremos destacar aquele que é o maior desafio global presentemente para a humanidade. Países, pessoas e ecossistemas mostram-se cada vez menos capazes de lidar com as consequências. Os mais pobres são os mais afetados” (Marina Silva).
Marina assinou decretos fundamentais para a proteção ambiental como o restabelecimento de medidas de combate ao desmatamento da Amazônia e a revogação de norma de Bolsonaro que incentivava garimpo ilegal na Amazônia.
O Ministério terá seis secretarias: Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais; Meio Ambiente Urbano e Qualidade Ambiental; Mudança do Clima; Bioeconomia; Controle do Desmatamento e Queimadas; Povos e Comunidades Tradicionais e Desenvolvimento Sustentável.
Marina sonha que a futura geração seja sustentabilista: “A sustentabilidade não é uma maneira só de fazer, é uma maneira de ser, é uma visão de mundo, um ideal de vida. Esses ideais estão tomando conta do mundo. Nossos filhos e netos já nascerão sustentabilistas. Uns serão conservadores, outros serão progressistas, uns capitalistas, outros socialistas, mas todos serão sustentabilistas. Sem a natureza a gente não vive. Só os negacionistas não reconhecem o imperativo dessa agenda”.
Silvio Almeida assumiu o cargo de ministro dos Direitos Humanos e Cidadania dizendo que atos do ministério baseados “no ódio” serão revistos. Negro, o jurista, professor e filósofo é um dos maiores intelectuais brasileiros da sua geração. É autor do livro Racismo Estrutural (2019), um dos trabalhos mais influentes sobre o tema.
Silvio iniciou sua função com um discurso impactante: “Trabalhadoras e trabalhadores do Brasil, vocês existem e são valiosos para nós; mulheres do Brasil, vocês existem e são valiosas para nós; homens e mulheres pretos e pretas do Brasil, vocês existem e são pessoas valiosas para nós; povos indígenas desse País, vocês existem e são valiosos para nós; pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, intersexo e não binárias, vocês existem e são valiosas para nós; pessoas em situação de rua; vocês existem e são valiosas para nós; pessoas com deficiência, pessoas idosas, anistiados, filhos de anistiados, vítimas de violência, vítimas da fome e da falta de moradia, pessoas que sofrem com a falta de acesso à saúde, companheiras empregadas domésticas, todos e todas que sofrem com a falta de transporte, todos e todas que têm seus direitos violados, vocês existem e são valiosos para nós”.
A Igreja é Povo de Deus. Igreja não é governo. “A Igreja, em razão da sua missão e competência, de modo algum se confunde com a sociedade nem está ligada a qualquer sistema político determinado” (Gaudium et spes, n.76). A Igreja é sacramento de reconciliação, de justiça e de paz (1Pd 4,8). Contudo, não é uma seita nem uma sociedade à parte. O cristianismo é uma religião pública porque contém uma mensagem com princípios e valores morais sociais. A Igreja sempre está desafiada a encontrar seu lugar em contextos históricos determinados. “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (Gaudium et spes, n.1).
A Igreja não é indiferente aos assuntos humanos. Sua relação com os governos se inspira em sua Doutrina Social. Independente do governante, a Igreja é fiel à sua missão quando se pronuncia sobre a promoção da justiça nas sociedades humanas (Catecismo da Igreja Católica, n. 2420).
Sua relação com a sociedade civil e os poderes públicos se caracteriza pela cooperação na defesa da dignidade humana e do bem comum. “Tanto mais eficazmente exercitarão este serviço para bem de todos, quanto melhor cultivarem entre si uma sã cooperação, tendo igualmente em conta as circunstâncias de lugar e tempo” (Gaudium et spes, n. 76).
Em países tão injustos como o Brasil, é dever do governo e da sociedade diminuir a distância entre os muito ricos e os mais pobres. “A Igreja não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça” (Evangelii gaudium, n. 183). A Igreja apoia políticas públicas que protejam as mulheres, os idosos, as vítimas de violência, os povos indígenas, as minorias vulneráveis, a ampliação dos direitos fundamentais e o cuidado do meio ambiente.
Um governo realmente a serviço da nação será capaz de garantir direitos a todo os cidadãos, sem nenhuma forma de discriminação. “Necessitamos de dirigentes políticos que vivam com paixão o seu serviço aos povos, (…) solidários com os seus sofrimentos e esperanças; políticos que anteponham o bem comum aos seus interesses privados; que não se deixem intimidar pelos grandes poderes financeiros e midiáticos; que sejam competentes e pacientes face a problemas complexos; que sejam abertos a ouvir e a aprender no diálogo democrático; que conjuguem a busca da justiça com a misericórdia” (Papa Francisco, Mensagem aos participantes no encontro de políticos católicos – Bogotá, Dezembro-2017).
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Governo Lula da Silva: primeiras impressões trazem sinais de esperança - Instituto Humanitas Unisinos - IHU