27 Agosto 2022
A alegria é “o recurso mais precioso”, o “aliado mais poderoso”, é uma exigência vital e é possível, alcançável, se a abordagem à vida for a correta. Porque “ninguém pode viver sem alegria”.
O comentário é de Marco Ventura, publicado no caderno La Lettura, do jornal Corriere dela Sera, 21-08-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O livro manifesto de Stefano Davide Bettera – “Il volto dell’altro. Quando la gioia diventa una scelta di libertà” [O rosto do outro. Quando a alegria se torna uma escolha de liberdade] (Ed. Meltemi) – é ambas as coisas: um elogio da alegria e um guia para ela.
O caderno La Lettura se encontrou com o autor de 56 anos em seu escritório em Milão, e a conversa começa justamente a partir da intenção do volume, um “livro de filosofia pura”, escrito para estimular a busca de uma “vida filosófica”, para criar “perturbação cultural e intelectual”, porque, se o diálogo com o leitor não perturbar, “de nada serve”.
A alegria proposta pelo autor não é a emoção volátil, efêmera de quem está “contente porque a Juventus ganhou ou coisas assim”, mas um “sentimento e, portanto, um processo”, um “estado de espírito a ser cultivado”. Como tal, como o subtítulo indica, a alegria é uma “escolha de liberdade”.
O autor insiste nesse ponto a partir do seu amor por Friedrich Nietzsche e identifica na alegria, segundo a definição nietzschiana, a “realidade última da vida”, “uma potência libertadora” que – continua Bettera – “tira você da sombra da tristeza, da moralidade que lhe esmaga, daquela tentativa de lhe fazer morrer enquanto você ainda está vivo”. Nesse sentido, a alegria é “subversiva porque não pode ser controlada, porque é espontânea e profundamente transformadora”.
Consequentemente, a alegria proposta no livro é problemática, “como se diz em inglês, engaged”, serve para alimentar um processo de transformação, é mais profunda do que simplesmente “sentir alegria”. É, de fato, “sabedoria”, “alegria consciente” que permite “fazer florescer a sua humanidade”. O tema da escolha da liberdade retorna quando o autor descreve a alegria como “libertária”, como um “posicionamento no mundo” por meio de uma “atitude alegre”, que tem a capacidade de “romper o front conflituoso” e levar à decisão de “depor as armas” em relação a todo antagonismo inútil.
Com formação em filosofia e estudos clássicos, com um histórico no jornalismo e no terceiro setor, e uma identidade como escritor, Bettera é o vice-presidente da União Budista Europeia e o porta-voz da União Budista Italiana. No seu texto, convergem várias fontes diversas, em particular os filósofos da alegria, os autores clássicos e o judaísmo, especialmente a tragédia grega e o hassidismo e, é claro, o budismo. O resultado: alegria imbuída de sagrado.
Aflora no livro a crítica a uma espiritualidade superficial adaptada à pressa e à distração do mundo moderno. O autor perturba o intimismo que polui o mindfulness e as disciplinas meditativas como o ioga, “apanágio de uma sociedade da barriga cheia que também consome a experiência do bem-estar, cristalizando-a em protocolos e lógicas que a mente funcional moderna pode compreender e controlar”.
A proposta do autor é diferente. Em primeiro lugar, o ascetismo é rejeitado: “Adoro os filósofos da alegria, Spinoza, Montaigne, Nietzsche, nunca acreditei nos percursos ascéticos de qualquer tipo”, diz ele. Ele acha “insuportável” o fato de as pessoas se concentrarem principalmente na dor, no sofrimento: “É claro que são dimensões centrais na vida, a fragilidade nos define, mas não, não devemos nos tornar condescendentes”.
Ao contrário, a sua abordagem ao sagrado é na imediaticidade, no contato com a experiência direta da vida, sem “a mediação de fluxos mentais e construções ideológicas”. A chave da sua proposta deve ser buscada sobretudo na filosofia judaica. O sagrado deve ser “trazido para o cotidiano”, é “a capacidade de celebrar todas as coisas que você faz, como a refeição, um encontro, esta entrevista”.
“Você é aquilo que você sacraliza”, exorta Bettera, quando você abençoa, “no verdadeiro sentido da palavra”, ou seja, “quando você traz um momento de luminosidade”. De acordo com a Cabala, na era anterior à criação, a superabundância de centelhas divinas rompeu os vasos do mundo em que elas estavam contidas, e as centelhas caíram em todas as coisas. Aqui, elas permanecem aprisionadas até serem libertadas por uma bênção.
Assim ocorre com a comida, especifica Bettera, “mas também com a mesa e as cadeiras”. “Deus habita onde o deixam entrar”, ensina o rabi Mendel de Kotzk em uma história da tradição hassídica. No seu comentário, o filósofo Martin Buber esclarece que se pode deixar Deus entrar “somente onde se está, e onde se está realmente, onde se vive, e onde se vive uma vida autêntica”. Essa sacralização, para Stefano Davide Bettera, é uma alternativa à proposta das religiões reveladas, ao seu Deus personalizado, ao dogmatismo, à ortodoxia, à ânsia de controle.
Aluno no liceu Berchet, de Milão, do fundador do Comunhão e Libertação, Pe. Luigi Giussani, a quem ele recorda como “um gigante” (no dia 15 de outubro se completarão os 100 anos do seu nascimento), o autor fala de duas visões religiosas alternativas. Respeita aquela feita de vocação e missão, uma “relação exclusiva com a transcendência” baseada na distinção entre imanência e transcendência, uma dimensão secular e religiosa, mas, mesmo assim, escolhe a outra, uma “interrogação problemática filosófica” no rastro da tragédia grega, “expressão máxima de uma interrogação sem resposta” e religiosidade dialógica por excelência, “não verdade, mas aposta, mistério”.
A continuidade entre judaísmo e budismo, na peculiar síntese do autor, emerge aqui novamente quando Bettera observa que “os gregos foram os primeiros a dar forma humana ao Buda e a retratá-lo como hoje o conhecemos”.
A alternativa entre as duas visões religiosas se manifesta na dupla crer/não crer, central para os cristãos e vã para os budistas. O Buda “se recusa a responder a todas as perguntas últimas”, aponta Bettera, se Deus existe, se há vida após a morte, e isso “não porque ele seja simplesmente apofásico, no sentido de que nega a possibilidade de um dizer sobre Deus, mas porque não toma posiciona: ele sai do debate”. O silêncio de Buda, lemos no livro, não é negação da transcendência nem agnosticismo. Pelo contrário, escreve o autor, “não se aceita participar do debate porque qualquer discurso sobre o absoluto é inadequado”, assim como “qualquer tentativa da linguagem de estabelecer uma verdade definitiva em um sentido ou outro”.
Segue-se daí que a alegria não é uma questão de fé, mas de sacralização do mundo, de prática cotidiana do sagrado, de superação da separação e do dualismo, começando pela oposição entre sagrado e profano, em favor da cura e da unidade.
Com o La Lettura, o autor não atenua a crítica à tradição cristã já evidente no livro. Jesus não é o fundador de uma religião, mas “o judeu praticante” até o último momento da vida. Distante de “uma fé ideológica”, ele tende à unidade mediante “uma atitude de cura”. "Os cristãos", acrescenta, “infelizmente esqueceram o significado de ‘vida cristã’” e perderam tanto o sentido da sacralidade dos seus preceitos, conservado por judeus e budistas, quanto a sua própria “tradição meditativa”.
A “doença do homem”, escreve Bettera, é “ter desejado tão obstinadamente dominar, exorcizar o sagrado, que acabou por afastá-lo da existência e trancá-lo nas catedrais”.
O autor retoma aqui a sua crítica ao ascetismo como “pulsão de morte” e como “renúncia ao viver, isto é, ao sentimento, ao amor, à sexualidade, à materialidade”. No sagrado proposto pelo autor, o caminho para a alegria é antes mística, no sentido da mística cabalística judaica, “relação com a transcendência”. No caminho, perfila-se uma encruzilhada entre a “forma energética” angélica e a divisão demoníaca.
Na mitologia budista, o diabo se chama Mara e é aquele que “impede uma mente de unidade, de cura”. Se o diabo do Evangelho tenta Jesus no deserto, Mara impede a chegada da monção e, por isso, é a força da seca, da aridez. A busca da alegria passa, então, por uma mente fecunda, que gera anjos e esconjura os demônios.
Essa mente de unidade, enfatiza Bettera várias vezes, não pode ser a mente racional cartesiana, separada das emoções e do mundo. Quando Buda desperta sob a árvore da Bodhi, narra o autor, o seu primeiro ato é “apoiar a mão na terra e chamar justamente a terra para testemunhar o despertar”. A alegria é “salvação”, elabora o líder budista milanês, em uma “comunhão com o mundo”, com a temporalidade, na conexão entre imanência e transcendência, dentro da qual o mistério não pode deixar de se encontrar.
Questionado sobre a relação entre a salvação da humanidade e a salvação do planeta, o autor, há muito tempo envolvido na ONG Legambiente, critica a “posição antropocêntrica” do ambientalismo, por exemplo, de Greta Thunberg. A lógica do ser humano no centro, do ser humano árbitro, do ser humano destruidor e do ser humano salvador pode trazer benefícios parciais, mas impede a mudança de paradigma necessária que tem a ver justamente com o sagrado. Enquanto o movimento ambientalista quer ser “depositário do sagrado”, a alternativa para Bettera só pode ser a de um ser humano como “veículo do sagrado”, em relação com o mundo, com o mistério, com o outro.
Chega aqui o momento de Emmanuel Lévinas, mais uma influência judaica em um autor que leva o nome de Davi. O filósofo francês inspira Stefano Davide Bettera a refletir sobre o encontro com o outro, que fecha o círculo dessa proposta sobre a alegria. Não é por acaso que “o rosto do outro” é o título da obra. Bettera resume nestes termos aquilo que extrai de Lévinas: “No momento em que se encontra o rosto da outra pessoa, antes que entrem em cena os seus próprios esquemas mentais, as suas crenças, esse encontro julga você, e aí se abre o espaço para uma transcendência que vai além da individualidade”.
O poder transformador da alegria, a sua capacidade de conversão, a própria compaixão, escreve Bettera, são gerados pelo “movimento rumo ao outro” e pelo “reconhecimento de uma dignidade profunda que reside em cada um”. Emerge aqui a dimensão política da alegria. Na conversa, o autor descreve o movimento como “uma porta que se abre” para uma “presença problemática, misteriosa, indistinta, não manipulável, libertária”. Sobre tal presença, Bettera se recusa “a colocar rótulos de caráter religioso”, que inevitavelmente remeteriam a um Deus pessoa dotado de vontade e que, portanto, cairiam naquela que o judaísmo considera uma blasfêmia.
Ao mesmo tempo, o movimento é também o da compaixão no seu significado mais pleno, portanto “do ato de abertura daquela porta”. Começa-se a partir daí, com a alegria, a partir da porta que se abre, do fato de “consentir que sejam criadas as condições para que ela possa se abrir”. Parece pouco, parece banal, mas é tudo, já que “ninguém pode e deve viver sozinho na dor”, já que “ninguém pode viver sem alegria”.
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A alegria (a verdadeira) nos salvará - Instituto Humanitas Unisinos - IHU