18 Junho 2022
E agora? E agora que o papa causa escândalo? As suas palavras – com as fadigas dos dias e dos meses que passam sem paz – sobre as culpas, as omissões, os silêncios sobre a guerra queimam e inflamam. E ferem.
O comentário é de Domenico Quirico, jornalista italiano, publicado por La Stampa, 15-06-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O que farão os intelectuais imaginários, os políticos, aqueles que sabem tudo desde o primeiro dia e que acham que a solução para a guerra desencadeada pela agressão criminosa de Putin é apenas a guerra? Eles, por sua vez, alinharão as palavras e dirão: “É incrível, o papa se tornou um putiniano! Mas, no fundo, o que realmente importa aquilo que ele diz? É seu trabalho estar fora da História, proferir parábolas inócuas e paradoxais”...
Os mestres da suspeita, os caçadores de quintas colunas e infiltrados, para os quais toda distinção e raciocínio (que é “reduzir a complexidade à distinção entre bons e maus, sem pensar em raízes e interesses que são muito complexos...”, como disse Francisco aos diretores das revistas culturais da Companhia de Jesus) são automaticamente traição, deserção, delito, não o atacarão frontalmente. Talvez façam como quando Francisco se referiu ao “latido da Otan às portas da Rússia...” e o espremeram no silêncio.
Francisco segue implacável pelo caminho dos seus ritmos: vida, morte, guerreiros, vítimas, deportados e refugiados. Dor se chama o mistério rumo ao qual ele nos pede para caminhar. Desde o início da guerra, a única coisa que tem significado para ele é a dor de uma terra coberta de sangue. E, por isso, presta homenagem aos ucranianos, “um povo corajoso que está lutando para sobreviver e que tem uma história de luta”.
Se todos os homens tivessem agido pelo bem e apenas pelo bem, não haveria guerra, nem mesmo esta guerra. Mas essa verdade impõe ao papa a pergunta: se este mal são os atos dos homens ou o não fazer dos homens, de quem são as culpas, todas as culpas? Ele pronuncia palavras de tal imensidão que, ao repensá-las uma a uma, parecem muito ousadas. Ele repreende a Rússia e a sua guerra “imperial e cruel” e cita os mercenários com os quais a conduz, chechenos e sírios. Mas, depois, impávido, desafia também a nossa verdade do Ocidente, o fato de nos sentirmos sempre automaticamente do lado da razão.
Um erro que nos custou guerras perdidas, vítimas traídas e abandonadas ao seu destino, isolamento do Iraque ao Afeganistão. O dia 24 de fevereiro é o começo de tudo´, e Putin impôs com a violência esse começo em relação ao qual nós, como democracias, devemos obrigatoriamente fazer a nossa escolha: ajudar a Ucrânia e parar o autocrata.
O papa confirma isso, certamente não nos pede para ficarmos vazios e inertes. Mas acrescenta: isso pode bastar? Não corremos o risco de “ver apenas uma parte e não todo o drama que se está se desenrolando por trás desta guerra que, de algum modo, foi provocada ou não impedida”? Não é uma pergunta teológica ou apocalíptica, é uma pergunta política. E talvez seja precisamente esse o escândalo.
Quem critica o papa gostaria de uma Igreja que não provoque escândalo, que entre na fila, que seja a enfermeira da Cruz Vermelha da História, que envie ajudas humanitárias e distribua prédicas. Recomenda-se que ela seja judiciosamente sábia e não traga mais a destruição e a subversão de uma verdade louca, que repita cansativamente que tudo o que se pode fazer é esperar que a grande quaresma do despotismo, por milagre, chegue ao fim.
A tolerante resignação que torna a vida mais suportável é o porto onde, infelizmente, desembarcam todos os fracassos, até mesmo os da fé. No mínimo, o papa deve nos impor o Escândalo de reunir russos e ucranianos na procissão, de não colocar sinais nas bandeiras da Otan, de encontrar – quem sabe! – os agredidos de Kiev e Kirill, “o coroinha de Putin”.
As escandalosas palavras do papa são uma reflexão sobre a natureza da guerra, desta guerra. Ela pode ser travada por ódio, por desejo de presa, para derrubar um adversário que se torna perigoso, por loucura e sadismo, por amor ao poder, por ofício. A guerra pode ser feita por obediência, porque você foi agredido e não tem outra possibilidade, ou por um projeto de unificação e de glória, ou pelo desejo de vingar uma injustiça. Ou, como diz o papa, pelo “interesse em testar e vender armas... e no fim é precisamente isso que está em jogo”.
Todas essas razões, mais cedo ou mais tarde, se misturam, se confundem e às vezes se corrompem reciprocamente. O papa nos obriga a lembrar que a guerra justa não existe, é um mito insípido que não devemos compartilhar com as mentiras dos prepotentes. E que, no fim, torna tudo, até mesmo a dor, insignificante.
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As escandalosas palavras do papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU