“Se o movimento neotradicionalista anti-Vaticano II ganhou impulso na última geração, também foi por causa da relutância dos líderes católicos do Vaticano II, tanto entre a hierarquia quanto entre os intelectuais, em levar o desafio a sério. Os ataques contra o Concílio são problemáticos por razões que deveriam ser óbvias. Que mensagem a Igreja enviaria rejeitando a declaração conciliar Nostra Aetate, em um momento em que o antissemitismo está novamente mostrando sua cara? E o que dizer de uma Igreja que esquece a Dignitatis Humanae em uma época em que os desafios à liberdade religiosa estão aumentando? Além disso, como pode a Igreja negligenciar a Dei Verbum num momento em que a própria ideia do conhecimento como forma de habitar uma tradição está em crise?”, escreve Massimo Faggioli, historiador italiano, professor na Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por La Croix International, 05-10-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O Papa Francisco sabe causar comoção com suas declarações.
Mas mesmo quando o atual Bispo de Roma diz coisas que não deveriam ser noticiosas, elas são objetivamente relevantes no contexto da batalha da Igreja Católica de hoje.
Um exemplo: o Papa disse recentemente que o Concílio Vaticano II (1962-65) moldou sua visão teológica e pastoral.
Ele fez isso no prefácio de um novo livro chamado “Fraternità segno dei tempi”, que foi escrito pelo cardeal Michael Czerny, um de seus companheiros jesuítas e alto escalão do Vaticano, e Christian Barone, um padre e teólogo italiano.
“É necessário tornar mais explícitos os conceitos-chave do Concílio Vaticano II, os fundamentos de seus argumentos, seu horizonte teológico e pastoral, os argumentos e o método que utilizou”, escreve Francisco no prefácio.
Este não foi um comentário improvisado, mas uma declaração escrita em um livro publicado pela editora do Vaticano e relatado em 28 de setembro por seu meio oficial de comunicação, o Vatican News.
Por que a declaração do papa sobre o Vaticano II é tão interessante?
A oposição organizada a Francisco não reagiu como de costume, alegando que o papa jesuíta havia dito algo não ortodoxo ou cedeu ao espírito liberal e secularista da época.
Não o fez porque seria muito conspícuo para líderes católicos – cardeais e bispos especialmente – se distanciarem do 21º concílio ecumênico da Igreja. Exatamente o oposto.
Eles não precisaram reagir. Basta fazer uma busca online nos círculos conservadores e tradicionalistas, assim como em suas publicações e sites de autoajuda teológica, para ter uma ideia da magnitude do problema.
Esses grupos simplesmente identificam o Vaticano II com a venda da identidade católica e enfraquecimento do sentido da tradição. Outras vezes, eles usam o Vaticano II como sinônimo de relativismo, neopaganismo e heresia.
Não é apenas os portais da internet ou a EWTN (não estou citando os sites porque eles não merecem propaganda gratuita).
O Papa Francisco fez – e está fazendo – muito para mudar esta situação.
É impossível ignorar o impacto que as palavras e atos desse pontificado tiveram na restauração do lugar e da reputação que o Concílio Vaticano II merece no discurso na Igreja, mas também no discurso sobre a Igreja na grande mídia.
Mais recentemente, seu “motu proprio” Traditionis custodes – que reverteu a decisão de Bento XVI em 2007 de universalizar o uso da “forma extraordinária” (pré-Vaticano II) da Missa no Rito Romano – é um dos atos mais importantes na Igreja pós-conciliar para reforçar o valor vinculativo do ensinamento do Concílio Vaticano II.
Mas é uma batalha difícil que pelo menos outra geração de católicos terá que fazer.
Basta olhar para os currículos dos seminários e os programas de formação em muitas instituições católicas para ver que a linguagem do Papa Francisco e as referências ao Vaticano II são a exceção, não a norma.
O problema aqui não é realmente a ausência do termo “Vaticano II”. É a ausência dessa profundidade teológica em favor de uma mistura de apologética brilhosa, devocionalismo açucarado e confessionalismo motivacional.
Em outros casos, mesmo em escolas de teologia católicas supostamente liberais, o Vaticano II não faz mais parte do currículo. Ele foi colocado de lado em favor de tendências mais na moda.
Pelo menos nos Estados Unidos, agora é raro encontrar um estudante graduado em teologia católica que tenha uma compreensão básica do Concílio Vaticano II, sua história e teologia.
Paradoxalmente, é menos raro encontrar algum conhecimento do Concílio entre os universitários católicos.
Pelo que vi, eles ainda estão aprendendo algo sobre o Vaticano II nas escolas secundárias católicas, mas isso se perde entre aqueles que continuam a estudar teologia.
Quase nunca ouvem falar do último Concílio da Igreja nas suas paróquias.
Parafraseando T.S. Eliot, é assim que uma tradição teológica termina – não com um estrondo, mas com um gemido.
É um fato que os textos magisteriais do Concílio e os desenvolvimentos teológicos foram amplamente escanteados em muitas partes da Igreja de hoje.
Alguns lamentam isso, mas outros se alegram, porque há um movimento organizado por trás desse escanteamento do Vaticano II. Não é apenas esquecimento natural ou induzido pelo tempo.
João Paulo II tinha uma relação complexa com o Concílio Vaticano II.
Seu pontificado fez da produção teológica mais dependente do magistério papal que antes, de uma forma que minou a legitimidade da interpretação teológica do Vaticano II. Mas João Paulo II nunca aquiesceu os ataques diretos à legitimidade do Concílio.
Não obstante, houve um discurso de Bento XVI, em 2005, sobre a “hermenêutica da continuidade e da reforma” contra a “descontinuidade e a ruptura”.
A intenção do hoje papa emérito era de se direcionar a todos os dissidentes dos textos do Vaticano II e não apenas os lefebvristas (FSSPX). Mas o discurso acabou reforçando as tendências anti-conciliares dos neotradicionalistas.
Esses apologistas da restauração da Igreja pré-Vaticano II levam as reflexões de Bento XVI para lugares tão assustadores que, penso eu, Joseph Ratzinger, um dos mais importantes teólogos periti no Vaticano II, não poderia imaginar.
Eles decidiram que o Concílio não apenas permitiu a crise sociológica da Igreja, mas que isso atualmente causou o colapso do catolicismo, como se a crise sociológica não tivesse iniciado décadas atrás.
Então, de acordo com eles, o Vaticano II necessita ser rescindido de alguma forma. Mas isso é impossível de acordo como as normas que governam a forma da tradição teológica católica operam.
A narrativa dos neotradicionalistas algumas vezes tenta manter a aparência de seriedade acadêmica, mas frequentemente é mesclada com teorias conspiratórias.
Essa também ignora a história, embora inverta mais efetivamente a ênfase sobre o social e o político contra os progressistas.
Algumas dessas teorias são citadas até por bispos em apoio, por exemplo, à volta das celebrações das missas em latim pré-Vaticano II.
O pontificado do Papa Francisco está em apuros, no nível teológico, em grande parte e principalmente por causa de sua recuperação do Concílio.
Mas esta batalha pelo significado do Vaticano II (título de um livro que publiquei há quase dez anos) continuará bem depois do fim deste pontificado, e não é para os medrosos.
Os círculos militantes conseguiram inverter o sentido do Concílio para um público eclesial e eclesiástico que não segue, não confia nem se preocupa com a comunicação institucional da Igreja.
O Vaticano II, que já foi sinônimo de catolicidade, agora se tornou para muitos católicos o sinônimo de heresia. Eu vi isso nos últimos 15 anos, especialmente nos Estados Unidos.
Intelectuais e apologistas neotradicionalistas conseguiram convencer não apenas os militantes católicos leigos, mas também bispos e cardeais.
Doadores conservadores ricos – aqueles que agora comandam o show em muitas instituições católicas de ensino superior e cultura – são uma parte essencial deste quadro.
É claro que os representantes de um certo “sentimentalismo do Vaticano II” perderam o controle da narrativa. Mas esse não é o maior problema.
Já passou o tempo para uma defesa padrão do Vaticano II, que às vezes se torna relutante, em nome do Concílio, em envolver as muitas mudanças que ocorreram na Igreja desde 1965.
É por isso que agora, mais de cinco décadas após a conclusão do Concílio, o Papa Francisco insiste que “é necessário tornar mais explícitos os conceitos-chave do Concílio Vaticano II, os fundamentos de seus argumentos, seu horizonte teológico e pastoral, os argumentos e o método usado”.
O discurso eclesial e a forma de ensinar o Vaticano II precisam ser atualizados. Mas as mudanças que ocorreram no catolicismo nos últimos anos apontam, não para um upgrade, mas para um downgrade.
Isso faz parte da crise intelectual do catolicismo.
Os que estão à direita do espectro ideológico culpam o Vaticano II pelas mudanças sociais e culturais que marginalizaram a religião, quando o Concílio era na verdade a melhor tentativa possível da tradição magisterial até agora para engajar a modernidade secular.
Enquanto isso, os da esquerda se enfurecem contra qualquer coisa que pareça institucional. Essa raiva levou não à libertação, mas à diáspora. E só faz o jogo daqueles que trabalham por uma Igreja mais excludente e sectária.
À medida que nos aproximamos do 60º aniversário do início do Concílio Vaticano II, no próximo ano, é urgente abordar algumas lacunas dos documentos conciliares em várias questões, em primeiro lugar, o papel das mulheres na Igreja.
Mas isso certamente não pode ser feito com um retorno ao período pré-Vaticano II.
Se o movimento neotradicionalista anti-Vaticano II ganhou impulso na última geração, também foi por causa da relutância dos líderes católicos do Vaticano II, tanto entre a hierarquia quanto entre os intelectuais, em levar o desafio a sério.
Os ataques contra o Concílio são problemáticos por razões que deveriam ser óbvias.
Que mensagem a Igreja enviaria rejeitando a declaração conciliar Nostra Aetate, em um momento em que o antissemitismo está novamente mostrando sua cara?
E o que dizer de uma Igreja que esquece a Dignitatis Humanae em uma época em que os desafios à liberdade religiosa estão aumentando?
Além disso, como pode a Igreja negligenciar a Dei Verbum num momento em que a própria ideia do conhecimento como forma de habitar uma tradição está em crise?
Estes são apenas alguns exemplos.
Em jogo está a viabilidade da tradição intelectual católica – antes mesmo da magisterial.