05 Julho 2022
“Além de alguns sucessos que, graças à mão de Francisco, esta carta apostólica apresenta o que entendo ser a maior limitação que apresenta à liturgia atual no rito latino: sua crescente e, aparentemente, imparável, insignificância. É bom chamar a atenção para a importância de começar a se maravilhar com a verdade e a beleza da Eucaristia ou para a necessidade de uma formação litúrgica séria e vital, além, é claro, de enfrentar a contrarreforma e reivindicar a articulação da experiência, empenho e fala ou cabeça, coração, pés e mãos, mas não podemos ignorar a grave crise espiritual e eucarística em que está mergulhada a grande maioria das nossas comunidades”, escreve o teólogo basco Jesús Martínez Gordo, em artigo publicado por Religión Digital, 05-07-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Na Carta Apostólica “Desiderio desideravi” – um documento que reúne e reelabora de forma original as proposições da Assembleia Plenária da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos (ocorrida de 12 a 15 de fevereiro de 2019) sobre este tema – se pode apreciar, com bastante clareza, a mão do Papa Francisco em diversas passagens que entendo como capitais porque facilitam, pelo menos, duas importantes chaves de leitura que não ocultam o que entendo ser sua maior limitação.
A primeira, referindo-se a reivindicar a validade da reforma litúrgica aprovada no Concílio e lançada por Paulo VI: “não podemos voltar àquela forma ritual que os padres conciliares, 'cum Petro et sub Petro', (com e sob Pedro) sentiram a necessidade de reformar, aprovando, sob a orientação do Espírito Santo e seguindo sua consciência de pastores, os princípios dos quais nasceu a reforma” (nº 61).
É uma reivindicação que Francisco adiantou alguns números antes quando reitera que “pretendo ver (a unidade litúrgica) restaurada em toda a igreja de rito romano” ou quando denuncia a incoerência – detectável em muitos lugares da Igreja – de proclamar a importância e validade do Concílio e, ao mesmo tempo, não aceitar a reforma litúrgica ali nascida e aprovada (Cf. n. 31). Tal tem sido, continua ele, o objetivo primordial do motu proprio “Traditionis custodes”: continuar “na busca constante da comunhão eclesial em torno da expressão única da 'lex orandi' do Rito Romano que se expressa nos livros da reforma litúrgica desejada pelo Concílio Vaticano II”.
Aqui está a primeira chave de leitura desta Carta Apostólica; a que se choca com a recepção errática – e contrarreformista – da reforma litúrgica aprovada no Vaticano II.
Encontro a segunda chave de leitura em sua lembrança de que “não é autêntica uma celebração que não evangeliza, assim como não é um anúncio que não conduz ao encontro com o Ressuscitado na celebração: tanto, pois, sem o testemunhas da caridade, são como bronze que ressoa ou como címbalo que clama (cf. 1 Cor 13, 1)” (nº 37). E não é autêntica porque negligencia – algo, infelizmente, muito frequente – a articulação entre o encontro com o Crucificado Ressuscitado na celebração eucarística e na estrada da vida (com os crucificados todos os dias), assim como na criação, onde a beleza e a verdade do amor de Deus também se manifestam ou são transparentes – por pura gratuidade.
No cerne desta chave de segunda leitura está, obviamente, o reconhecimento da pluralidade que se baseia nas legítimas acentuações de cada um dos pilares fundamentais da fé postos em jogo. E, ao mesmo tempo, o descontrole contundente das extrapolações, ainda tão em voga entre nós (e não apenas entre os lefebvrianos), quando, por exemplo, a adoração é absolutizada e o encontro com Deus é tão desprezado em sua comida e bebida como no mundo e na história e, especificamente, nos crucificados e em tantas fagulhas ou murmúrios de eternidade e plenitude que também são transparentes no cosmos e na existência de cada dia; como na Eucaristia.
Aqui está a segunda chave de leitura da Carta Apostólica, aquela que se depara com essas e outras extrapolações, além do gnosticismo ou espiritualismo subjetivista e “sem carne” ou neopelagianismo sem gratuidade, ou seja, a presunção de ganhar a salvação ou a Vida em plenitude sustentada apenas pela própria força (Cf. nº 17. 19. 20. 28. 48. 49).
Mas eu disse que, além de alguns sucessos que, graças à mão de Francisco, esta carta apostólica apresenta nas duas chaves de leitura que acabo de indicar, e é conveniente não perdê-las de vista, o que entendo ser a maior limitação que apresenta à liturgia atual no rito latino: sua crescente e, aparentemente, imparável, insignificância.
É bom chamar a atenção para a importância de começar a se maravilhar com a verdade e a beleza da Eucaristia ou para a necessidade de uma formação litúrgica séria e vital, além, é claro, de enfrentar a contrarreforma e reivindicar a articulação da experiência, empenho e fala ou cabeça, coração, pés e mãos, mas não podemos ignorar a grave crise espiritual e eucarística em que está mergulhada a grande maioria das nossas comunidades, incluindo aquelas que aplicam a atual reforma litúrgica, em sintonia, claro com Francisco.
Não vejo que possa sair disso, se não for feita uma nova reforma profunda. Dada a atual correlação de forças eclesiais e as urgências em que estamos submersos, é muito provável que esta, como outras, seja uma tarefa para o próximo sucessor de Pedro. E, novamente, é possível que, quando for finalmente realizada, muitas e muitas pessoas já podem ter sido deixadas de lado.
Em suma, o leitor tem nas mãos um documento papal que, devidamente contextualizado na contrarreforma litúrgica sofrida nos últimos anos, pode ajudá-lo a perceber sua relevância eclesial. Mas você deve estar ciente de que, lendo-o, você não encontrará a necessária e inevitável reforma litúrgica pela qual o Povo de Deus clama há muito tempo, embora encontre muitas contribuições ponderadas da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, assim como as reivindicações reformistas de Francisco que, suspeito, serão necessárias e, ao mesmo tempo, desmedidamente modestas e, por isso, de asas cortadas.
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Adeus à contrarreforma litúrgica! Sobre a carta apostólica “Desiderio desideravi”, do Papa Francisco. Artigo de Jesús Martínez Gordo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU