05 Janeiro 2023
"Todos os fiéis cristãos que também participam do ofício sacerdotal, profético e real de Cristo estão envolvidos na difusão do Evangelho (LG n. 31,1). Ensinar, santificar, governar são funções simples do poder único da Igreja, que podem ser aumentadas ou também diminuídas conforme a escolha do princípio de subdivisão", escreve Vinicio Albanesi, professor do Instituto Teológico Marchigiano, presidente da Comunidade de Capodarco desde 1994 e fundador da agência jornalística Redattore Sociale e, junto com o Pe. Luigi Ciotti, da Coordenação Nacional das Comunidades de Acolhida (CNCA) da Itália, em artigo publicado por Settimana News, 03-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
No recente discurso à Cúria romana, de 22 de dezembro passado, o Papa Francisco voltou com insistência a frisar a necessidade da conversão: “O oposto da conversão é o fixismo, ou seja, a convicção oculta de não precisar de mais nenhuma compreensão do Evangelho. É o erro de querer cristalizar a mensagem de Jesus em uma única forma válida sempre. A forma, ao contrário, deve sempre poder mudar para que a substância permaneça sempre a mesma.
A verdadeira heresia não consiste apenas em pregar outro Evangelho (cf. Gl 1,9), como nos lembra Paulo, mas também em deixar de traduzi-lo nas linguagens e nos modos atuais, algo que fez o próprio o Apóstolo dos Gentios. Conservar significa manter vivo e não aprisionar a mensagem de Cristo”.
É um lembrete forte e direto. Os escândalos que explodiram na Igreja dizem respeito a dois grandes capítulos: a economia como é gerida dentro da Igreja institucional, os abusos contra menores e mulheres consagradas.
Escândalos que atingem a credibilidade da ação pastoral, porque realizados por pessoas consagradas: envolveu cardeais, bispos, sacerdotes e religiosos.
O Papa acrescentou: “Mas a grande atenção que devemos prestar neste momento de nossa existência se deve ao fato de que formalmente nossa vida atual é em casa, dentro dos muros da instituição, a serviço da Santa Sé, no próprio coração do corpo eclesial; e justamente por isso poderíamos cair na tentação de pensar que estamos seguros, que somos melhores, que não precisamos mais nos converter".
Diante de tais escândalos, o Papa agiu para corrigir institucionalmente os mecanismos de funcionamento da Cúria Romana, chegando até a revisar, tornando-o mais rígido, o livro VI do Código de Ação Penal para coibir o grande número de abusos contra menores e mulheres consagradas e não só, em defesa de pessoas injustamente violadas.
É lícito perguntar a razão de uma situação tão degradada. Apelar para a responsabilidade pessoal por comportamentos incorretos não é - na minha humilde opinião - suficiente.
É indispensável voltar ao cerne da potestas, que se tornou poder. As invocações ao Espírito que sustenta os corações e à capacidade de discernimento são enganosas. O nó é teológico e jurídico.
Uma primeira questão parece resolvida: o episcopado é sacramento; o sacramento da Ordem tem três graus. Com a consagração e a missão canônica, é confiado ao Bispo o poder ordinário, próprio e imediato, necessário para santificar, ensinar, governar, conforme reza o cân. 381 §1 do Código.
Essa síntese leva a usar o esquema sacramental do ex opere operato para qualquer função: a graça seria de qualquer forma distribuída, independentemente do comportamento pessoal. Se esse princípio é válido para a celebração dos sacramentos, na medida em que o celebrante é intermediário e não distribuidor de graça, o mesmo não se aplica às funções de ensino e de governo, nas quais a participação humana é indispensável.
A cisão entre a dimensão humana e a dimensão sobrenatural não pode ocorrer, traindo a própria natureza da Igreja. A Lumen gentium (n. 8) recorda: “Porém, a sociedade organizada hierarquicamente, e o Corpo místico de Cristo, o agrupamento visível e a comunidade espiritual, a Igreja terrestre e a Igreja ornada com os dons celestes não se devem considerar como duas entidades, mas como uma única realidade complexa, formada pelo duplo elemento humano e divino”.
A exaltação do sacramento da Ordem, que confia plenos poderes ao bispo e aos seus colaboradores (em todo o caso, todos clérigos), garante uma hierarquia que não pode declarar-se alheia à própria participação. Não é possível abusar e celebrar; violentar e pregar; ser injusto e administrar.
Acontece porque as funções hierárquicas são vividas independentemente da conduta própria e alheia, como se fosse algo diferente de si mesmo.[1]
O Concílio dedicou inutilmente o segundo capítulo da Lumen gentium (LG) ao sacerdócio comum dos fiéis: "O sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, embora se diferenciem essencialmente e não apenas em grau, ordenam-se mutuamente um ao outro; pois um e outro participam, a seu modo, do único sacerdócio de Cristo” (n. 10).
A distinção entre sacerdócio ministerial e sacerdócio comum foi acentuada a ponto de transformar os fiéis cristãos em "súditos", com a hierarquia que produz tensão entre autoridade petrina e Sínodo dos Bispos, episcopado e presbiterado, o presbiterado e povo de Deus
A gravidade consiste em ter vinculado tais distinções à vontade de Cristo, perdendo a medida da comunhão do povo que, com todos os seus componentes, é chamado ao anúncio o Evangelho
As discussões sobre a concessão dos poderes na Igreja em teologia e em direito são infinitas. A antiga distinção entre poder de ordem e o poder de jurisdição que, segundo alguns, parecia superada pelos textos do Concílio, na realidade ainda é vigente de acordo com o Código. A própria linguagem do Concílio não é tão explicativa, porque o tema se diferencia de acordo com as perspectivas dos vários documentos que tratam do mesmo assunto.[2]
É preciso recuperar, para a Igreja, a perspectiva do povo de Deus. Nessa dimensão, o poder assume um valor comunitário, com diferentes ministérios ou ofícios (munera em latim).
A finalidade dos ministérios é “pastorear e aumentar cada vez mais o povo de Deus”. Cristo quis que os bispos, sucessores dos apóstolos, “fossem pastores da sua Igreja até o fim dos tempos”.
Aqueles que entre os batizados recebem a insígnia da Ordem sagrada são colocados em nome de Cristo para pastorear a Igreja com a palavra e a graça de Deus. Sua função consiste em “presidir em lugar de Deus ao rebanho de que são pastores como mestres da doutrina, sacerdotes do culto sagrado, ministros do governo da Igreja” (LG, 20,3).
A perspectiva de ser pastor tem uma dimensão sagrada, que inclui as várias funções necessárias para guiar todas as pessoas no percurso de fé.
Todos os fiéis cristãos que também participam do ofício sacerdotal, profético e real de Cristo estão envolvidos na difusão do Evangelho (LG n. 31,1). Ensinar, santificar, governar são funções simples do poder único da Igreja, que podem ser aumentadas ou também diminuídas conforme a escolha do princípio de subdivisão.
Assim se explica a função participativa dos fiéis no santificar, no ensinar, no governar[3]:
- nas ações litúrgicas (cân. 230; 910 § 2; 911 § 2; 943, etc.)
- no ministério da Palavra (cân. 759 e 766)
- na assistência canônica aos matrimônios (cân. 1112)
- no cuidado pastoral das paróquias (cân. 517 § 2)
- na ação missionária propriamente dita (cân. 783)
- em ofícios e cargos eclesiásticos vários (cân. 228 §§ 1 -2)
- na administração dos bens eclesiásticos (cân. 1282)
- na celebração do Sínodo diocesano (cân. 460 e 463 § 2)
- no exercício do poder de governo (cân. 129 § 2)
- na atividade judicial dos tribunais eclesiásticos: como juízes (can. 1421 § 2), como assessores-consultores (cân. 1424), como auditores (cân. 1428 § 2), como promotores da justiça e defensores do vínculo (cân. 1435).
Aos fiéis leigos é confiada também a tarefa da animação da ordem temporal, com o direito-dever de cumprir tarefas seculares (cân. 225 § 2), incluindo a faculdade de instituir associações de fiéis (cân. 298-329), segundo às finalidades próprias de associações católicas (culto, pastoral, caridade).
Portanto, não existem objeções teológicas e jurídicas à participação mais ampla dos fiéis leigos nas funções de santificar, ensinar e governar na Igreja. De fato, em algumas partes do mundo, a aplicação concreta de tais funções já está em ato (basta pensar nas missões).
A pergunta forte que fica é: por que essa enorme prudência em introduzir leigos no âmbito da vida da comunidade cristã? Muitos esforços foram feitos para justificar teológica e juridicamente a prevalência - imprópria - da hierarquia. Muitas vezes a justificativa apresentada é até teológica ("assim quis Cristo"), manipulando a própria teologia. Que tal ingerência/prevaricação possa ser filha do poder/ciúme é uma suspeita legítima.
O apelo à conversão que o Papa Francisco lembrou continua válido. O passo seguinte continua a ser a revisão da legislação, ainda contraditória porque recorda o esquema da societas perfecta, doutrina que inspirou o antigo Código de 1917, cujos vestígios ainda estão presentes na nova versão de 1983.
Enquanto isso, o sumo pontífice providenciou, na forma de motu proprio e cartas apostólicas, algumas modificações, que devem ser inseridas em uma nova visão jurídica que recoloque hierarquia e fiéis leigos na visão do único povo de Deus.
Os âmbitos são conhecidos: a colocação da Santa Sé na gestão universal da Igreja, as funções nas dioceses e nas paróquias, passando a uma verdadeira colaboração e não à simples consulta: far-se-ia justiça à comunhão eclesial, sem perturbar princípios teológicos, recuperando a unidade do povo de Deus.
[1] É muito significativo um parágrafo da Regra de São Bento sobre o Abade: “Por isso o Abade nada deve ensinar, determinar ou ordenar, que seja contrário ao preceito do Senhor, mas que a sua ordem e ensinamento, como o fermento da divina justiça se espalhe na mente dos discípulos; lembre-se sempre o abade de que da sua doutrina e da obediência dos discípulos, de ambas essas coisas, será feita apreciação no tremendo juízo de Deus. E saiba o Abade que é atribuído à culpa do pastor tudo aquilo que o Pai de família puder encontrar de menos no progresso das ovelhas".
[2] Cf. A.M. Sticklker – J.B. Beyer, Sacra Potestas, Roma, PUG, 1982; Aa.Vv., Potere di ordine e di giurisdizione, Edizioni Paoline, Roma, 1971,
[3] Cf. V. Albanesi, l sogno di una Chiesa diversa – Un canonista di periferia scrive al Papa, Àncora, Milão 2014, pp . 49-56.
Como sempre, é um prazer ler Dom Vinicio. Como especialista em direito canônico, ele consegue trazer à tona as fragilidades teológicas de uma determinada prática pastoral em uso. Acredito que o esquema do ex opere operato deveria ser revisto, se não abolido completamente. Considero-a uma herança tridentina que não consegue mostrar uma verdade cada vez mais evidente hoje: um determinado comportamento contradiz a graça do sacramento recebido. Em outras palavras, o testemunho, que eu dou, mostra ou não se a graça opera em mim, se é a favor do Evangelho - o manifesta, o torna visível - ou se é contra o Evangelho - o nega. A relação entre natureza e graça precisa ser decididamente repensada do ponto de vista teológico-canônico e, portanto, sacramental.
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“Sacra potestas”, poder e sinodalidade. Artigo de Vinicio Albanesi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU