Abuso sexual do clero e as mulheres na Igreja e na sociedade. Problemas não resolvidos que afligem um pontificado extraordinário

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06 Fevereiro 2018

Uma das características mais notáveis do Papa Francisco é sua capacidade — demonstrada ao longo de toda sua vida — de ouvir com cuidado pontos de vista diferentes do seu e depois estar disposto a mudar de opinião e até mesmo mudar totalmente seu pensamento sobre uma determinada questão.

É ainda mais notável por se tratar de um homem de 80 anos, um momento de vida em que grande parte das pessoas já tem sua maneira profundamente estabelecida e não está exatamente receptiva às opiniões que ameaçam suas próprias certezas.

O comentário é de  Robert Mickens, publicado por La Croix International, 02-02-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.

Mas a respeito de pelo menos duas questões importantes que representam um desafio para a credibilidade da Igreja Apostólica Romana e seu futuro, muitos católicos sentem que Francisco tem estado menos disposto a ouvir outros pontos de vista. Mais precisamente, eles o veem empurrando com a barriga enquanto outros tentam forçá-lo a lidar com estas questões.

A primeira é o escândalo mundial de abuso sexual do clero, mais especificamente como fazer com que os bispos que ignoraram, tentaram esconder ou não reportaram crimes clericais se responsabilizem por eles.

A segunda é o papel da mulher na Igreja e na sociedade, especificamente como abordar a injustiça de uma comunidade católica global (especialmente o Vaticano) que continua tratando as mulheres, em grande parte, como membros de segunda classe e excluindo-as de quase todas as mais importantes posições e estruturas que implicam tomada de decisão.

Os últimos serão os primeiros, então vamos começar pelas mulheres

Recentemente, um grupo católico internacional de mulheres chamado "Voices of Faith" (VOF) - em português, Vozes da Fé - anunciou que, pelo quinto ano consecutivo, organizaria um grande evento em Roma para celebrar o Dia Internacional da Mulher, no dia 8 de março.

Desde o seu início em 2014, o encontro é realizado dentro do Vaticano, mas este ano o local foi transferido para a sede da Companhia de Jesus, nas proximidades.

Isso porque o cardeal Kevin Farrell — prefeito do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida — não autorizou o grupo a realizar o evento dentro dos muros do Vaticano a menos que retirasse o convite especial a Mary McAleese, ex-presidente da Irlanda, e outras duas mulheres.

A organização do VOF — Fundação Goetz e várias outras fundações familiares católicas (principalmente dos Estados Unidos) — recusou-se a cumprir a exigência do cardeal e buscou refúgio com os jesuítas, que têm apoiado suas reuniões em Roma há anos.

Mas, ironicamente, o primeiro Papa jesuíta da história tem apoiado muito menos. Na verdade, tem sido invisível. O primeiro evento do VOF em 2014 foi realizado do outro lado da rua de sua residência, em um pequeno cinema na antiga sede do Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais. Embora a organização tenha abertamente convidado Francisco a se unir a cerca de 200 pessoas (em sua maioria mulheres) que estavam participando desse evento histórico, o Papa nem sequer respondeu.

Não apareceu. Não mandou mensagem. E nem sequer publicou alguma notícia breve no L'Osservatore Romano.

O desprezo do Papa frente a uma organização católica feminina — mesmo que tenha sido no simbólico Dia Internacional da Mulher — não é prova suficiente para dar um veredicto negativo sobre sua política ou ponto de vista sobre as mulheres na Igreja e na sociedade, mas indica um problema que muitas pessoas acreditam que ele tem a respeito da questão.

Esse problema pode ser resumido no comentário que um participante fez para mim no primeiro encontro do VOF: "Uma coisa que realmente esperamos é que ele (o Papa Francisco) sente-se com algumas teólogas – há muitas – e as ouça, em vez de se basear nos estereótipos da teologia feminista que alguns na Igreja têm conseguido perpetuar."

Até agora ele não o fez. E isso é um problema.

Sim, ele criou uma comissão para estudar o papel das diaconisas na igreja primitiva. E, como alguns têm apontado, isso fez com que as pessoas pudessem falar com mais liberdade sobre a possibilidade de pelo menos algum tipo de ordenação ministerial para mulheres. Francisco abriu, ainda que ligeiramente, uma porta que tinha sido fechada a chaves.

Mas a respeito das nomeações, tem feito muito pouco para que as mulheres atinjam posições proeminentes com o Vaticano. Ele certamente não fez nada para superar as metas definidas pelos outros papas.

Francamente, não há muito mais a dizer. A linguagem do Papa Francisco ao se referir às mulheres muitas vezes é misógina e antiquada. Provavelmente, deve-se, pelo menos em partes, à sua educação latino-americana e à formação eclesiástica e clerical que recebeu — mesmo que ele tenha corajosamente tentado denunciar os aspectos negativos de ambas as influências.

As mulheres representam pelo menos metade dos membros da comunidade católica. E certamente superam significativamente os homens em termos de participação na missa e em outros eventos litúrgicos, bem como no envolvimento ativo em projetos de serviço e caridade organizados pela Igreja.

Sua voz legítima não pode e não deve ser negada em estruturas de decisão da Igreja de qualquer nível. E os homens da Igreja — inclusive o Papa — precisam escutá-la com mais atenção, como o pedido das mulheres de explorar um papel ministerial maior.

O Papa Francisco tem de fazer mais para ganhar a confiança das mulheres católicas. E pode fazê-lo encontrando-se regularmente com elas, o que até agora ele não parece ter feito de forma significativa.

Indo em frente

Não há necessidade de discutir em detalhes as deficiências desse pontificado em relação a abuso sexual. Pura e simplesmente, e apesar do que dizem os defensores do Papa, lidar com essa questão também não foi prioridade para Francisco. Ele levou dez meses como Papa para mencionar publicamente a onda de abuso sexual — e de maneira casual.

Mas ele avançou muito, apesar de ter tido que lidar com um problema que estava parado no pontificado do antecessor natural da Baviera. O crédito é de pelo menos dois cardeais do C9, o Conselho dos Cardeais — Sean O'Malley, de Boston, e Reinhard Marx, de Munique —, que estavam entre os bispos mais proativos da Igreja em relação ao abuso sexual do clero.

Apesar de terem tentado fazer com que Francisco também fosse mais proativo sobre a questão, o Papa demonstrou ambivalência. Ele tem basicamente seguido os protocolos que já estavam em vigor antes de sua eleição ao papado e teve pouca iniciativa para fortalecê-los ou expandi-los. Sua principal falha, porém, foi a falta de habilidade ou falta de vontade de criar uma forma de responsabilizar os bispos por seus erros.

Ele quase conseguiu em junho de 2015, quando aceitou a recomendação da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, presidida pelo cardeal O'Malley. O Papa concordou em formar uma seção judiciária no âmbito do Tribunal da Congregação para a Doutrina da Fé que teria autoridade para julgar os bispos "em matéria de crimes de abuso de poder ligados ao abuso de menores".

Mas passou-se o tempo e, de repente, a seção judiciária da CDF ainda não existia depois de um ano. Finalmente, em junho de 2016, depois de doze meses, o Papa Francisco elaborou a seção do tribunal da CDF e emitiu um "motu proprio" encarregando a Congregação dos Bispos e outras três congregações que lidam com bispos em outras áreas - Igrejas orientais, ordens religiosas e territórios de missão (Congregação para a Evangelização dos Povos) - de julgar prelados "negligentes".

Nenhuma desses escritórios demonstrou um pequeno sinal de transparência sequer ou liberou qualquer informação sobre os casos contra os bispos que possivelmente deveriam administrar. Assim, a questão da responsabilidade dos bispos mais uma vez desapareceu nas sombras. Ou seja, até a viagem recente do Papa à América do Sul.

Em seus comentários improvisados aos repórteres do Chile, ele próprio colocou a questão de volta na primeira página dos jornais quando, num momento de irritação, fez uma defesa ferrenha do bispo Juan Barros, acusado há anos de encobrir casos de abuso sexual cometidos por um padre mentor.

Sem dúvida, Francisco insistiu que os acusadores estavam difamando o bispo. Depois, no voo de volta para Roma, ele disse aos jornalistas que ficaria ao lado de Barros até que visse provas que sustentassem as acusações.

Uma semana depois, a assessoria de imprensa do Vaticano emitiu um comunicado dizendo que o Papa “tinha recebido algumas informações há pouco tempo" sobre o caso de Barros e havia decidido enviar ao Chile o arcebispo de Malta, Charles Scicluna, o principal investigador do Vaticano sobre casos de abuso sexual do clero, para investigar a situação com maior profundidade.

Por que a reviravolta repentina? O que foi essa "informação" que o Papa recebeu e há quanto tempo recebeu? O comunicado do Vaticano, como de costume, era vago. Não dizia se eram novas informações, apenas que eram "algumas" informações.

Francisco e seus assessores obviamente sentiram que a credibilidade do Papa em relação aos casos de abuso sexual estava fortemente abalada. Ao enviar Scicluna para o Chile, o Papa demonstrou vontade de ser vulnerável e até de ser provado que sua avaliação do bispo Barros estava errada. E deve ser aplaudido por isso. É outro passo importante em sua abordagem para lidar com as várias facetas da onda de abusos sexuais do clero, a qual evolui lentamente. Mas não deve ser o último.

Mandar um enviado do Vaticano para investigar as ações ou a falta de ação de um bispo sul-americano é apenas um ato soberano, administrativo e pessoal. É uma ação pontual isolada de qualquer mecanismo permanente, transparente e claramente estruturado para investigar e julgar os bispos da Igreja. Necessita-se de um mecanismo assim com urgência. E talvez o Papa Francisco finalmente libere (ou já esteja liberando) um processo que vai acabar atingindo isso.

Em um pontificado extraordinário e que inspira esperança em outros âmbitos, é decepcionante ter que admitir que o Papa Francisco demonstrou falta de energia e iniciativa em lidar com casos de abuso sexual no clero e em explorar maneiras de melhor integrar as mulheres em todas as facetas da vida na Igreja Católica.

Este Papa é muito melhor do que isso. E pode fazer melhor em ambas as frentes.

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