21 Junho 2022
"O pacifismo não pode ser uma opção em jogo no atual conflito militar. É uma evidência diante dos olhos de todos. Ninguém quer o horror da guerra - exceto nossos sonhos mais inquietos -, mas é o gargalo da história que às vezes determina que seja justamente a guerra a sustentar as razões mais profundas da paz. Por isso, a frase "se silenciem imediatamente as armas" do pacifismo, além de um apelo que todos nós idealmente compartilhamos, se colocado no contexto real do conflito, se dirigido ao povo ucraniano engajado em uma luta sangrenta para salvar sua terra da ocupação russa contra um inimigo militarmente bastante mais forte – como aconteceu a Davi contra Golias - corre o risco de se tornar uma verdadeira blasfêmia", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Stampa, 20-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quando garoto, eu me manifestava nas ruas - com convicção, aliás, inalterada - em defesa da luta dos vietcongues contra a ocupação dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, como acredito que a maioria dos que se manifestavam comigo, esperava, juntamente com a justiça restaurada da independência e liberdade de um povo, a realização da paz. A paz, de fato, não é uma condição de vida entre outras, mas a que mais se adapta à forma humana de vida que é feita, como diria Hanna Arendt, para viver e não para morrer.
No entanto, a história humana aparece como uma sucessão terrível e com poucas tréguas de guerras atrozes. Para Freud, os seres humanos são no fundo uma "gangue de assassinos". Basta folhar A interpretação dos sonhos para descobrir o quanto a honradez de nossa vida diurna é derrubada todas as noites no horror de pulsões desconcertantes: estupros, assaltos, mortes, torturas, brigas violentas, roubos, mentiras manifestam inexoravelmente, todas as noites, o que Freud definia como "o conteúdo imoral de nossos sonhos".
É um fato: existe um desejo humano que é contra o Direito, criminógeno, feroz e cruel e que não tem equivalente nem mesmo no mundo animal que, não por acaso, não conhece nem a brutalidade do crime nem aquela da guerra. No entanto, também a irmandade entre os homens é um sonho que tem sua própria força, embora essa palavra tenha sido, entre os três que acompanharam a Grande Revolução Francesa, a mais negligenciada.
Hoje, parece estar retornando na forma da invocação pacifista da paz. A chamada para silenciar imediatamente as armas traduz efetivamente essa invocação. No entanto, o risco, nesse apelo justo e até mesmo inevitável pela paz dos muitos pacifistas que o assumiram, é o de simetrizar um conflito que não tem nada simétrico.
O símbolo que promoveu a marcha pela paz em Assis foi um exemplo significativo desse tremendo risco: a vida ofendida do desarmado é atacada de maneira simétrica por balas disparadas de ambos os lados. Os contendores (Rússia e Ucrânia) são assim, num único golpe, equiparados pelo recurso comum e criminógeno à guerra como se a tivessem decidido bilateralmente. Mas, então, os nossos amados vietcongues? Seus esforços comoventes e heroicos para ganhar liberdade e independência contra a arrogância estadunidense? E o que dizer dos nossos membros da resistência que se engajaram na luta armada contra os nazifascistas? E a lista poderia continuar mais ainda, reafirmando que o recurso às armas tem sido historicamente uma forma de possibilitar a paz e a justiça.
Que paz seria aquela alcançada em nome da injustiça, que paz seria aquela que legitimaria as razões do agressor? Pelo que “os dois irmãos Kennedy teriam morrido? E por que mais morrerão tantos pequenos e sublimes vietcongues?”, se perguntava Pasolini em Trasumanar e organizzar, ressaltando com ênfase que o objetivo da fraternidade e da paz, em determinadas circunstâncias históricas, pode implicar uma luta até à tragédia da morte.
De fato, paz e pacifismo não devem ser confundidos. Na Europa conseguimos o milagre coletivo da paz graças a uma longa e dolorosa guerra. O pacifismo não era uma opção possível na época. O mesmo acontece hoje: o pacifismo não pode ser uma opção em jogo no atual conflito militar. É uma evidência diante dos olhos de todos. Ninguém quer o horror da guerra - exceto nossos sonhos mais inquietos -, mas é o gargalo da história que às vezes determina que seja justamente a guerra a sustentar as razões mais profundas da paz. Por isso, a frase "se silenciem imediatamente as armas" do pacifismo, além de um apelo que todos nós idealmente compartilhamos, se colocado no contexto real do conflito, se dirigido ao povo ucraniano engajado em uma luta sangrenta para salvar sua terra da ocupação russa contra um inimigo militarmente bastante mais forte – como aconteceu a Davi contra Golias - corre o risco de se tornar uma verdadeira blasfêmia.
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O erro de confundir o pacifismo com o direito à paz. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU