07 Outubro 2022
As Bem-aventuranças, o Calvário e o Tabor servem como referências para pensar as espiritualidades para o século XXI, “em um tempo, teológico e pastoral, do equilíbrio e da articulação”, escreve o teólogo espanhol Jesús Martínez Gordo, presbítero da Diocese de Bilbao e professor da Faculdade de Teologia de Victoria-Gasteiz e do Instituto Diocesano de Teologia e Pastoral de Bilbao, em artigo publicado por Religión Digital, 06-10-2022. A tradução é do Cepat.
Em mais de uma oportunidade me lembrei de como o lugar onde resido conta, assim como tantos outros, com um passeio que é popularmente conhecido como “a rota do colesterol”. Neste local, além da caminhada ou da corrida, também se fala – quando encontramos amigos ou conhecidos – sobre nossos respectivos estados de saúde. Conversamos sobre os resultados da última consulta médica, comentamos sobre o exercício físico que nos foi prescrito e existem aqueles que teimam em ser os que mais comprimidos tomam...
É comum encontrar pessoas que, mais informadas, sabem com toda precisão os números ideais para uma vida saudável e que, ultrapassados ou não alcançados, indicam a condição, por exemplo, de diabetes ou hipoglicemia, seja por excesso, seja deficiência de açúcar no sangue. Sabem que entre esses extremos ocorre um equilíbrio permanentemente instável e, portanto, uma enorme diversidade de situações. É difícil encontrar dois exames idênticos, não só entre sujeitos diferentes, mas também de uma mesma pessoa ao longo de um dia. No cuidado de tal equilíbrio, move-se o que entendemos hoje como vida saudável.
À luz dessa anedota, também é possível expor algo da grande pluralidade que existe entre as “espiritualidades jesuânicas-cristãs”, a partir das três referências que entendo serem cruciais em qualquer seguidor de Jesus: o Monte das Bem-aventuranças, o Calvário e o Tabor e, ao mesmo tempo, consciente de que cada seguidor do Nazareno faz um caminho singular e irrepetível – pessoal e comunitário – entre esses três montes teológicos.
Portanto, não é exagero dizer que existem tantas “espiritualidades” quanto seguidores, assim como é difícil encontrar dois exames iguais. A pluralidade também é a senha dos seguidores do Nazareno. Uns, para citar alguns exemplos, são mais sensíveis à fragilidade do Gólgota do que à plenitude do Tabor, ao reverso dos crucificados do que ao anverso daqueles que buscam sossego. Outros, ao contrário, mais atentos à proximidade de Deus na intimidade do que à provocação ou alteridade dos crucificados, à intuição imediata do que à argumentação racional, à beleza tabórica do que ao seu ocultamento na sexta-feira e no sábado santos. E todos, à articulação entre o Jesus histórico “e” o Cristo da fé ou entre o Calvário “e” o Tabor ou entre a cruz “e” a ressurreição.
E, ao mesmo tempo, essa enorme riqueza e pluralidade não só é o fruto de pessoas adeptas a priorizar ou ficar mais tempo em um monte ou outro, mas também do fato de não renunciarem a circular permanentemente entre eles, pois a articulação entre todos é um dos sinais mais definitivos do “jesuânico-cristão”. E quando se renuncia este trânsito, surgem os fundamentalismos, seja por excesso, seja por carência.
Contudo, quando se prioriza um dos montes teológicos, sem renunciar a caminhar pelos outros, entram em cena ao menos três “protótipos” formais de espiritualidades: a teológica ou a do pensador (mais atenta ao monte das Bem-aventuranças), a tabórica ou espiritual (com morada preferencial nas consolações) e a militante ou comprometida (adepta a evitar a existência de Gólgotas ou, ao menos, de aliviar um pouco da grande dor existente). São, como digo, protótipos formais que coexistem com outros, alguns dos quais já fiz referência em outras ocasiões: as dos “dominicais”, os “cristãos anônimos”, os mártires e os santos.
Há, em primeiro lugar, aquelas que me atrevo a chamar de “espiritualidades tabóricas”. São aquelas que enfatizam o gozo e a carícia das antecipações e transparências de Deus em si mesmo, no cosmos, na vida, na história, na liturgia ou na entrega de tantas pessoas, sem descuidar, por isso, do aguilhão, presente como cruz, desolação, miséria, dor ou morte injusta e antes do tempo. E que, além disso, se olham, de vez em quando, no programa do Monte das Bem-aventuranças.
São “espiritualidades” que, atentas de modo particular à luz, ao bem-estar, à paz, à união, à consolação e à tranquilidade que – gratuita e surpreendentemente, entregues ou antecipadas no Tabor – não descuidam do risco de querer montar três tendas para residir eternamente aí. Uma pretensão que fica truncada pela exigência do Nazareno em descer do monte.
Para esses seguidores de Jesus, uma parada no caminho não é o fim da jornada. Sabem que a participação em tais gozos também não é – enquanto vivemos – o fim, mas uma gratificante antecipação que nos habilita e sustenta no compromisso de sair e erradicar algo da muita obscuridade e morte que persistem nos calvários atuais.
Essa ênfase pode ser apreciada, por exemplo, na tradição ortodoxa quando inicia o conhecimento de Deus pela participação (“theognosis”) na Eucaristia, na Escritura, dentro de si mesmo, na oração contemplativa, no amor fraterno e no gozo da beleza cósmica e iconográfica, sabendo que tais participações têm a virtude de impulsionar e sustentar o compromisso por um mundo que deve ser mais solidário e transparente do mistério de Deus.
A espiritualidade e a teologia ortodoxa são conscientes de que o caminho é tão longo e árduo que não há outro remédio a não ser estar bem equipado ou ao menos parar de vez em quando nas áreas de serviço que se dispõe para descansar, repor forças e retomar o caminho com renovada esperança e frescor. O Peregrino Russo é um dos possíveis protótipos dessa primeira e necessária ênfase.
Mas também sabem que quando se absolutiza a carícia das antecipações, descuidando da “carne”, a história, a humanidade, a miséria, o sofrimento, a dor e a morte antes do tempo, ficam pelo caminho duas verdades às quais um praticante “jesuânico-cristão” não pode renunciar: primeiro, que as antecipações do fim – por mais impactantes e sedutoras que possam ser sua percepção, gozo e experimentação – não são a Unidade, a Verdade, a Beleza ou a Bondade finais. E, segundo, que Deus não só é um mistério de proximidade (com quem esperamos ser “um” sem deixar de ser nós), mas também, e ao mesmo tempo, um aguilhão. Não é possível ignorar que quem ressuscita foi crucificado e que, desde então, a relação com Ele em suas antecipações é, certamente, gratificante e alentadora carícia, mas também permanente e inescapável provocação. A espiritualidade “tabórica” não se dá com os olhos “fechados”, mas “abertos”.
Se não fosse assim, incorreria na frivolidade pós-moderna de quem acredita ter chegado ao fim da história e da vida e se dedica a desfrutá-la sem olhar para trás, para frente ou ao redor, não querendo saber nada do sofrimento, da miséria e da morte prematura e injusta. É o caso daqueles que se acomodam com a vocação de permanência definitiva nos “tabores atuais” e se nega a descer deles.
Mas existem, igualmente, as espiritualidades “comprometidas” ou militantes, ou seja, aquelas que são particularmente sensíveis à presença do Crucificado em todas aquelas situações, pessoas e momentos em que a morte do Nazareno se atualiza em tantos crucificados contemporâneos que, sendo assim, constituem uma provocação permanente e um apelo inevitável para descê-los ou ajudá-los a descer de suas respectivas cruzes.
São espiritualidades particularmente sensíveis à presença crucificada de Deus nos calvários de nossos dias e de todos os tempos e que, em coerência com tal percepção, ressaltam a importância do compromisso, da libertação, das obras e da transformação (pessoal e estrutural) do mundo. Em definitivo, na densidade da história, na vida, na liturgia e na realidade.
Mas são espiritualidades conscientes de que podem cair no “estaurocentrismo” (absolutização da cruz), “masoquismo” ou “pelagianismo” autodestrutivo (talvez teria que dizer, “buenismo”) daqueles que, localizados exclusivamente no Gólgota, só têm tempo para o compromisso solidário e fraterno e, por isso, correm o risco de acabar jogados nas valas da vida por esgotamento, às vezes, desesperançados e, não raro, amargurados. Sem deixar de reconhecer que esta é a extrapolação, a “pisada na bola” (fundamentalismo ou o excesso) que Deus olha com particular benevolência, e até é possível que, com um sorriso, também é preciso lembrar que sua vontade salvífica não passa por deixar um caminho repleto de cadáveres, mesmo que em nome da fraternidade e do amor libertadores.
Por isso, conscientes deste risco, adentram-se, de vez em quando, no Tabor, sabedores de que sem a relação que é experimentável e desfrutável neste lugar não é fácil perseverar durante muito tempo nos gólgatas atuais sem baixar a guarda ou sem se entregar ao desalento fatalista. Ou, o que é pior, sem buscar atalhos que possam levar – em nome da eficiência – ao totalitarismo em que desembocam a solidariedade e a fraternidade não articuladas com a liberdade.
A permanência, curta ou longa, nos “tabores” contemporâneos ou, o que é o mesmo, o gozo das antecipações do fim no tempo presente, além de facilitar a permanência no compromisso, permite não morrer devorado e engolido pela crueldade e a angústia simbolizadas pelo grito de abandono na sexta-feira santa, nem pelo silêncio do sábado santo. E impede, é claro, de acabar jogado nas valas da vida, entregue ao desânimo, engolido pelo consumismo e mergulhado na decepção diante da (oni)potência do mal. E, obviamente, não alimenta a consciência prometeica ou pelagiana de quem acredita que a história será escrita a partir do antes e depois dele.
É um “jesuânico-cristão” que busca nunca perder de vista que a “carne” é, sem dúvida alguma, a de Jesus crucificado, mas que também é Ele que ressuscitou, antecipando na história – por pura gratuidade – o final que nos espera.
Por sua parte, os pensadores ou “teólogos espirituais” são aqueles que se dedicam preferencialmente a dar razão do mistério de Deus entregue no Nazareno, bem como à pesquisa e ao ensino. Mas sua tarefa não pode ser compreendida, caso não esteja assentada tanto em uma experiência tabórica de encontro com Deus como em uma coerência de vida, de acordo com o programa das Bem-aventuranças e atenta à identificação de Jesus com os pobres.
A história está cheia de pensadores e teólogos, espirituais e comprometidos, que deixaram escritos de referência. Bastam, como exemplo, os testemunhos, entre outros, de todos os santos Padres, gregos e latinos.
Mas, infelizmente, também não faltam tentativas fracassadas de dar razão do mistério antecipado em Jesus Cristo sem um compromisso coerente ou sem o encontro com Deus. O docetismo e o elitismo não são, certamente, as duas únicas extrapolações, embora possivelmente sejam as mais comuns.
Destas e outras diferenciadas formas de “espiritualidades jesuânico-cristãs”, concluo que existe uma grande riqueza, ao mesmo tempo equilibrada e articulada. Algumas, mais sensíveis à fragilidade do que à grandeza, aos calvários do que aos tabores, ao anúncio do que ao silêncio, ao reverso do que ao anverso. Outras, ao contrário, mais atentas à proximidade compassiva do que à alteridade radical, ao amor do que ao interesse, à intuição do que à razão, à beleza do que ao seu ocultamento. E todas, à articulação entre o Jesus histórico “e” o Cristo da fé ou entre o Gólgota ou a cruz “e” o Tabor ou a ressurreição.
Eis, aqui, alguns poucos exemplos de espiritualidades que, felizmente, sobrevivem no século XXI. Tomara que seu número aumente porque entramos em um tempo, teológico e pastoral, do equilíbrio e da articulação.
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Espiritualidades para o século XXI. Artigo de Jesús Martínez Gordo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU