Fatos e estatísticas que muitos se negam a enxergar. Debate interditado no país, por todos os lados. O personalismo impõe-se sobre ideias. Há comoção baseada não em projetos políticos, mas "nele", o personagem enquanto cresce a rejeição da sociedade a todos os políticos brasileiros, incluindo o presidente eleito: vitória da rejeição. Democracia, se é que existe, ainda em risco no Brasil.
O artigo é de Edu Montesanti, jornalista que escreve para as revistas brasileiras Caros Amigos, Pravda Brasil, Pravda Report (Rússia) e Global Research (Canadá). Também escreveu para o Diário Liberdade (Espanha) e Observatório da Imprensa (TV Brasil).
Luiz Inácio Lula da Silva não ganhou as últimas eleições, mas a rejeição a Jair Bolsonaro. Se a democracia brasileira estivesse salva agora como se trompeteia, haveria sanidade suficiente para levantar questões sobre nossa, no mínimo, frágil democracia. Mas tal discussão está impossibilitada em nossa atual "primavera democrática". Por quê?
Indigestas estatísticas a seguir, jamais colocadas em contexto nas análises nestes dias de celebração nacional e até mundial, à democracia do Brasil:
Pesquisa Datafolha publicada em outubro de 2022 mostrou que 35% da população aponta o PT como o partido com o qual simpatiza. Depois, aparece o PL com 20% da preferência e, após um abismo, surgem PSDB (3%), PSOL (3%), MDB (3%), PDT (2%) e Novo (2%). Uma fatia de 35% dos brasileiros declarou não ter simpatia por nenhum.
Apesar disso, o PT também não escapa à crise dos partidos. A mesma pesquisa Datafolha mostrou que a legenda sofre rejeição maior que o apoio obtido: 39% do eleitorado.
A última pesquisa do Datafolha de 14/10, calculou rejeição acentuada de ambos os líderes nas pesquisas: Jair Bolsonaro apareceu como rejeitado por 51% e Lula da Silva, 46%. Dos 49% que supostamente votariam no petista no segundo turno, 20% – quase a metade – o faria com a prioridade de “derrotar Bolsonaro”. Por sua vez, 63% dos eleitores de Bolsonaro atribuíram “grande importância” à religião na hora de decidir o voto, do qual enorme parcela vota nele devido à imagem de perseguidor religioso que se atribui a Lula da Silva.
No primeiro turno das eleições gerais em 2 de outubro, o que mais chamou a atenção, preocupando os colunistas principais meios de comunicação, foi o alto índice de abstenções, votos nulos e brancos.
Foram mais de 38 milhões de brasileiras e brasileiros que, registrados no Tribunal Supremo Eleitoral (TSE), não compareceram ou não votaram em nenhum candidato, segundo dados oficiais do próprio tribunal.
O número oficial de abstenção, ou seja, pessoas aptas a votar e cadastradas que não comparecem, foi de 32,8 milhões além de votos nulos e brancos que representaram 5,5 milhões, totalizado 38,2 milhões. Somam-se aproximadamente 10,9 milhões de pessoas aptas a votar (em condições de voto) e que não se cadastraram na justiça eleitoral – portanto, também se abstiveram.
Contando esses excluídos, são, pelo menos, 49,1 milhões de pessoas aptas a votar que não se registraram, não compareceram ou votaram branco e nulo, contra cerca de 57,3 milhões de votos obtidos por Luiz Inácio, primeiro colocado e 51,1 obtidos por Bolsonaro, segundo colocado. São 49,1 milhões de pessoas que, apesar das punições para votar no “menos ruim”, recusaram-se a votar em qualquer candidato ou simplesmente não regularizaram sua situação no TSE. Vale ressaltar que a maior abstenção do país, segundo dados oficiais, deu-se em Rondônia: cifra de nada menos que 24,7% do eleitorado.
Não existe sequer uma alma na face da Terra capaz de apontar um único projeto político, minimamente sólido, do então candidato presidencial petista neste ano. Até porque se houvesse projetos realmente garantes da democracia, hoje e desde a campanha o presidente eleito não se permitiria aliar-se a bolsonaristas, incluindo a forte cogitação de um deles, o fanático líder do agronegócio Nilson Leitão, ao Ministério da Agricultura. O único e claro projeto petista era ganhar a eleição, e garantir a continuidade do sufrágio eleitoral no futuro.
Não são necessários estudos no campo da ciência política para concluir que vitória eleitoral, tecla batida insistentemente pelo PT na campanha, não garante democracia se não houver programa que vá além de garantir o mero sistema de realização de eleições, considerando o óbvio: democracia vai muito além de sufrágio universal.
Está-se tratando aqui, outrossim, de um presidente eleito cujo partido político está dividido desde a campanha, divisão que aumenta agora que Luiz Inácio foi eleito devido a suas escolhas (a começar pela escolha de Geraldo Alckmin como vice).
Discute-se aqui um presidente eleito que, desde a campanha, tenta abertamente se aliar a bolsonaristas efetivando algumas "épicas" alianças neste sentido agora, nesta época de transição. Sem nenhum alarme, indignação necessária e natural em qualquer parte do mundo que estivesse envolvida em um contrassenso (para dizer o mínimo) como este.
Não é o caso do Brasil. Nem sequer análises críticas têm sido feitas. Mal se analisa nestes tempos. As divisões dentro do PT tampouco têm sido minimamente divulgadas. Poucos sabem que este conflito existe desde a campanha, intensificando-se nestes dias.
Questiona-se aqui um preocupante cenário eleitoral em que predomina a rejeição aos candidatos, não a escolha baseada na preferência e confiança. E os indicadores são graves.
Está havendo um retrocesso sutil em afirmar a antidemocrática ideia de que democracia resume-se ao sufrágio eleitoral a cada punhado de anos, uma economia financeirizada e concentradora de renda nas mãos do ínfimo topo de cima, o 1% dono do poder levando a um afogamento cada vez maior da implementação e até de um debate sobre políticas sociais consistentes, que modifiquem essa estrutura perversa brasileira que produziu Jair Bolsonaro – e seguirá produzindo, assim como estão as coisas, outros Bolsonaros na política.
Bolsonaro não é um fator isolado, que apareceu devido a um fenômeno sobrenatural na política possível de ser vencido nas urnas como traz, implicitamente, a ideia de "Primavera Democrática" no país atualmente. Aí está a nova composição parlamentar para evidenciar este fato (um tanto esquecido nas análises Brasil e mundo afora), a quem ainda tem alguma dúvida. Nem o "fenômeno" bolsonarista, movimento enraizado na política e na sociedade brasileiras (por mais dura que seja essa realidade, e há muitos (ir)responsáveis por essa ascensão também à esquerda), será ultrapassado através de uma "mexidinha" na política por mais acertada que seja em certos casos.
Muito antes da eleição de um parlamento altamente reacionário em outubro deste ano, o mais acentuado neste sentido desde a tal "redemocratização" em 1985, o candidato petista recusou este debate. O progressismo está cada vez mais neoliberalizado. O sistema o está tornando obsoleto, e ele não o é.
E não se está, aqui, prevendo nenhuma revolução social e política, mas apenas uma reforma dentro do capitalismo, um Estado de bem-estar social com democracia participativa: já está demais para a nação geral, algo sumariamente rejeitado não apenas pelos velhos aiatolás do mercado de sempre, mas inclusive por setores que se dizem progressistas hoje em dia, quando se fala no próximo governo do PT. Somos, estes poucos, os "radicais" ou, se eles estiverem de muito bom humor, "sonhadores", portadores de "utopias". Política com um pouco que seja de ética e coerência? Outro palavrão, assunto proibido nestes sombrios dias brasileiros em que "política é assim mesmo". Eis nossa "democracia". A qual poucos "utópicos" seres ousam questionar.
A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva foi, oficialmente para quem quer analisar os fatos como são, sem utopia, ingenuidade nem autoengano, a vitória da rejeição a Bolsonaro segundo as pesquisas e a própria retórica da campanha petista, focada em "derrotar" o bolsonarismo. O qual não foi nem será, jamais, derrotado através de revés eleitoral.
Vale reproduzir as afirmações do filósofo francês Jacques Rancière: "Essas elites naturais estão representadas por uma classe política que se autorreproduz pelo sistema eleitoral e que trabalha em simbiose com o poder financeiro. (...) O sistema eleitoral majoritário favorece que a representação parlamentar seja apropriada por dois blocos que governam em alternância e que praticam, em essência, a mesma política. Isso faz com que os blocos de esquerda e de direita, que disputavam o poder, tenham programas cada vez mais indiscerníveis."
Por que a rejeição ao PT, e a Lula particularmente, é tão alta, mais alta que a preferência? São questões que deveriam estar sendo discutidas. Se grande parte dos especialistas se recusa a levantá-las e levá-las para a sociedade, seguramente a história não tardará em cobrar seu preço. Já vimos esse filme mais de uma vez, e nunca aprendemos.
Quando falou-se em autocrítica do PT em dezembro de 2018, a presidente do partido Gleisi Hoffmann respondeu que isso não seria feito para não dar "armas ao inimigo". O peessedebista Alckmin era, como sempre foi, um desses inimigos mencionados pela cúpula petista há exatos quatro anos, tendo o ex-líder tucano ("tucanalha" como chamado pelos petistas até antes de ontem) também liderado o golpe contra a ex-presidente Dilma Rousseff em 2016.
Pois a campanha eleitoral de 2022 veio, com ela certa rejeição a Bolsonaro proporcionando vitória eleitoral ao PT, o partido não faz autocrítica nem dá mostras de que a fará, e muito pelo contrário: se tudo não bastasse, o novo companheiro Alckmin é vice-presidente na chapa petista. "Alckmin não é inimigo", justificou, logo após a escolha da chapa presidencial, a mesma Gleisi.
O PT precisa levar o Brasil a sério, e parar de jogar palavras ao vento. Em epítome, o Brasil precisa de política séria, não de troca de partido no poder.