“A novidade no anúncio da fé e a reforma da Igreja Católica introduzidas pelo Vaticano II são absolutamente irreversíveis. A liberdade dos filhos de Deus supera a lei e os mandamentos.”
A opinião é do historiador italiano Daniele Menozzi, professor emérito da Scuola Normale Superiore de Pisa e ex-professor das universidades de Trieste, Bolonha, Lecce e Florença.
O artigo, publicado em Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 01-12-2021, retoma a conferência de Menozzi no 20º Colóquio “Oggi la Parola”, em Camaldoli, Itália, realizado entre os dias 28 de outubro e 3 de novembro.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No início do pontificado, a referência de Francisco ao Vaticano II pareceu ser um dos traços salientes do seu discurso público. Para além de algumas frases de efeito – “o Concílio deve ser mais feito do que falado”, parece que ele disse a um dos seus primeiros entrevistadores –, quem testemunha isso é a exortação apostólica Evangelii gaudium, o documento programático emanado em setembro de 2013.
Imagem: Concílio Vaticano II | Foto: Walter Ascencio / Wikimedia Commons
A esse propósito, basta lembrar que uma ampla citação do sexto capítulo do decreto Unitatis redintegratio é proposta em apoio a um dos pontos mais qualificadores do texto: a consideração de que a Igreja, peregrina em uma história da qual ela assume imperfeições e fraquezas, é chamada a uma contínua reforma para se conformar ao rosto que Cristo lhe atribuiu. Em suma, o papa fundamenta um ponto central da sua direção de governo a uma referência ao Vaticano II.
Mas, para além de apenas um aspecto particular, outros elementos – eu diria até as mais importantes proposições papais – se fundamentam, na Evangelii gaudium, em referências ao Vaticano II também de forma indireta. Basta lembrar que o desejo de uma “Igreja pobre para os pobres” constitui uma tradução pontual do capítulo da constituição conciliar Lumen gentium relativo às implicações eclesiológicas da escolha da pobreza feita por Cristo. Na verdade, nas entrelinhas, pode-se captar aqui um evidente distanciamento da fórmula “opção preferencial pelos pobres” com a qual aquela passagem do documento havia sido edulcorada na interpretação proposta por amplos setores da Igreja pós-conciliar.
Há mais de oito anos do acesso do pontífice argentino à liderança da Igreja, podemos nos perguntar, então, que papel desempenhou o tema do Concílio desempenhou no discurso público que ele desenvolveu nesse período. Eu começaria com um dado numérico. Ao verificar as ocorrências do sintagma “Concílio Vaticano II” nas intervenções que aparecem no site oficial do Vaticano, verifica-se que, desde o dia 13 de março de 2013, data da eleição, até o fim de setembro deste ano, ou seja, até o dia da última pesquisa, a locução aparece 227 vezes. A comparação com Bento XVI parece impiedosa: de 19 de abril de 2005 a 28 de fevereiro de 2013, Ratzinger a utilizou 428 vezes; em um período cronológico substancialmente comparável, as ocorrências são quase a metade.
No entanto, se deslocarmos a atenção do nível quantitativo ao qualitativo, a comparação com Bento XVI assume um rosto totalmente diferente. A menor incidência numérica das referências ao Vaticano II tem como contrapeso uma inversão da atitude quanto à sua normatividade para a vida da Igreja.
Como se sabe, Bento XVI havia defendido que, para a correta interpretação dos documentos conciliares, era preciso abandonar a hermenêutica da ruptura e se confiar à hermenêutica da continuidade. As pesquisas de Giovanni Miccoli mostraram que, ao abrigo dessa concepção, encontraram ainda mais espaço dentro da comunidade eclesial aqueles ambientes anticonciliares que há muito tempo mantinham relações estreitas com o variado mundo do tradicionalismo externo à Igreja, a partir também de setores internos à Igreja, como os ambientes da Cúria Romana e da hierarquia episcopal.
Mas a linha de Ratzinger havia ido muito além dessa legitimação do anti-Concílio. Embora não tendo conseguido levar a termo aquele que ele havia apresentado como o ponto qualificador do seu programa de governo, isto é, a recomposição do cisma lefebvriano, os atos realizados para alcançar esse objetivo haviam determinado, de fato, uma nova legitimação teológica e eclesial da oposição ao aggiornamento [atualização] conciliar. Em particular, haviam sido as intervenções em matéria litúrgica que evidenciaram essa sua orientação.
Não podemos aqui articular a retomada por parte de Francisco da renovação conciliar da liturgia. Basta-me apenas recordar que ele afirmou várias vezes que não é possível fazer uma reforma da reforma litúrgica como propuseram precisamente os ambientes anticonciliares.
Acrescento que o traço distintivo com que Bergoglio apresenta a reforma do Concílio no seu ensino público é o fato de que ele acompanha o sintagma “reforma litúrgica” com um adjetivo: “irreversível”. Esse me parece ser o dado mais evidente da sua atitude. E quero enfatizar que o mesmo adjetivo “irreversível”, acompanhado às vezes de um advérbio, isto é, “absolutamente”, é a expressão linguística com a qual o Papa Bergoglio se refere de modo abrangente ao Concílio Vaticano II, não só à reforma litúrgica, mas ao conjunto do Vaticano II. O julgamento é: “absolutamente irreversível”.
Um exemplo significativo se encontra em uma passagem da entrevista concedida no verão de 2013 ao diretor da revista La Civiltà Cattolica, Antonio Spadaro, que, como se sabe, o papa escolheu como um caminho eficaz para comunicar uma ampla informação sobre as direções às quais pretendia inspirar o seu governo.
Questionado pelo jesuíta acerca da sua avaliação do Vaticano II, Bergoglio afirmou: “O Vaticano II foi uma releitura do Evangelho à luz da cultura contemporânea. Produziu um movimento de renovação que vem simplesmente do próprio Evangelho. (...) A dinâmica de leitura do Evangelho atualizada no hoje, que foi própria do Concílio, é absolutamente irreversível”.
O papa acrescentou, depois, referindo-se novamente ao exemplo da reforma litúrgica, que os frutos dessa renovação são extraordinariamente positivos.
A proclamação da absoluta irreversibilidade do Vaticano II se fundamenta, portanto, em um juízo acerca dos resultados produzidos pela mudança introduzida na relação entre Igreja e mundo contemporâneo pela cúpula conciliar. Enquanto isso, gostaria de enfatizar que não se trata de uma avaliação otimista superficial. Bergoglio está ciente das dificuldades encontradas pela recepção das deliberações conciliares.
Na exortação apostólica Evangelii gaudium – depois de ter evocado explicitamente a passagem da alocução de outubro de 1972 em que João XXIII, expressando a sua discordância dos profetas da desgraça, manifestava confiança em uma renovada presença da Igreja no mundo moderno – ele observou que, a 50 anos do Vaticano II, é preciso olhar realisticamente para o que aconteceu no pós-Concílio, sem que a confiança na ação do Espírito Santo leve a otimismos ingênuos.
No rastro dessa abordagem realista, Bergoglio fez uma análise que ele considera objetiva do impacto do Concílio sobre a vida eclesial. Parece-me que ela se baseia em dois elementos de fundo.
Em primeiro lugar, o pontífice observou que, dentro da Igreja, está em ação uma consistente oposição ao Concílio. Desde abril de 2013, em uma das primeiras meditações matinais proferidas na Capela de Santa Marta, que logo se tornariam o lugar privilegiado para dar a conhecer as suas convicções pessoais, Bergoglio recordou que uma das questões com as quais a Igreja atual deve se defrontar é a amplitude da resistência ao Vaticano II. De fato, em seu interior, não estão presentes apenas os ambientes que se propõem intencionalmente a fazê-la voltar ao período anterior a ele, mas também operam setores que, embora aderindo formalmente ao Concílio, transformam-no em m monumento, com a intenção de evitar toda mudança eclesial.
Em um encontro posterior, Francisco enriqueceu ainda mais a articulação das correntes eclesiais que, de algum modo, se contrapõem ao Concílio, destacando que, na comunidade eclesial, também estão em ação setores que diluem e relativizam as suas decisões.
Além das oposições, portanto – a oposição frontal, a oposição que o monumentaliza e a oposição que o dilui –, Francisco vê um segundo aspecto, talvez ainda mais relevante do pós-Concílio: a realização do aggiornamento eclesial, embora tendo encontrado sucessos (a reforma litúrgica), foi apenas parcial.
Por exemplo, no que diz respeito ao ecumenismo, na carta dirigida em novembro de 2014 aos membros do Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos, ele lembra que, graças ao decreto conciliar Unitatis redintegratio, os católicos mudaram de atitude em relação às outras confissões cristãs, reconhecendo o que há de bom e de verdadeiro nas diversas confissões que se referem a Cristo, mas logo depois acrescenta que esse caminho só foi parcialmente percorrido e é preciso ainda aprofundá-lo e desenvolvê-lo.
Análogo foi o discurso feito em relação ao decreto Apostolicam actuositatem, sobre a limitada valorização dos leigos tanto em relação ao seu envolvimento em uma obra de evangelização, à qual são chamados não por delegação da hierarquia, mas em virtude do batismo, quanto em em relação à assunção, particularmente por parte das mulheres, de responsabilidades de governo dentro da Igreja, o que o papa considera distinta do serviço ministerial.
Poderiam se multiplicar outros exemplos dos âmbitos em que o papa nota atrasos e carências na aplicação do Vaticano II. Limito-me a recordar que, em certo ponto, em um discurso de setembro de 2017, ele os elencou: colegialidade, sinodalidade no governo da Igreja, valorização das Igrejas particulares, responsabilidade de todos os cristãos na missão da Igreja, ecumenismo, misericórdia e proximidade como princípio pastoral primário, liberdade religiosa pastoral coletiva e institucional, laicidade aberta e positiva, sã colaboração entre as comunidades eclesial e civil nas suas diversas expressões.
Portanto, o âmbito dos atrasos é bastante variado. Naturalmente, não posso examinar todos eles, mas gostaria de dizer algumas palavras sobre um deles que representou um autêntico punctum dolens do pós-Concílio, isto é, a colegialidade episcopal.
Na exortação apostólica Evangelii gaudium, Francisco observou que não foi realizado o desejo expressado na constituição conciliar Lumen gentium em relação à atribuição às Conferências Episcopais daqueles poderes de governo concretos que as tornem protagonistas eficazes, de acordo com o modelo das antigas Igrejas patriarcais, de uma direção colegial da Igreja universal.
Francisco, depois, interveio para atribuir a esses órgãos um poder decisório em matéria litúrgica em função da inculturação. Mas, no documento programático de 2013, ele disse algo a mais: ele afirmou naquela ocasião que é preciso reconhecer às Conferências Episcopais alguma “autêntica autoridade doutrinal”. Esse é um ponto qualificador para realizar a colegialidade. É uma pequena frase, naturalmente, mas tem um significado se a examinarmos em relação às decisões finais do Sínodo dos Bispos de 1985, no qual havia sido invocada explicitamente a necessidade de especificar o papel das Conferências Episcopais, definindo estatutariamente a autoridade delas também em matéria doutrinal.
A resposta negativa de Roma veio com a carta publicada por João Paulo II em 1986, após uma longa gestação na Congregação para a Doutrina da Fé liderada pelo cardeal Ratzinger, que, aliás, já havia expressado a sua clara oposição a esse resultado estatutário na entrevista concedida precisamente naquele ano a Vittorio Messori, na qual afirmava que a competência das Conferências Episcopais dizia respeito somente ao plano pastoral prático.
Pois bem, na exortação apostólica inaugural do pontificado, Francisco reabria um caminho, o da atribuição às Conferências Episcopais de uma autêntica autoridade doutrinal que os seus antecessores haviam fechado de algum modo, desatendendo o desejo do Vaticano II. Além disso, é fácil constatar que, nos atos de governo realizados por Bergoglio até hoje, esse tema não encontrou uma implementação concreta: era um desejo da Evangelii gaudium, mas a implementação não ocorreu.
Parece-me que o motivo disso é que esse tema se entrelaçou com a reforma do Sínodo dos Bispos que Bergoglio pôs em campo, na tentativa de torná-lo um canal de envolvimento de todo o povo de Deus no governo de a Igreja. Como disse Francisco em outubro de 2015, por ocasião do discurso de comemoração pelo 50º aniversário da instituição do Sínodo dos Bispos, esse órgão deveria se tornar “a manifestação de um dinamismo de comunhão que inspira todas as decisões eclesiais, da Igreja particular, a paróquia, até à Igreja universal”.
Isto é, parece-me que a não implementação daquilo que havia sido dito na Evangelii gaudium corresponde ao ambicioso projeto de construir uma Igreja sinodal que, na visão do papa, deveria constituir também um estímulo para a sociedade civil organizar formas de convivência mais fraternas e mais respeitosas da dignidade de todos os povos e de todas as pessoas; e esse ambicioso projeto encontrou uma primeira configuração na constituição apostólica Episcopalis communio, de setembro de 2018.
Embora identificando novas e relevantes formas de consulta entre o povo de Deus e a hierarquia, o ponto nodal do caráter meramente consultivo do Sínodo ainda não foi resolvido com esse documento. No entanto, o papa quis esclarecer que a sinodalidade, apresentada aqui como uma forma de implementação de outro aspecto não realizado da eclesiologia conciliar, a atribuição a todo o povo de Deus da infalibilidade in credendo, é o programa da Igreja para o terceiro milênio; é uma construção em curso que, partindo da Lumen gentium e de algum modo do Concílio, deve seguir em frente; trata-se de percorrer esse caminho por meio de uma prudente experimentação das formas de implementação dessa nova forma de comunhão da Igreja que preveja o envolvimento de todo o povo de Deus, porque, como diz Francisco, a infalibilidade in credendo está em todo o povo de Deus.
Com base nos elementos que eu enunciei rapidamente até aqui, podemos tentar tirar uma primeira conclusão totalmente provisória – o pontificado ainda está em curso – sobre a atitude de Francisco em relação à implementação do Vaticano II. O papa, convencido da irreversibilidade do aggiornamento promovido pela cúpula ecumênica, desenvolve uma análise realista da sua recepção no meio século posterior ao fim do Concílio.
Embora detectando aspectos positivos para uma transmissão atualizada do Evangelho – esse é o aspecto que me parece mais significativo do juízo positivo, ou seja, o Evangelho está sendo transmitido de forma adequada e compreensível às pessoas de hoje –, ele vê a recepção do Concílio caracterizada tanto pela presença de uma contraposição articulada à renovação eclesial quanto por uma aplicação das suas deliberações que parece marcada por atrasos e carências pelas quais até mesmo a cúpula romana tem algumas responsabilidades (Francisco nunca foi terno com a Cúria Romana, como fica claro nos seus discursos à Cúria Romana, que é uma das razões desses atrasos e dessa opacidade na realização do Vaticano II).
A linha de Bergoglio gira em torno da promoção de uma plena conformação da vida da Igreja às decisões do Vaticano II; porém, ele acredita que deve ser realizada gradualmente, e esse aspecto da experimentação, de uma lenta e gradual experimentação, está, creio eu, na exigência de manter unida a estrutura eclesial, cumprindo assim a função que lhe parece constitutiva do serviço petrino, a unidade da Igreja.
Eu acrescentaria que a perspectiva de uma progressiva superação das resistências e das inadimplências se afasta no tempo, mas não enfraquece o objetivo de se chegar a uma plena implementação das deliberações conciliares segundo Bergoglio. Uma testemunha eficaz disso é um discurso proferido recentemente pelo pontífice ao escritório catequético da Conferência Episcopal Italiana (CEI), uma instituição tão formalmente obsequiosa quanto, de fato, muito pouco disponível a seguir as indicações do papa.
O Vaticano II, afirmou o papa naquela ocasião, não deve ser negociado. Pelo contrário, acrescentou, ao pretendermos a sua aplicação, é preciso que sejamos exigentes, severos: ele usou estes termos, “exigentes, severos”. Ao se dirigir à CEI, isso não é um acaso. Pode-se dizer que, flexível em relação aos tempos, o papa é irremovível em relação ao resultado final, ao objetivo a ser alcançado.
Tal firmeza requer, aos olhos de um estudioso de história, alguma explicação. Parece-me que ela pode ser encontrada no itinerário biográfico de Bergoglio, bem diferente daquele dos pontífices que, depois da conclusão do Vaticano II, se sucederam na cátedra de Pedro. Todos eles, formados nos anos da hegemonia da cultura católica intransigente, viveram o trabalho das tentativas de superação dessa cultura, sobretudo nos debates da aula conciliar e, depois, levaram para as discussões do pós-Concílio os esquemas mentais herdados do passado.
Nessa ótica, parece-me inteligível a modalidade da resposta que os pontífices que se seguiram ao Vaticano II deram àquela que foi definida como a “crise católica”, isto é, a não realização daquele “salto” da Igreja que João XXIII tinha atribuído ao aggiornamento conciliar; o Concílio foi feito precisamente com a intenção de João XXIII de a Igreja dar um salto; depois do Concílio, houve uma crise católica, principalmente de um ponto de vista numérico efetivo, mas não só do ponto de vista numérico efetivo.
Então, diante dessa situação, como aqueles pontífices responderam? Diante de uma realidade que parecia desatender as expectativas, tornava-se natural agarrar-se a alguns aspectos do patrimônio intelectual sobre o qual haviam amadurecido as suas certezas juvenis, combinando-os com a renovação promovida pelo Vaticano II. E me parece que esse é o traço, isto é, tentar reunir, integrar o passado com o aggiornamento conciliar.
Surgiu daí um equilíbrio ambíguo que cada pontífice construiu sobre a sua cultura de referência. Por exemplo, podemos lembrar o caso do maritainismo para Paulo VI, do personalismo ontológico para João Paulo II. Em vez disso, Bergoglio, como ele mesmo declarou repetidamente, completou inteiramente o seu percurso formativo sobre os documentos do Vaticano II; ele obteve deles uma abordagem cultural muito diferente; a sua juventude foi construída sobre esses documentos, não é uma cultura de referência diferente. A sua cultura é a do aggiornamento; eu acho que é importante lembrar disso.
A solução ao problema de dar incidência à presença da Igreja Católica no mundo contemporâneo se encontra em uma plena implementação daquela renovação pastoral baseada no diálogo entre cristianismo e mundo moderno, ao qual o Concílio havia confiado a tarefa de restituir à Igreja uma capacidade apostólica eficaz para transmitir a mensagem do Evangelho aos homens e mulheres de hoje.
Nessa perspectiva, a solução às dificuldades enfrentadas pelas comunidades eclesiais no pós-Concílio não consiste, como nos antecessores, em fixar o limite até o qual a renovação pode ser empurrada com base em sedimentos da cultura católica pré-conciliar, mas sim na recuperação de um impulso missionário radicado na aplicação do núcleo profundo da cúpula ecumênica, isto é, como ele disse na entrevista a Spadaro, uma releitura do Evangelho à luz da cultura contemporânea.
A cultura moderna relê o Evangelho, reinterpreta-o, dá-lhe novos conteúdos, novo significado. Pode-se notar que tal abordagem acarreta um limite evidente, a não consideração de um dado que, embora nem sempre detectado pelos estudos, emerge claramente a partir de uma investigação desapaixonada da cúpula ecumênica, ou seja, as ambiguidades e as contradições dos documentos conciliares em prospectar uma nova relação da Igreja com a sociedade moderna.
Não é que os documentos conciliares sejam lineares sobre essa relação entre Evangelho e modernidade; há oscilações, há ambiguidades, talvez até contradições. Ora, na falta de posicionamentos explícitos a esse respeito, podemos supor que tal aspecto parece ser uma questão secundária para o pontífice, diante da aquisição fundamental que, considerada no seu conjunto, o Concílio permitiu alcançar.
Como ele escreveu na bula de convocação do Jubileu da Misericórdia de abril de 2015, “derrubadas as muralhas que, por demasiado tempo, tinham encerrado a Igreja numa cidadela privilegiada”, o Vaticano II abriu uma nova etapa da evangelização; e o fez porque permitiu anunciar o Evangelho de modo compreensível ao homem e à mulher de hoje.
Essa interpretação foi confirmada na homilia que o papa proferiu em dezembro de 2015 por ocasião da abertura da Porta Santa precisamente para o Jubileu Extraordinário da Misericórdia; menciono isso porque me parece uma passagem crucial para entender a atitude de Francisco sobre o Vaticano II considerado no seu conjunto. Diz o papa: “Hoje, aqui em Roma e em todas as dioceses do mundo, cruzando a Porta Santa, queremos também recordar outra porta que, há 50 anos, os Padres do Concílio Vaticano II escancararam ao mundo. Essa ocasião não pode ser recordada somente pela riqueza dos documentos produzidos, que até aos nossos dias permitem verificar o grande progresso feito na fé” (novamente o julgamento é substancialmente positivo apesar dos atrasos, as carências, as inadimplências, as oposições), para que o Evangelho seja transmitido aos homens e mulheres contemporâneos.
O papa acrescenta: “Em primeiro lugar, porém, o Concílio foi um encontro. Um verdadeiro encontro entre a Igreja e os homens e as mulheres do nosso tempo. Um encontro marcado pela força do Espírito que impulsionava a sua Igreja a sair dos baixios que, por muitos anos, haviam-na encerrado em si mesma, para retomar com entusiasmo o caminho missionário. Era a retomada de um percurso para ir ao encontro de todos os homens e mulheres, lá onde eles vivem, na tua cidade, na sua casa, no seu local de trabalho... Onde quer que haja uma pessoa, lá a Igreja é chamada a ir ao seu encontro para levar a alegria do Evangelho e levar a misericórdia e o perdão de Deus. Um impulso missionário, portanto, que, depois dessas décadas (isto é, as décadas que decorreram entre o fim do Concílio e o seu acesso ao pontificado), retomamos com a mesma força e o mesmo entusiasmo”.
É um trecho rico, muito rico em muitas implicações. Limito-me a sublinhar duas delas. Por outro lado, o pontífice reitera o seu julgamento sobre a situação eclesial. Trata-se de relançar aquela redescoberta de uma relação entre Igreja e cultura contemporânea, que, promovida pelo Concílio, se obscureceu nas décadas posteriores. Por outro lado, o papa ressalta que, na base dessa nova relação, está a percepção de que a Igreja vive na companhia de homens e mulheres concretos que caminham em um tempo histórico concreto.
As consequências dessas anotações para o presente emergem claramente no discurso dirigido no dia 29 de dezembro de 2017 à Associação Teológica Italiana. O papa recorda mais uma vez que o grande mérito que o Concílio teve de tornar o Evangelho novamente compreensível às pessoas de hoje permitiu que a Igreja reencontrasse a capacidade apostólica, a eficácia pastoral, o impulso missionário. No entanto, ele sublinha que, nesse meio século decorrido desde a sua conclusão, os tempos mudaram profundamente. Os homens, as mulheres e sua cultura mudaram.
Nessa situação, para dar uma implementação concreta ao objetivo indicado pelo Vaticano II, é preciso que a Igreja realize mais uma etapa na estrada da evangelização. Um de seus elementos constitutivos é a leitura do Evangelho à luz dos sinais emergentes na história em curso. Francisco sintetiza essa sua linha com a proposta de manter uma relação de fidelidade criativa com o Concílio. Pode-se dizer que a cúpula ecumênica atribui um método que deve ser aplicado à variação das situações, às novas condições.
Parece-me que o seu governo implementou essa linha abordando, sob diversos perfis, a questão que está no cerne dos problemas enfrentados pela Igreja desde a era moderna, ou seja, a reivindicação pela emancipação do sujeito em relação à tutela eclesiástica em todos os âmbitos da vida individual e coletiva.
A resposta do Vaticano II girava em torno do reconhecimento da legítima autonomia das realidades terrestres; lembrem-se da Gaudium et spes: uma justa autonomia, a autonomia lícita das realidades terrenas. Desse modo, novos espaços de liberdade eram reconhecidos ao ser humano contemporâneo, mas sempre se reservava à autoridade eclesiástica um controle moral sobre as atividades humanas; quem mais detém as chaves da justiça, daquela justa autonomia, senão a autoridade eclesiástica na sujeição àquelas leis naturais universais válidas sempre, em todos os lugares e para todos? Somente a autoridade da Igreja é a sua guardiã e intérprete.
É inútil elencar aqui os confrontos que essa abordagem produziu no pós-Concílio, enquanto a pós-modernidade ampliava a novos e antes impensáveis âmbitos a reivindicação de autodeterminação do sujeito. Pode-se notar que aqui, creio eu, está uma das razões da crise católica. Desde o início do pontificado, Francisco reformulou a posição da Igreja, sublinhando um princípio óbvio, mas também acredito que muitas vezes ignorado, isto é, de que, nas verdades propostas pelo catolicismo, existe uma hierarquia. Os princípios inegociáveis que derivam da lei natural nunca são revogados, certamente não são revogados pelo ensinamento de Francisco, mas estão subordinados ao Evangelho. Primeiro vem o Evangelho, depois vem a lei natural, depois vêm os princípios inegociáveis, isto é, a aplicação da lei natural; existe uma hierarquia. É inevitável na posição da Igreja.
Portanto, um Evangelho cujo núcleo constitutivo é identificado na misericórdia: primeiro a misericórdia, depois a lei natural, depois os princípios inegociáveis que não são cancelados, mas vêm depois; há uma reivindicação primária da presença da Igreja no mundo que é, precisamente, a misericórdia, isto é, o Evangelho. Segue-se daí uma profunda mudança na relação entre a Igreja e as pessoas de hoje: a caridade do bom samaritano – e vocês se lembram que, na Fratelli tutti, o bom samaritano é a figura crucial da encíclica –, e não a pretensão de conformar os comportamentos individuais e os ordenamentos públicos à lei natural, é o elemento constitutivo distintivo e qualificador da presença da Igreja no mundo contemporâneo. Acredito que uma das propostas mais conhecidas e originais de Francisco – a Igreja como hospital de campanha – tem as suas raízes aqui.
Recentemente, porém, parece-me que Bergoglio foi além desse que, de certa forma, foi o tema crucial do seu ensino. Na audiência do dia 18 de agosto passado, ele afirmou que os mandamentos não são absolutos, mas sim o caminho pedagógico que guia o cristão a se tornar adulto e alcançar, assim, a condição que lhe permite viver a fé na liberdade dos filhos de Deus. O tema mal foi mencionado e pode ser desenvolvido em muitas direções. Como todos vocês sabem, é um tema delicado. Imediatamente depois, houve o pedido de esclarecimentos feito por setores do mundo judaico, que viram aí uma retomada (o que é bastante problemático, na minha opinião) de temas antissemitas. Assim como vocês viram a resposta oficiosa do L’Osservatore Romano a esse tipo de avaliação.
Mas, para além disso, que eu recordei somente para dizer que o tema pode ter múltiplas implicações, parece-me que há aí uma implicação para a qual eu gostaria de chamar a atenção de vocês, porque me parece que aqui está um dos desdobramentos mais importantes da fidelidade ao Vaticano II: recordar que os Dez Mandamentos não são absolutos, mas um caminho pedagógico para o cristão se torne adulto significa lançar as premissas, pelo menos lançar as premissas, para encerrar aquele caso secular que viu a Igreja se colocar em antítese à reivindicação de autonomia ética e não apenas política do ser humano moderno.