"O governo Lula tem desafios enormes, mas precisará, desde logo, nos primeiros dias, apontar o caminho que deseja seguir em relação aos povos indígenas", escrevem Roberto Antonio Liebgott, Francisco Eduardo Holanda e Ivan Cesar Cima, integrantes do Cimi - Sul, em artigo publicado por Conselho Indigenista Missionário - Cimi, 02-01-2023.
No último ano do governo Bolsonaro houve a reafirmação das práticas anti-indígenas na execução das ações públicas, tendo sido elas, em geral, alicerçadas nos crimes contra o patrimônio público, o meio ambiente, às vidas humanas e poucas, a rigor, vinculadas à defesa dos direitos individuais, coletivos e territoriais.
A estrutura de Estado, seus serviços, os recursos humanos e orçamentários (a exemplo da Funai – Fundação Nacional do Índio, Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Ibama – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, ICMBio – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) acabaram disponibilizados para agilizar o desmantelamento de direitos, avalizar a exploração de recursos naturais através da garimpagem, grilagem, retirada de madeira e a concessão de certificações aos ruralistas para requererem, primeiro, a posse e depois a propriedade de áreas indígenas e quilombolas. Ações estas que estão culminando com a devastação acelerada – como nunca se viu – do Meio Ambiente. As terras foram desmatadas, incendiadas e rasgadas pela saga devastadora de grupos econômicos especializados em destruir e matar.
Durante o governo Bolsonaro, direitos constitucionais de indígenas e quilombolas foram tratados como privilégios. Dentre os agentes e órgãos destacam-se a presidência da Funai e do Incra, talvez, entre todos, tenham sido aqueles que mais se omitiram, negligenciaram e atuaram contra os povos indígenas junto aos poderes Legislativo e Judiciário. Através de suas presidências agiram como inimigos, perseguindo, criminalizando e sonegando direitos, fazendo da gestão pública, coisa privada.
Os discursos e as teses propagadas por dentro do governo, apesar de sombrias e nefastas, contagiaram, ou induziram, partes das sociedades e de muitas autoridades, - inclusive do Judiciário, a pensarem como eles, tratando os indígenas e quilombolas como aqueles que deveriam, para sobreviverem, integrarem-se à comunhão nacional, ou seja, retomando perspectivas colonialistas das mais cruéis e perversas. Os discursos e as práticas indigenistas configuraram, o que os povos vêm denunciando ao longo dos últimos quatro anos, as pretensões genocidas do governo Bolsonaro.
Depois dessa breve introdução, contextualizando as práticas e relações estabelecidas pelo governo com os povos indígenas, passamos a descrever os fatos que demonstram o quão nefasto foi o governo de Bolsonaro para os povos originários e comunidades tradicionais ao longo de 2022 e que demonstram as estratégias de desumanização, desconstrução de direitos, desterritorialização, devastação do meio ambiente e da integração dos povos à sociedade “branca”.
As demandas pela implementação de políticas públicas diferenciadas são pautas perenes dos povos indígenas e suas organizações. Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 há uma intensa mobilização pelo planejamento, definição e execução de ações e serviços que assegurem saúde, educação, demarcação, proteção territorial e programas de autogestão e sustentação econômica nas terras demarcadas. Ao mesmo tempo, exigiram-se medidas que assegurassem às comunidades e povos, que se encontram em áreas não demarcadas, devolutas ou acampamentos de beira de estradas, assistência e garantias de que essas realidades de vulnerabilidades seriam transitórias. Houve avanços significativos desde 1988, especialmente no tocante ao protagonismo e autonomia dos povos nas discussões das polícias públicas e nos demais fóruns onde eram debatidos os temas dos indígenas. Os avanços, ao longo dos anos, não foram suficientes para compor o quadro das garantias constitucionais e nem assegurar a implementação de políticas permanentes. Mas se caminhava, aos trancos e barrancos, em espaços importantes de diálogos, como nos conselhos de controle social.
Bolsonaro, em seu governo, rompeu com a possibilidade de participação social nas políticas públicas. Suspendeu as demarcações de terras e tornou a questão indígena um espaço de conflitos sociais, culturais, religiosos, assistenciais e territoriais.
No que se refere à educação escolar, se pode constatar o esgotamento da perspectiva das diferenças. Nada se avançou em termos de implementação dos currículos diferenciados, da educação bilingue e a gestão ficou toda sob o controle das secretarias estaduais de educação, que onde havia maior ou menor sensibilidade, se buscaram canais de diálogo com os indígenas, mas sem, no entanto, avançar na educação escolar prevista na Lei de Diretrizes e Base (LDB) e dos Territórios Etnoeducacionais. Há, por fim, que se dizer que as escolas são precárias, os prédios, onde existem, estão em condições degradantes, os professores indígenas não recebem formação e as crianças não conseguem se adaptar aos modelos de ensino desvinculados das culturas e modos de vida nas comunidades.
A atenção à saúde indígena foi, ao longo das últimas décadas, espaço de ampla participação indígena, até porque a Lei Arouca, 9.836 de 1999, que criou o Subsistema de Atenção à Saúde, prevê que a base da política é o Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena (34 distritos no país) que deve ser gestado, preferencialmente, pelos indígenas e todo o planejamento, ações e serviços devem contar com a participação das comunidades e, para, além disso, contar com os espaços específicos de controle social, através dos conselhos locais e distritais de saúde. Pois, até na atenção à saúde se regrediu no governo de Bolsonaro. Neste último ano, novos cortes orçamentários comprometeram ainda mais as ações e serviços nas comunidades. A atenção primaria ficou fragilizada e comprometeu os salários de servidores, funcionários e agentes indígenas de saúde. O saneamento básico, gargalo histórico, foi relativizado e as comunidades indígenas, que não estão em terras demarcadas, sofreram com a ausência das equipes de saúde, a exceção daqueles municípios que têm convênios com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) e que se comprometeram com as comunidades em dar-lhes acompanhamento. Mais do que tudo, os indígenas sofrem com a falta de água potável. O controle social, a partir dos distritos, deixou de existir, funcionando, de forma relativa e muito atrelado à Sesai, o Fórum de Presidentes dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (Condisi).
A VI Conferência Nacional de Saúde Indígena foi realizada no mês de novembro de 2022. Ao que parece, somente foi viabilizada para que não constasse na história que uma conferência, iniciada no ano de 2018, com suas etapas locais e distritais concluídas no governo anterior, permanecesse quatro anos estagnada, sem nenhuma resposta aos povos indígenas. Realizada de forma tardia, não contribuiu, em nada, com a proposição de uma Política Nacional de Saúde para os Povos Indígenas (PNASPI), porque ficou atrelada aos interesses políticos e mesquinhos daqueles que organizaram a etapa nacional da conferência. Houve, em função disso, severas críticas quanto à condução da ‘discussão’ da proposta de portaria para a criação da nova PNASPI, já que foi apresentada, em plenário, somente no momento da sua votação, sem nenhuma discussão prévia com o movimento indígena e as instâncias de controle social da saúde indígena, mas, sobretudo, quanto ao conteúdo da PNASPI, porque nela não há uma definição clara de prioridades, representando um grave retrocesso. A nova PNASPI nega a Covid-19, nega o direito à saúde aos indígenas em contexto urbano, nega a medicina tradicional indígena (transformada em um ‘sistema’ de saúde), nega a prioridade para a autonomia administrativa e financeira dos distritos, e esconde a intenção de privatizar a saúde indígena por meio de uma entidade público-privada (nos moldes do antigo INSI).
O governo Bolsonaro cumpriu sua promessa quando disse que não demarcaria nenhum centímetro de terra. Depois de quatro anos, os poucos procedimentos administrativos de demarcação, que foram movimentados pela Funai, só se deram por ordem judicial, mesmo assim, o órgão indigenista não adotou medidas concretas no sentido do cumprimento das determinações. A exemplo da criação de um Grupo Técnico para realização dos estudos circunstanciados de identificação e delimitação da Terra Kaingang de Carazinho, no Rio Grande do Sul, onde, embora no Diário Oficial da União tenham sido explicitadas a composição e funções do grupo de trabalho, este não foi à campo.
Além de não demarcar as terras, o governo promoveu o desmonte da fiscalização e proteção dos territórios, liberando-os para a saga exploratória. Foram impactados os territórios dos povos livres, comunidades que optaram por não manter nenhum tipo de contato com a sociedade envolvente e se encontram em situação de isolamento voluntário, especialmente nos estados da Amazônia. Os demais territórios foram dramaticamente invadidos. Na prática o governo de Bolsonaro criou três categorias de indígenas: aqueles que tiveram suas terras demarcadas e as demandas fundiárias resolvidas em governos anteriores; aqueles que não tiveram os procedimentos de demarcações concluídas e nem os terão por uma decisão de governo; e os indígenas sem acesso à terra e sem nenhum direito sobre as áreas reivindicadas.
Quanto aos povos em áreas com a situação fundiária resolvida, o governo Bolsonaro fez vistas grossas a invasões e até a loteamentos de partes dessas terras. Exemplo prático dessa situação é o caso da Terra Indígena Karipuna, em Rondônia. Com o apoio do Cimi e do Greenpeace, as lideranças Karipuna denunciaram, em diversos momentos do governo Bolsonaro, em fóruns nacionais e internacionais, o oferecimento, na internet, de lotes de terras daquele território. Em diversas ocasiões, nossos missionários puderam verificar, in loco, máquinas e plantações de invasores naquela terra indígena. Providências só foram tomadas, graças a decisões do Poder Judiciário, que determinaram ações contra os invasores, inclusive prisões.
Já para aqueles povos que tiveram, ao longo dos anos, os procedimentos demarcatórios iniciados, esses processos foram engavetados. Alguns procedimentos foram, inclusive, devolvidos pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública à Funai. No entendimento do governo Bolsonaro, as demarcações deveriam ser embasadas pela tese do marco temporal da Constituição Federal de 1988, defendida por ruralistas.
Para os povos e comunidades que pleiteiam demarcações, no entender do governo, estão fora do alcance dos direitos coletivos expressos nos artigos 231 e 232 da CF/1988, portanto, são caracterizados como integrados à sociedade nacional. Incluem-se nessa conceituação do governo, todas as comunidades, grupos ou famílias indígenas que vivem em contextos urbanos, as quais, não devem ser estendidas ou fornecidas as políticas públicas diferenciadas de saúde, educação, autossustentação entre outras. Negaram, inclusive, vacinação contra a Covid-19 para comunidades indígenas em contexto urbano.
A brutalidade das invasões é proporcional à quantidade de invasores. São milhares deles dentro dos territórios demarcados. O avanço da exploração ilegal da madeira gerou destruição e morte da fauna, flora e toda a rica biodiversidade. Depois da derrubada, os invasores ateiam fogo em tudo, sobrando apenas cinzas. Com o desmantelamento dos órgãos de fiscalização e controle, como a Funai e o Ibama, os povos indígenas ficaram ainda mais vulneráveis. Comunidades inteiras têm sido ameaçadas e agredidas, a exemplo do que vem ocorrendo em áreas de fronteira. Os indígenas estão num ambiente de deterioração de todos os espaços físicos, espirituais e sagrados.
A saga garimpeira é abismal. Milhares de invasores têm sido armados por milícias, contam com investimentos vultosos de empresários e agem livremente graças à falta de ações repressoras por parte de forças de segurança. Assim, sentem-se legitimados a destruir, estuprar e matar indígenas. O povo Yanomami está entre aqueles mais brutalizados. São milhões investidos em maquinários pesados e caros, que chegam à Terra Indígena Yanonami sem nenhuma dificuldade. Mulheres, crianças, bebês, anciãs e anciãos têm suas vidas ceifadas ou pela força brutal das armas e dos braços dos garimpeiros, ou pelas dragas que sugam a terra, as águas e todas as vidas, ou pelas doenças e contaminações somados a omissão dos órgãos de assistência. Não há palavras que dão conta de dizer e descrever tamanha e contínua crueldade. É o genocídio verdadeiramente imposto. A resposta do governo Bolsonaro a poucas ações de repressão e queima de equipamentos de invasores no território Yanomami, é o afastamento dos delegados responsáveis.
Ao longo dos anos, a Funai relativizou a prática de arrendamento das terras indígenas. Durante o governo Bolsonaro, o órgão passou a difundir tais práticas como alternativa econômica. Na verdade, agia para beneficiar grupos, pessoas e empresas que esbulham os territórios indígenas.
Recentemente, o Cimi Sul emitiu nota pública questionando o arrendamento de terras e nela destacou algumas razões que fundamentam sua opinião:
“A Constituição Federal de 1988 assegura aos povos indígenas os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, cabendo à União demarcá-las e fazer respeitar todos os seus bens; as terras indígenas são patrimônios da União, para o usufruto exclusivo dos povos e comunidades indígenas, portanto, tão somente os indígenas podem usufruir, produzir, coletar, caçar, garimpar e plantar dentro dos limites de suas áreas; a Constituição Federal, ao garantir aos indígenas o usufruto exclusivo das terras e de todos os seus bens, buscou preservar esse direito tão somente aos povos para que ninguém mais viesse a explorá-las, tornando, assim, esse direito inalienável e indisponível à terceiros; as terras indígenas são, de acordo com a Constituição Federal, destinadas à sustentação e preservação da vida dos povos, de seus modos de ser, de suas culturas, costumes, crenças e tradições e do meio ambiente; o arrendamento de terras indígenas é uma prática ilegal e inconstitucional, que acarreta em crimes do arrendatário e do arrendador contra as vidas indígenas, contra o meio ambiente e contra o patrimônio público da União; o arrendamento desencadeado nas terras indígenas carrega consigo outras violências, tais como: a exclusão de pessoas quanto ao uso da terra; torna privado um bem que é comunitário, comum a todos; concentra riqueza nas mãos e contas bancárias de alguns em detrimento da pobreza da maioria da população; o arrendamento causa conflitos internos, divisionismos, conflitos, espancamentos, expulsões, assassinatos e encarceramentos; o arrendamento, por ser prática criminosa, vulnerabiliza as fronteiras das reservas e terras indígenas e acaba absorvendo outras ilegalidades como o tráfico de drogas, de armas e até exploração sexual de crianças e adolescentes”…
O ano de 2022 acabou também sendo marcado pelo assassinato, em 05 de junho de 2022, do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips. Os dois foram mortos quando viajavam por comunidades ribeirinhas e indígenas do Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas. Os dois haviam visitado o Lago do Jaburu, uma localidade próxima da Base de Vigilância da Funai, no rio Ituí. Durante a viagem entrevistaram indígenas e ribeirinhos para um livro sobre a Amazônia. Aproveitaram a oportunidade para realizar uma reunião com pescadores na comunidade São Rafael. Acabaram assassinados no trajeto entre a comunidade e o município de Atalaia do Norte.
Por longos e angustiantes dias eles eram dados como desaparecidos. Diante da repercussão internacional do fato, e com a ajuda dos indígenas, as buscas pelos dois foram intensificadas. Depois de dez dias, um pescador, dado seu histórico de ameaças e práticas de violência, foi preso pela Polícia Federal (PF). Foi este pescador quem confessou o envolvimento nos assassinatos e indicou a localização dos corpos.
Os dois corpos foram esquartejados, depositados em sacos e enterrados no meio da floresta. O crime gerou repercussão na imprensa internacional e críticas ao enfraquecimento de instituições ambientais, promovido pela gestão de Jair Bolsonaro.
Os povos indígenas e suas lideranças pediram, durante todo o ano de 2022, ao Supremo Tribunal Federal (STF), que retomasse o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que trata das demarcações de terras indígenas e teve repercussão geral reconhecida pela Corte. Os apelos não foram atendidos. O caso discute uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, em Santa Catarina, porém a decisão desse julgamento terá consequências para todos os povos indígenas do Brasil.
Adiado pela terceira vez em junho, o julgamento envolve duas teses em disputa: de um lado, a “tese do marco temporal”, que pretende restringir as demarcações de terras indígenas para as áreas que estivessem sob a posse comprovada dos povos originários em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Do outro lado, a “tese do indigenato”, que reconhece os direitos indígenas como originários, ou seja, anteriores ao próprio Estado.
Além da necessidade da presença dos povos e comunidades indígenas na posse da terra em 1988, a tese do marco temporal condiciona as demarcações a disputas judiciais pela terra ou estarem em conflitos físicos, o chamado renitente esbulho. Caso esses requisitos não sejam atendidos, os indígenas perdem o direito à demarcação da área reivindicada. Sobre esta interpretação há pelo menos três elementos jurídicos que causam controvérsias nos julgamentos referentes às demarcações de terras: há, nos julgados dos tribunais, insuficiente entendimento conceitual e convergência acerca da aplicação do marco temporal nos processos que envolvem a demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas; há divergências entre os magistrados no tocante aos conceitos de direito indígena e quilombola a terra – posse, ancestralidade, usufruto e bens da União – na relação civilista de posse e propriedade; há desconhecimento quanto à aplicabilidade do direito em relação às diferenças étnicas, culturais e ao fato dos povos terem sido considerados sujeitos de direitos individuais e coletivos – plenamente capazes (Art. 232 CF/1988).
Como poderiam os indígenas e quilombolas estarem na terra em 1988 se foram expulsos com o próprio consentimento e omissão do Estado? Como poderiam os indígenas e quilombolas litigarem por suas terras em 1988, se até então eram ainda tutelados, e/ou também quilombolas não eram, sequer, considerados sujeitos de direito? É necessário lembrar que a política constituída no início do século XX sustentou-se na identificação dos “grupos indígenas” e comunidades para promover sua remoção e confinamento em reservas que seriam criadas pelo Estado. E o mesmo se deu com relação aos quilombolas e a população negra em geral. Esta política de remoção e violência estendeu-se nas décadas seguintes, alicerçada em um duplo objetivo: integrar os índios e quilombolas à comunhão nacional, leia-se suprimir e erradicar suas cosmovisões, culturas e entregar suas terras aos projetos de expansão econômica – para a construção de rodovias, ferrovias, hidroelétricas, instalação de mineradoras, madeireiras e a promoção da agricultura e pecuária e dos projetos imobiliários.
A atual Constituição buscou redefinir as relações do Estado com os povos indígenas e comunidades tradicionais, pois este deveria reconhecer o direito aos modos de ser, culturas, crenças, tradições, bem como respeitar suas coletividades, suas organizações sociais, políticas, cumprindo-se um antigo lema indígena equatoriano: “puedo ser lo que eres sin dejar de ser lo que soy”. Inicia-se, portanto, um novo paradigma que muda a visão sobre o ethos indígena. Ou seja, de tutelados, estes passam a condição de sujeitos de direitos individuais e coletivos. A Constituição reconhece também o pluralismo étnico e cultural e assegura aos índios e quilombolas o direito sobre as terras que ocupam, cabendo ao Estado demarcá-las e garantir a sua proteção.
Com o apoio e a complacência do governo Bolsonaro, projetos de leis e emendas à Constituição Federal foram apresentados para aniquilar com qualquer possibilidade de que demarcações de terras sejam realizadas. Para se ter uma ideia da articulação e da força que se volta contra os povos indígenas no âmbito do Poder Legislativo, tramitam, hoje, no Congresso Nacional, mais de 100 proposições que visam alterar artigos concernentes aos direitos indígenas e quilombolas, a exemplos dos projetos 490 e 191.
Mesmo com todo o apoio e a ação raivosa e danosa do governo Bolsonaro, chegamos ao final do seu governo sem que este tenha conseguido alterar um único artigo ou lei que trate de direitos de povos indígenas ou comunidades quilombolas. Trata-se de uma vitória sem precedentes dessas comunidades, que contaram com o apoio da sociedade e de organizações parceiras na defesa de seus direitos. Mesmo durante a pandemia, essas comunidades optaram por sair do isolamento e manifestar-se, em diferentes ocasiões, junto aos poderes públicos.
Importante também ressaltar as respostas dadas por ministros da Suprema Corte de nosso país que, quando provocados pelo movimento indígena e por seus parceiros, não abdicaram de garantir direitos essenciais às comunidades indígenas. Foi assim no caso da garantia da vacinação das comunidades indígenas.
O Cimi, a cada ano, lança um relatório que aborda as violências contra os povos indígenas no Brasil. Um documento com grande repercussão no Brasil e no exterior, que vem sendo utilizado como subsídio de reflexão sobre a realidade destes povos. O relatório também embasa manifestações de autoridades junto aos organismos internacionais. Em 2022 houve o lançamento do Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2021, apresentando um diagnóstico das diversas violências e violações que são praticadas contra os povos indígenas, a partir de fontes públicas e informações dos regionais do Cimi, de comunidades indígenas e de veículos de imprensa. O levantamento sistematiza dados relacionados às violações contra os direitos territoriais indígenas, como invasões e danos aos seus territórios; violências contra a pessoa, como assassinatos e ameaças; e violações por omissão do poder público, como desassistência nas áreas da saúde e da educação, mortalidade na infância e suicídios. Na edição de 2021 os dados refletem a dura realidade enfrentada pelos povos originários no terceiro ano do governo de Jair Bolsonaro e no segundo ano da crise sanitária causada pela pandemia de Covid-19, marcado por ofensivas contra os direitos constitucionais indígenas e por grandes mobilizações. Dolorosamente os fatos apontam que no ano 2022 a violência se amplificou, especialmente contra a vida das pessoas e os territórios.
A questão indígena no Brasil atual é central. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva precisará bem mais do que paliativos ou criar mesas de diálogos e negociações. Deve enfrentar as demandas como obrigações de Estado, promovendo, de imediato, a retomada das demarcações de terras, assegurando a todos os povos a sua posse e usufruto exclusivos. Deverá combater as invasões e responsabilizar aqueles que financiam essas práticas, especialmente grupos criminosos do garimpo, da exploração madeireira e do loteamento e grilagem de áreas. Também caberá, ao novo governo, propor e executar medidas que combatam a prática ilegal e criminosa do arrendamento de terras destinadas aos indígenas.
O atual governo terá que retomar e fortalecer a Funai, que nos últimos anos ficou sob o comando, controle e tutela de agentes que executaram os serviços de destruição e desconstrução dos direitos indígenas por dentro do Estado.
Precisará, o novo governo, através do diálogo e da ampla participação dos povos indígenas – respeitando-os como sujeitos de direitos e protagonistas de suas histórias – recuperar e restabelecer uma política indigenista alicerçada nos dispositivos da Constituição Federal de 1988 – expressos nos artigos 231 e 232 – que determina a valorização das diferenças étnicas, das culturas, crenças, costumes, línguas e tradições; a demarcação de todas as terras como direito fundamental, originário, inalienável indisponível e imprescritível.
O governo Lula tem desafios enormes, mas precisará, desde logo, nos primeiros dias, apontar o caminho que deseja seguir em relação aos povos indígenas. Durante o processo de discussão, dentro do governo de transição, os povos apresentaram uma série de propostas que devem subsidiar o Ministério dos Povos Indígenas, do qual Sônia Guajajara é a ministra. Seguem, de forma sistematizadas, algumas das propostas discutidas e apontadas como essenciais:
- Fortalecimento do órgão indigenista para que reassuma as demandas de demarcação, proteção e fiscalização das terras;
- Revogação dos obstáculos administrativos, a exemplo das instruções normativas 01/2022, 09/2020, a Resolução 04/2021 da Funai e o Parecer 001 da AGU;
- Governo ser explícito quanto à rejeição ao Marco Temporal e contra os projetos de lei que restringem direitos – PLs 191/2020, 490/2007 e PEC 215/2000;
- Retomar as demarcações de terras, com a criação de um amplo grupo de trabalho para analisar os procedimentos e identificar os encaminhamentos mais urgentes;
- Enfrentar e combater as invasões de terras por madeireiros, garimpeiros, grileiros, fazendeiros e outros;
- Romper com as práticas de exploração das terras por arrendamentos;
- Retomar as ações de controle social em todas as instâncias, especialmente nas políticas de atenção à saúde, educação e gestão territorial;
- Investir nas ações de assistência garantindo saúde, educação, habitação e sustentabilidade das comunidades;
- Garantir assistência e proteção aos indígenas em contextos urbanos;
- Enfrentar, nas reservas indígenas, as violências internas em função das disputas de poder e pela exploração das terras;
- Fortalecer, ou retomar, os programas de proteção aos defensores e defensoras de direitos humanos;
- Enfrentar e combater a violência, especialmente contra as mulheres;
Atenção prioritária às comunidades que estão em situação de retomadas ou em condições de acampamentos e submetidas às mais variadas formas de vulnerabilidade. O novo governo criou o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), onde estão inseridas as atribuições, em conjunto com a Funai, das demarcações e proteções dos territórios indígenas. Haverá a necessidade de um planejamento comum para evitar confusão e multiplicidade de funções.
Importante enfatizar que foi retomado o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), este vinculado ao MPI, que terá as responsabilidades, dentre outras, de convocar e coordenar as atividades deste conselho.
Haverá, sem dúvidas, muita disposição para esse período de retomada das esperanças. Há um novo ardor e sonhos que se mostram possíveis. Também haverá disposição dos integrantes do novo governo – em relação à causa indígena – e muitos caminhos possíveis estarão estampados diante da governança. Alguns dos caminhos se mostrarão alicerçados pelas espiritualidades, ancestralidades, diversidades, territorialidades, pelos direitos humanos, justiça social e o Bem Viver. Outros estarão com as cores dos fascínios, das vaidades, privilégios e confortos dos cargos e palácios. Haverá aqueles cheios de plantonistas que buscarão pavimentar o trajeto com a exploração econômica disfarçada de bons negócios, lucratividades, benefícios e desenvolvimento a todos. E também terão aqueles, expostos pela barbárie, violência, depredação, desmatamentos invasões e todo tipo de violência e agressões.
Todos estes caminhos estarão indicados, por isso, a tarefa primeira, desde o início, será a de escolha, ou seja, por qual dos caminhos se pretenderá seguir. Esta escolha não é fácil, simples e sem sofrimentos. Todavia, terá de ser feita e nela se visualizará o futuro do novo governo e da causa indígena dentro dele. Que os Encantos de Luz inspirem e dê coragem diante do caminho, que é simples, visível e evidente. De outro lado, a opção por ele será difícil e complexa.
02 de janeiro de 2023
Roberto Antonio Liebgott, Francisco Eduardo Holanda e Ivan Cesar Cima
Conselho Indigenista Missionário – Cimi, Regional Sul