18 Junho 2022
"Foi preciso um homem chamado Francisco para nos chamar de volta ao sentido de uma realidade que não se deixa encerrar em uma narrativa boa apenas para o recrutamento, em um ou outro front, mas que contém em si um risco extremo (e mortal) para todos. Para nos dizer, sem perífrases, que, mesmo que finjamos não ter percebido, já hoje 'a Terceira Guerra Mundial foi declarada'”.
A opinião é do cientista político italiano Marco Revelli, professor da Universidade do Piemonte Oriental “Amedeo Avogadro”, em artigo publicado em La Stampa, 16-06-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Foi preciso um jesuíta com nome de um santo profundamente encarnado no humano para devolver ao pensamento o seu caráter de antídoto contra o mal da obtusidade simplificadora. E às pietas a potência daquilo que salva do cupio dissolvi que parece ter contagiado o mundo.
Foi preciso um homem chamado Francisco para nos chamar de volta ao sentido de uma realidade que não se deixa encerrar em uma narrativa boa apenas para o recrutamento, em um ou outro front, mas que contém em si um risco extremo (e mortal) para todos. Para nos dizer, sem perífrases, que, mesmo que finjamos não ter percebido, já hoje “a Terceira Guerra Mundial foi declarada”. E que isso ocorreu, certamente, porque uma potência agressiva e frustrada como a Rússia decidiu cruzar uma linha de sombra e agredir um povo “irmão”; mas também porque nenhum dos que poderiam ter trabalhado para evitar isso o fizeram.
E talvez alguns até se comprouveram com isso, certamente aqueles que lucram com o comércio criminoso de armas e engordam com a morte dos outros. Enquanto outros “continuaram a latir às portas” dos futuros agressores, ignorando o fato (ou sabendo dele, mas sem se preocupar com isso) de que “os russos são imperiais e não permitem que nenhuma potência estrangeira se aproxime deles”.
Francisco falou a língua da Terra, não a de um Estado qualquer, ou de um povo separado e contraposto a outros. Ele deu sequência à mensagem confiada na sua época à Laudato si’, na qual ele fala de um mundo em que “tudo está interligado com tudo”, e a dilaceração da unidade orgânica dos seres vivos é um crime em si. Indicando assim, no olhar capaz de guardar dentro de si todos os “diferentes de si”, o único caminho para evitar a catástrofe da Vida e do Sentido.
Domenico Quirico disse isso de modo exemplar nestas páginas, quando indicou um dos conceitos essenciais da longa conversa do papa na recusa de “reduzir a complexidade à separação entre bons e maus, sem pensar em raízes e interesses que são muito complexos”, e que devem ser compreendidos na sua complexidade, se não quisermos cair na maldição das “ideias loucas”: aquelas que perderam a sua relação com o real – com o real “humano”, com o primado da vida sobre a morte – e que nesse sentido são “heresias”.
É claro que os zelosos da nova Inquisição, os caçadores de cabeças a serem postas na forca, os compiladores de listas lerão (paradoxalmente) naquelas palavras os indícios daquele crime de “pró-putinismo” que parece ter se tornado a única distinção entre vício e virtude. E que permite que muita roupa suja seja lavada, devolvendo patentes de nobreza.
Mas, se formos ao verdadeiro sentido daquela longa conversa, o único vestígio de “amizade” é aquela em relação ao ser humano como tal, na sua vida nua, o verdadeiro sacrificado desta guerra: do soldado caído não importa com que uniforme e da mãe que chora por ele sob qualquer bandeira.
E a única verdadeira inimizade é aquela em relação à guerra, ao “drama humano da guerra”, ao uso perverso que se faz da guerra por parte de quem, hoje, debaixo dos nossos olhos, por “interesses globais de venda de armas ou por apropriação geopolítica, está martirizando um povo heroico”.
A guerra tem uma potência demoníaca: a de atrair para seu próprio vórtice feroz tudo o que está em seu raio mortal, coisas e pessoas, destruindo a vida, paralisando o pensamento, fixando-o nas suas próprias coordenadas binárias, ou comigo ou contra mim, ou na minha lógica desumana ou do lado do inimigo.
O papa está entre os poucos que possuem a força (moral e intelectual) para despedaçar esse círculo perverso. Quando ele elogia o “heroísmo” do povo ucraniano, contrapondo-o à perversão de quem o usa por interesses inomináveis, mas infelizmente evidentes (e não unívocos), ele rompe um feitiço maligno. Ele nos liberta de um destino de subalternidade ao poder do desumano.
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Um grito de paz contra o feitiço dos bons contra os maus. Artigo de Marco Revelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU