01 Abril 2022
"A posição expressa pelo Pontífice sobre a guerra na Ucrânia nada mais é do que a aplicação coerente à situação atual da tese expressa anteriormente. Mas sua atitude é fruto do itinerário realizado pelo magistério no último século. Afinal, as mesmas formas assumidas pelo conflito em curso - as repercussões trágicas sobre as populações civis são evidentes, assim como o perigo do uso de armas nucleares - não podem mais se encaixar no quadro de uma moralidade católica que os tempos mudaram", escreve Daniele Menozzi, historiador do cristianismo e professor emérito da Normale di Pisa, em artigo publicado por Il Foglio, 30-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O conflito entre Rússia e Ucrânia trouxe de volta à atenção da opinião pública o tema da “guerra justa”. Enquanto o Patriarcado de Moscou apresentou a agressão russa na forma de uma guerra santa, as igrejas ucranianas - tanto ortodoxas (a que obedece a Moscou como a que obedece a Constantinopla), quanto católicas (aquela de rito grego como a latina) - caracterizaram a resistência à invasão como uma guerra justa. De sua parte, o Papa Francisco assumiu uma posição diferente. Falando ao telefone com o Patriarca de Moscou Kirill, lembrou-lhe que hoje as igrejas não podem, como no passado, falar nem de guerras santas, nem de guerras justas, porque "as guerras são sempre injustas". Além disso, no dia 18 de março, no encontro promovido pela Fundação “Gravissimum educationis”, exclamou “guerras justas não existem: não existem!”.
A questão, portanto, parece muito intrincada. Para tentar desembaraçá-la, a ajuda pode vir da história. O tema da justiça da guerra na verdade tem um desenvolvimento milenar. Na teologia católica, a primeira formulação de Santo Agostinho foi sendo atualizada gradativamente até o século XX.
No entanto, a estrutura subjacente permaneceu constante. Baseia-se na tese de que a guerra é um mal muito grave, mas por causa do pecado original os homens não podem evitá-la. No entanto, podem submeter sua promoção e condução à ética, estabelecendo regras que limitem suas consequências, de qualquer forma negativas.
A estruturação dessa concepção novecentista se articula em um ius ad bellum - os requisitos que tornam legítimo iniciar uma guerra - e um ius in bello (os comportamentos moralmente lícitos durante um conflito). Obviamente, o primeiro aspecto é mais relevante. Dispõe que, em caso de violação da justiça nas relações entre os Estados, um governo, após terem resultado inúteis todos os esforços para chegar a uma solução pacífica da controvérsia, pode legalmente recorrer ao uso de armas para restaurar a reta ordem da vida internacional. No entanto, deve observar algumas condições. Além de ter a fundamentada presunção do sucesso militar, ele deve ser capaz de calcular razoavelmente que os males inevitáveis decorrentes da guerra resultem inferiores ao bem que a restauração da justiça comporta. A doutrina da guerra justa fundamenta-se, portanto, em dois princípios: necessidade e proporcionalidade.
A Igreja delega ao juízo responsável dos governantes da coisa pública as avaliações relativas ao cumprimento dos critérios estabelecidos para a justificação ética da violência bélica: apenas os governantes dispõem das informações necessárias para uma decisão correta. Uma vez tomada, é dever estrito dos crentes obedecer às ordens das autoridades civis e militares. Sua salvação eterna está em jogo. Este ponto, na verdade, levantou algumas críticas. Em virtude da doutrina da guerra justa, os católicos tinham que participar de todos os conflitos decididos pela autoridade civil, mesmo que colocados em lados opostos e, portanto, matando-se mutuamente. Mas em uma visão providencialista da história - a guerra é um castigo divino enviado aos homens para expiar seus pecados - essa questão nunca afetou seriamente a teoria.
Uma primeira erosão ocorre em 1917, quando Bento XV escreveu aos líderes das nações em guerra que o conflito em curso é um "massacre inútil". Se a guerra é inútil, desaparece o princípio da proporcionalidade: portanto, não tem mais uma justificação moral. As consequências potenciais são subversivas: os católicos não são obrigados a obedecer às ordens de um poder "injusto". No entanto, a explosão é evitada.
A Secretaria de Estado informa que o Papa não se dirigia aos fiéis, mas às chancelarias, para encaminhá-las para o caminho da negociação face à enormidade da carnificina em curso. De fato, uma vez que a tentativa de iniciar a negociação fracassou, aquele sintagma desaparece no discurso público do Pontífice. No entanto, um problema se abriu aos olhos dos teólogos: as consequências trágicas sobre os civis da guerra total moderna, como se revelou a Primeira Guerra Mundial, ainda permitem calcular racionalmente a relação entre os males da violência bélica e o bem de justiça que através dela se gostaria de alcançar?
A questão volta a aparecer quando se perfilam as armas nucleares. É abordada pela encíclica Pacem in terris publicada por João XXIII em abril de 1963, depois que o mundo esteva à beira da catástrofe com a crise cubana. O Papa defende que nesta nossa época que se vangloria das bombas atômicas é irracional considerar que o recurso à violência bélica represente um instrumento idôneo para restaurar a justiça violada nas relações entre os Estados.
Aliás, que justiça poderia existir com o fim do consórcio civil? Portanto, caem os pressupostos da guerra justa. Mas a letra do texto é muito precisa. É contra a razão pensar em usar armas ad iura sarcienda, ou seja, para restaurar o direito internacional violado. Mas na doutrina tradicional a justiça que a guerra é chamada a restaurar também tem outra face.
É expresso pela frase ad vim repellendam: é lícito usar a força para repelir o agressor.
A encíclica nada diz sobre isso. Em suma, deixa a questão da guerra nuclear aberta por legítima defesa.
Nas décadas sucessivas este é o ponto que a autoridade eclesiástica aprofunda. A linha, como mostram os documentos oficiais da Santa Sé - em particular o Catecismo da Igreja Católica (1992) e o Compêndio da Doutrina Social da Igreja (1994) - é bastante clara. No quadro de uma condenação geral da guerra - e da consequente solicitação para operar pela paz – procede-se lenta, mas tenazmente, a circunscrever as condições previstas pela doutrina tradicional quanto à licitude moral do exercício do direito à defesa.
Basta recordar a desaprovação da produção e desenvolvimento de armas ABC e a exortação à sua destruição; a proclamação da obrigação moral de se opor às ordens que comportam crimes contra o direito do povo (obviamente também o direito à sobrevivência); a afirmação da licitude do reconhecimento estatal da objeção de consciência por motivos religiosos ao uso da força.
Outra contribuição para a tendência de restringir os limites da justiça no uso das armas vem das intervenções de João Paulo II em relação às situações concretas que ele tem que enfrentar. No momento em que se perfila o terrorismo islâmico, além de proclamar que não pode existir uma guerra santa, ou seja, que Deus nunca pode ser invocado para justificar um conflito armado, rejeita as teses da administração estadunidense sobre a licitude de se defender através de uma "guerra preventiva". Wojtyla esclarece - para grande escândalo dos ambientes católicos norte-americanos - que tal tipo de guerra não pode ser moralmente justificada como resposta à violência do terrorismo.
Quando se abre o trágico conflito na ex-Iugoslávia, a Santa Sé reage à apresentação sob forma de um justo exercício da violência bélica da intervenção militar em defesa de grupos étnicos ameaçados em sua própria sobrevivência. De fato, esclarece que a "ingerência humanitária" é legítima (portanto não a simples interposição com meios não violentos), mas a utilização das forças armadas deve estar subordinada a requisitos precisos: são as organizações internacionais, ou seja, as Nações Unidas, que estabelecem a evidente necessidade de proteger os direitos humanos fundamentais de uma população através do envio de um contingente militar e de dirigir suas operações. Boa parte dos teólogos leu o conjunto desse desenvolvimento histórico como a demonstração de que, em uma época em que as guerras modernas empregam armas que comportam a destruição em massa dos civis, a teologia da guerra justa esgotou sua tarefa. A moralização da guerra tinha sentido enquanto os exércitos se contrapunham.
Em nosso mundo, ao contrário, todo conflito inevitavelmente envolve crianças, mulheres, idosos, civis desarmados e traz o risco de uma catástrofe nuclear. Uma vez esmaecida a visão da guerra como castigo divino, ela aparece como responsabilidade das escolhas dos homens. Quando se mata um inocente, se comete um pecado. O próprio João Paulo II, em seu discurso ao corpo diplomático de janeiro de 1991, indicou claramente a mudança ocorrida: "As exigências da humanidade de hoje nos pedem que caminhemos resolutamente para a proibição absoluta da guerra".
O Papa Francisco tirou as conclusões óbvias do itinerário realizado pelo magistério romano no último século, dando mais um passo. Na mensagem para a quinquagésima jornada mundial da paz (janeiro de 2017), Bergoglio afirma que o estilo de uma política voltada para a construção da paz, para ser coerente com o Evangelho, deve basear-se na "não-violência ativa". Obviamente não se trata de “rendição, desengajamento e passividade” diante do mal da injustiça, mas de vencê-lo sem ter que recorrer à “força enganosa das armas”.
A posição expressa pelo Pontífice sobre a guerra na Ucrânia nada mais é do que a aplicação coerente à situação atual da tese expressa anteriormente. Mas sua atitude é fruto do itinerário realizado pelo magistério no último século. Afinal, as mesmas formas assumidas pelo conflito em curso - as repercussões trágicas sobre as populações civis são evidentes, assim como o perigo do uso de armas nucleares - não podem mais se encaixar no quadro de uma moralidade católica que os tempos mudaram.
Certamente pode-se observar que, enquanto o pontificado romano realizava os aprofundados aqui rapidamente descritos, a cultura católica continuou a raciocinar sobre a justiça da violência bélica, esquecendo-se do que a constituição conciliar Gaudium et spes de 1965 havia almejado.
O texto exortava a reivindicar os direitos (portanto, manter a justiça), renunciando à violência das armas e recorrendo, em vez disso, "àqueles meios de defesa que também estão ao alcance dos mais fracos".
Mas isso é justamente um atraso da comunidade eclesial em relação ao governo do Papa.
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Quando a guerra não é mais justa. As interpretações da Igreja durante a história. Artigo de Daniele Menozzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU