30 Março 2016
Após duas décadas de governos progressistas se espalhando pela região com ganhos econômicos, políticos e sociais sem precedentes, especialmente em direitos humanos ano a ano reconhecidos pela ONU e por várias organizações internacionais, a América Latina enfrenta hoje o avanço dos agressivos setores neoliberais, secretamente apoiados e financiados pelo regime de Washington.
A entrevista é de Edu Montesanti, publicada por Diário Liberdade, 28-03-2016.
Nesta entrevista exclusiva, o jornalista, escritor e cineasta John Pilger fala sobre a guerra dos EUA contra a democracia na América Latina. "O imperialismo da era moderna é uma guerra contra a democracia. A verdadeira democracia é uma ameaça ao poder ilimitado, e não pode ser tolerada", diz ele.
Pilger produziu War on Democracy na América Latina e nos EUA em 2006, quando viajou por toda a Venezuela com o então presidente Hugo Chávez. Ele conta o que o motivou a produzir esse documentário, ganhador do prêmio One World Media Awards em 2008. O filme mostra como a escalada intervencionista dos EUA, aberta e encoberta, derrubou uma série de governos legítimos na América Latina desde a década de 1950.
Evidenciando o caráter democrático com profundas transformações sociais na Venezuela, John Pilger conta suas experiências no berço da Revolução Bolivariana. "As crianças estavam aprendendo história e artes, pela primeira vez; o programa de alfabetização da Venezuela era o mais ousado do mundo."
Ele também fala de suas experiências pessoais com o então presidente Chávez, entrevistado pelo cineasta. "Viajei com Hugo Chávez por toda a Venezuela. Nunca conheci um líder nacional tão respeitado e tratado com tanto carinho quanto Chávez. Ele era um homem extraordinário que parecia nunca dormir, consumido pelas idéias. (...) Ele foi também, incorruptível e resistente - resistente no sentido de que era corajoso".
Pilger avalia a cobertura de mídia em relação à Venezuela: através de dados precisos, evidencia como as pessoas ao redor do mundo têm sido mal informadas pela propaganda da mídia. Os grandes meios de comunicação internacionais passam a ideia de que os governos de Chávez e hoje de Nicolás Maduro são ditatoriais, enquanto escondem conquistas sociais e políticas impressionantes: por exemplo, que já em 2005 a Venezuela foi considerada pela Unesco Estado livre do analfabetismo, e pela FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), da fome.
A educação é gratuita e acessível a todos, do ensino básico ao universitário, assim como a assistência médica. Para a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe), a Venezuela era um dos países mais desiguais da América Latina pré-governo bolivariano, e hoje o país é o menos desigual da região, e possui hoje o melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) entre os países latino-americanos.
A Constituição de 1999, aprovada por referendo popular logo no primeiro ano de Chávez no Palácio de Miraflores, é o mais avançado do mundo em termos democráticos e de direitos humanos. Isso tudo, foi constatar John Pilger no país caribenho.
O destacado cineasta termina esta entrevista com previsões não muito positivas para o país que tem a maior reserva de petróleo do mundo, a Venezuela, e para a região mais rica em biodiversidade do planeta, exatamente a América Latina. "Este é um momento perigoso para a América Latina. (...) Os Estados Unidos querem a sua 'fazenda' de volta", diz John Pilger entre outras observações importantes a esse respeito.
Ele também fala de sua nova produção que será publicado em um futuro próximo, The Coming War between America and China (A Próxima Guerra entre os Estados Unidos e a China).
Eis a entrevista.
Obrigado, John, por conceder esta entrevista, estou muito honrado por ela. Você poderia comentar, por favor, sobre seu novo documentário The Coming War between America and China a ser publicado? O que ele vai trazer para nós, o que o motiva e qual seu objetivo com ele?
O novo filme descreve uma guerra fria, perigosa e desnecessária, entre Estados Unidos e China: a mesma guerra fria dirigida contra a Rússia. Ele examina o giro rumo á Ásia do presidente Obama - a mudança de dois terços do poder naval norte-americano para Ásia-Pacífico até 2020, como resposta militar à ascensão econômica da China.
O filme é gravado nas 'linhas de frente' insulares, do Pacífico e da Ásia: as Ilhas Marshall, onde os EUA testaram suas bombas nucleares durante a década de 1940 e de 50, e agora mantém uma base de 'Guerra nas Estrelas'; Okinawa, onde os EUA têm 32 instalações militares a menos de 400 milhas da China; Jeju Island (Coreia do Sul), onde uma base naval recentemente concluída permite que os EUA apontem seus mísseis Aegis à China; e Xangai, onde entrevistei várias pessoas sobre a ascensão da China; são vozes raramente ouvidas no Ocidente.
Como todos os meus filmes, o objetivo é desconstruir a fachada de propaganda que encobre muitos assuntos críticos, especialmente os de guerra e de paz.
O que o motivou a produzir o filme de 2006 gravado na América Latina, The War on Democracy?
A era moderna do imperialismo é uma guerra contra a democracia. A verdadeira democracia é uma ameaça ao poder ilimitado, e não pode ser tolerada. A maioria dos governos os EUA têm derrubado ou tentaram derrubar, desde o final da Segunda Guerra Mundial, democracias; e a América Latina tem sido o parque temático do seu poder corrupto a fim de impor sua vontade. Um "sucesso" norte-americano foi a destruição do governo de Arbenz na Guatemala, em 1954.
Jacobo Arbenz foi um reformador democrata e modesto que não acreditava que a United Front Company deveria regular seu país, e reduzir a vida de seu povo à servidão. Para Washington, ele representava o que o governo norte-americano diria mais tarde da Nicarágua sob os sandinistas: a democracia na Guatemala era "a ameaça de um bom exemplo". Isto era intolerável para os EUA, e Arbenz foi derrubado, pessoalmente humilhado e expulso de seu próprio país.
Este fato estabeleceu o padrão para todo o continente.
Você poderia comentar sua ideia, John, sobre a Venezuela quando deixou o país depois de ter produzido o filme? O que mais chamou sua atenção, e o que mudou, se algo mudou em suas ideias sobre o país caribenho e sobre a própria Revolução Bolivariana?
Minha impressão foi que a Venezuela estava passando por mudanças imaginativas, históricas, até mesmo épicas.
Nos barrios [grandes comunidades carentes], a democracia local na forma de conselhos comunais autônomos estava mudando a vida das pessoas. As crianças estavam aprendendo sobre a história e as artes, pela primeira vez; o programa de alfabetização da Venezuela era o mais ousado do mundo.
A taxa de pobreza caiu pela metade. O que me impressionou foi o orgulho que as pessoas comuns sentiam - o orgulho por suas vidas revitalizadas, pelo ineditismo das possibilidades que estavam adiante, e pelo governo delas, especialmente por Hugo Chávez.
Também ficou claro que a Venezuela não era revolucionária; que era e ainda é uma democracia social. Isso não quer dizer que muitas das ideias chavistas não são revolucionárias na essência; mas na prática a Venezuela apresentava semelhanças à Grã-Bretanha sob a reforma do governo do Attlee Labour de 1945-1951.
A velha guarda, aqueles que vivem extremamente bem no leste de Caracas e olham para Miami como uma espécie de lar espiritual, manteve o poder econômico se não o poder político. Assim, 'duas Venezuelas' existiram lado a lado; em termos revolucionários, isto foi e continua sendo insustentável.
Você entrevistou ex-presidente Hugo Chávez durante horas, John, além de ter viajado por toda a Venezuela com ele. Levando isso em conta e também o que viu no país, o que você pode dizer sobre Hugo Chávez como presidente e como ser humano?
Nunca conheci um líder nacional tão respeitado e tratado com tanto carinho quanto Chávez. Ele era um homem extraordinário que parecia nunca dormir, consumido pelas idéias. Certa vez, ele chegou a uma reunião de agricultores com uma pilha de livros debaixo do braço: Dickens, Orwell, Chomsky, Zola.
Ele tinha marcado passagens para ler para sua audiência, e as pessoas ouviram atentamente; ele se via como educador do povo. Ele também foi incorruptível e resistente - resistente no sentido de que era corajoso.
Ele também era espirituoso. Uma vez, caí no sono debaixo do sol durante uma de suas longas reuniões ao ar livre: acordei ouvindo meu nome sendo gritado, e as pessoas rindo. Para aliviar o meu constrangimento, 'El Presidente' apresentou-me com um vinho local. "Ele é australiano; ele gosta de vinho tinto," Chávez disse à multidão.
Posso dizer que nunca falei com outros políticos desta forma. Sua imperfeição se devia a que o poder principal fluía naturalmente dele; era caudillo e idealista-chefe da Venezuela, e quando morreu, o vácuo se tornou muito intenso.
Que semelhanças você vê entre a guerra econômica perpetrado pelos EUA contra Salvador Allende no Chile no início da década de 1970, e contra a Revolução Bolivariana na Venezuela hoje? Quanto você acha que esta guerra secreta por parte do regime de Washington, além da guerra de informação, tem influenciado a vitória da oposição nas eleições parlamentares na Venezuela, em dezembro de 2015?
Há uma terceira e contínua força dinâmica nos países latino-americanos, que tenta controlar os acontecimentos e destruir a justiça social - os Estados Unidos. A subversão dos EUA, por via direta ou através de fantoches em países que elegeram governos reformistas, os EUA promovem uma oposição permanentemente ofensiva. Quando você pensa sobre a doutrinação dos norte-americanos, que dizem seu país é um modelo de ideais, a ironia é medonha.
Esta 'guerra', como você descreve, tem sido significativa em todas as eleições da Venezuela - mas não tem sido o principal fator nas eleições parlamentares de 2015; pode ser comparada apenas em alguns aspectos à campanha dos EUA contra Allende. A queda dos preços do petróleo inflação, a escassez, a corrupção e a fadiga política foram elementos cruciais, para não mencionar a ausência dolorosa de Chávez.
Comente, por favor, a cobertura da mídia predominante em relação à Venezuela desde que Hugo Chávez venceu a eleição presidencial de 1998.
A Universidade do Oeste da Inglaterra (University of the West of England) publicou um estudo de mais de dez anos sobre como a Venezuela é noticiada pela BBC. Os investigadores analisaram 304 reportagens da BBC transmitidos ou publicados entre 1998 e 2008, e descobriu que apenas três delas mencionaram algumas das políticas positivas introduzidas pelo governo de Chávez.
A BBC tem se equivocado em noticiar, de forma adequada, qualquer uma das iniciativas democráticas, a legislação de direitos humanos, os programas de alimentação, as iniciativas de saúde ou os programas de redução da pobreza. A Missão Robinson, maior programa de alfabetização da história da humanidade, recebeu apenas uma menção passageira.
O jornal The Guardian não esconde sua animosidade contra Chávez. O mesmo aconteceu com muitos correspondentes dos EUA e europeus.
Existe uma exposição tão implacável do jornalismo de má-fé? Eu duvido. Como resultado, às pessoas nos EUA, no Reino Unido e em outros lugares têm sido negado qualquer percepção real das mudanças notáveis na Venezuela.
No final de seu documentário The War on Democracy, você disse que "o que aconteceu no Estádio Nacional, em Santiago no Chile [torturas e assassinatos por Rafael Videla], tem um lugar especial na luta pela liberdade e pela democracia na América Latina e no mundo. O imperativo é. 'nunca mais'".
Países da América Latina com governos progressistas têm vivido sob constante ameaça da "revolução colorida", método não-violenta para derrubar governos, aperfeiçoada pelo norte-americano Gene Sharp, professor de Ciências Políticas. Levando-se em consideração também vitória da oposição pró-EUA nas últimas eleições na Venezuela, na Argentina e do referendo na Bolívia, você teme uma nova dominância dos interesses dos EUA na região? Qual é sua perspectiva para a América Latina, e o que a Revolução Bolivariana significa para a região?
Este é um momento perigoso para a América Latina. Os ganhos obtidos pelas democracias sociais estão mais arriscadas que nunca. Os EUA costumavam a se referir à América Latina como sua "fazenda", nunca tendo aceitado a independência de Venezuela, Bolívia, Equador e, é claro, Cuba.
Os EUA querem sua "fazenda" de volta. Há muito a perder. Li outro dia que, de acordo com o Ministério da Saúde da Bolívia, 85 mil vidas foram salvas na Bolívia por médicos cubanos. É uma conquista dessa magnitude que está em risco agora.
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Guerra contra a democracia na América Latina. Entrevista com John Pilger - Instituto Humanitas Unisinos - IHU