“A expressão ‘fracasso sistêmico’ explica que o problema dos abusos tem suas raízes na própria instituição.” Entrevista com Lucetta Scaraffia

Fonte: Pixabay

Mais Lidos

  • Esquizofrenia criativa: o clericalismo perigoso. Artigo de Marcos Aurélio Trindade

    LER MAIS
  • O primeiro turno das eleições presidenciais resolveu a disputa interna da direita em favor de José Antonio Kast, que, com o apoio das facções radical e moderada (Johannes Kaiser e Evelyn Matthei), inicia com vantagem a corrida para La Moneda, onde enfrentará a candidata de esquerda, Jeannete Jara.

    Significados da curva à direita chilena. Entrevista com Tomás Leighton

    LER MAIS
  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

13 Junho 2022

 

Desde o fim de maio, está nas livrarias italianas o livro Agnus Dei. Gli abusi sessuali del clero in Italia [Agnus Dei. Os abusos sexuais do clero na Itália], de Lucetta Scaraffia, Anna Foa e Franca Giansoldati (Solferino Editore). Trata-se de três autoras renomadas e de autoridade que também trabalham sobre a matéria específica há vários anos a partir da própria ótica profissional. Entre outras coisas, elas fazem isso em um país como a Itália, onde uma parte relevante da mídia participa ativamente do mau costume de não incomodar a Igreja e de não irritar a sua hierarquia, uma realidade midiática italiana que o correspondente em Roma do New York Times, Jason Horowitz, descreve como “safe space”, ou seja, um espaço seguro para a Igreja.

 

A reportagem é de Il Sismografo, 10-06-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Certamente, essa é a razão de fundo pela qual se fala muito menos na Itália sobre a questão da pedofilia clerical do que seria necessário pelo bem das vítimas, mas também da própria Igreja e da nação como um todo. Na Itália, o longo silêncio midiático sobre os abusos cometidos por membros do clero humilhou as vítimas, destruiu pais e familiares, encobriu cúmplices e correntes de ocultação, mas, acima de tudo, atrasou, como diria o Papa Francisco, “a verdade, a justiça e o acompanhamento rumo à cura”.

 

O livro “Agnus Dei” foi publicado mais ou menos nos dias em que a Conferência Episcopal Italiana (CEI) mudava a sua cúpula. O novo presidente, cardeal Matteo Zuppi, falando aos jornalistas, colocava no centro a questão das próximas investigações que a Igreja fará internamente para as denúncias posteriores ao ano 2000. O purpurado esclareceu alguns pontos do problema, mas outros permaneceram obscuros, e às vezes algumas as suas declarações aumentaram a perplexidade de muitos italianos, católicos ou não, diante do silêncio da hierarquia, longo demais, evasivo e confuso.

 

Há pelo menos três décadas, após a eclosão dos escândalos dos crimes de pedofilia na Igreja Católica, insiste-se em duas palavras: verdade e vítimas, acima de tudo! Mas infelizmente, por enquanto, não é assim. Ou, melhor, muitas, muitíssimas palavras, mas poucos fatos, escassos e em doses homeopáticas.

 

Como os pedófilos temem mais a imprensa do que o inferno, é urgente falar sobre isso, tirar o pó e abrir os arquivos, facilitar as investigações, ajudar as vítimas. Nada de justicialismo! Apenas justiça, que obviamente não é possível sem verdade.

 

Esse livro nos ofereceu a oportunidade de falar com L. Scaraffia, F. Giansoldati e A. Foa, e hoje publicamos primeiro a entrevista com Lucetta Scaraffia. Em breve, continuaremos com as outras duas autoras.

 

Eis a entrevista.

 

Nos últimos anos, sobre a delicada questão da pedofilia e sobre as violências e agressões de tipo sexual contra religiosas e deficientes por membros do clero, ouvimos até mesmo de importantes autoridades eclesiásticas que se trata de responsabilidades pessoais. Um exemplo: “A questão da pedofilia não diz respeito à Igreja como instituição, mas às pessoas que, por meio da instituição, fazem o que fazem. É justo que intervenham os responsáveis por essas pessoas, mas a responsabilidade não pertence à natureza da Igreja” (cardeal Fernando Filoni, 30 de novembro de 2018). Na sua opinião, é correto pensar assim?

 

Não, não é justo. É claro que não se pode negar a responsabilidade pessoal, mas ela se estende à instituição a que o culpado pertence e que não vigiou para evitar esse crime e que, além disso, na grande maioria dos casos, calou-se e tentou encobrir o escândalo, sem se preocupar com os danos sofridos pela vítima. Quem se posicionou claramente sobre as responsabilidades de toda a Igreja como instituição, e em particular sobre a responsabilidade das hierarquias eclesiásticas, foi Bento XVI na carta que escreveu sobre as acusações de ter encoberto um padre pedófilo quando era arcebispo de Munique e Freising. O papa emérito escreveu que, embora alegasse inocência em relação a essa acusação individual, não se sentia isento de culpa em geral, tendo ocupado cargos importantes dentro da Igreja. Por isso, chamou a instituição como um todo a assumir toda a responsabilidade em relação aos abusos, especialmente pela falta de reconhecimento do crime e da dor das vítimas. Mas, por enquanto, a sua voz permaneceu isolada.

 

Imediatamente após a publicação do relatório Sauvé na França, o Santo Padre, consternado, falou da “vergonha minha e vergonha nossa" (6 de outubro de 2021). Dois meses depois, em 6 de dezembro, no avião com o qual voltava do Chipre e da Grécia, falando dessa história, especificou: “Uma situação histórica deve ser interpretada com a hermenêutica da época, não com a nossa.” Esse pensamento causou muita confusão e desorientação. Como é possível ler corretamente o que Francisco disse?

 

“Vergonha nossa” não é suficiente como admissão de culpa coletiva: ainda é vergonha entendida apenas pelo comportamento desonesto de alguns padres, não admissão da responsabilidade coletiva em enterrar as denúncias de abuso e em lidar apenas com os culpados, nunca com as vítimas. No que diz respeito a essa referência à hermenêutica histórica, eu acho que é preciso distinguir dois níveis: o mais propriamente histórico e o moral. A análise do nível histórico – avançada por enquanto apenas por Bento XVI em um artigo em uma revista alemã – leva a explicar a intensificação dos abusos nos anos que se seguiram à revolução sexual, examinando a cultura dominante do período. De fato, são anos em que prevalece na sociedade ocidental a ideia de que a repressão do impulso sexual leva a desordens mentais e que a liberdade de praticar atos sexuais deve envolver também os menores.

 

Certamente, a Igreja e, de modo mais geral, o mundo religioso não foram impermeáveis a essas teorias, que, no entanto, nunca foram abordadas abertamente. Na mentalidade católica, a sexualidade foi examinada apenas dentro do casamento e em vista da procriação: qualquer outra manifestação errada era excluída e, portanto, a influência da revolução sexual em seu interior também foi ignorada. Do ponto de vista moral, a hermenêutica histórica não significa que os abusos sexuais devam ser julgados com base nas teorias da época em que foram perpetrados: trata-se de crimes, e a condenação dos crimes deve ser sempre a mesma, não pode mudar. Pelo menos dentro da moral católica. O problema, portanto, não é a hermenêutica, mas o mau hábito que prevalece nas hierarquias eclesiásticas de negar os abusos, de calar a voz das vítimas. Hábito com o qual elas ainda não acertaram as contas.

 

Na carta de renúncia (4 de junho de 2021) ao cargo de arcebispo de Munique e Freising, o cardeal Reinhard Marx escreve ao Santo Padre: “Substancialmente, para mim, trata-se de assumir a corresponsabilidade referente à catástrofe do abuso sexual perpetrado pelos representantes da Igreja nas últimas décadas. As pesquisas e as perícias dos últimos 10 anos me demonstram constantemente que houve falhas de nível pessoal e quanto erros administrativos, mas também um fracasso institucional e ‘sistêmico’.” O purpurado havia dito estas palavras antes desse julgamento conclusivo: “Vejo com preocupação que, nos últimos meses, se nota uma tendência a excluir as causas e os riscos sistêmicos ou, digamos também, as questões teológicas fundamentais e a reduzir a reelaboração a uma simples melhoria da administração.” Queremos perguntar a você, que faz parte do comitê nacional italiano de bioética, um comentário sobre a expressão “fracasso sistêmico”.

 

A expressão “fracasso sistêmico” explica claramente que o problema dos abusos tem as suas raízes no próprio sistema de governo da instituição, um sistema que envolve tanto uma superestimação da figura sacerdotal – que transformou o papel de serviço aos fiéis em um papel de poder social e psicológico – quanto uma adesão tácita das hierarquias à prática de abafar os escândalos para “salvar o bom nome da instituição”. É, portanto, o próprio sistema de funcionamento da Igreja que deve ser revisto: isto é, o tipo de recrutamento do clero, a preparação dos seminaristas, a presença e o papel ativo dos leigos, especialmente das mulheres.

 

Mas, sobretudo, deve ser repensado o Código de Direito Canônico, que não prevê o crime de estupro, mas o considera simplesmente uma transgressão ao sexto mandamento. Portanto, um pecado que pode ser perdoado, um pecado individual de impureza – como a masturbação – e não um ato violento que prejudica outra pessoa. Essa forma de considerar o caráter jurídico do estupro tem como consequência a negação de todo interesse pela vítima, que desaparece e não só não é indenizada e ajudada, como nem sequer é vista. É todo o sistema jurídico que deve ser mudado, portanto, e também deve ser abordado um sistema cultural que nunca levou em consideração o vínculo entre sexualidade e poder como questão central das relações humanas e de gênero em particular.

 

Leia mais