06 Julho 2013
"O diálogo sobre o qual fala a Dei Verbum, de onde emergem as verdades a respeito de Deus e da salvação do mundo, é um diálogo que permanece envolto em mistério. Aqui podemos ver sinais da presença da tradição mística que tem sempre afirmado o mistério de Deus e questionado toda a afirmação que pretende ter palavras definitivas sobre Deus”, frisa a teóloga.
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Confira a entrevista.
A reflexão sobre o Vaticano II como evento dialógico remete à Dei Verbum, constituição dogmática sobre a Revelação Divina, e “na renovação do conceito de Revelação que se operou no interior da teologia fundamental ao longo do século XX”, menciona Ceci Baptista Mariani (foto abaixo) à IHU On-Line em entrevista concedida por e-mail. Estudiosa da mística, a pesquisadora assinala que “a longa tradição no interior do cristianismo, com sua ousada crítica de todas as mediações, teve lugar nessa renovação do conceito de Revelação que tende ao diálogo. O teólogo K. Rahner, que significativa influência teológica teve no Concílio, é considerado grande místico”. E acrescenta: “A Revelação Divina na Dei Verbum é compreendida como autocomunicação de Deus que ‘levado por seu grande amor, fala aos homens como a amigos (cf. Êx 33,11; Jo 15, 14-15), e com eles se entretém (cf. Bar 3,38) para convidar à comunhão consigo e nela os receber’ (DV 2)”.
Na avaliação de Ceci, “na Dei Verbum, vê-se uma Igreja mais consciente de seus limites diante da verdade de Deus que a ultrapassa. O documento elege como ponto de partida o Mistério de Deus para a reflexão sobre a natureza da revelação e convida a contemplar a realidade de Deus, em seu modo próprio de ser, absolutamente livre de se manifestar”. Para ela, essa compreensão possibilitará desdobramentos importantes, como uma maior “abertura ao diálogo ecumênico e posteriormente ao diálogo inter-religioso, podemos dizer, são bons frutos desse elemento místico que pode ser detectado na elaboração do conceito de revelação expressa no documento”.
Ceci Baptista Mariani é graduada em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora de Medianeira, graduada e mestre Teologia Dogmática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora de Assunção, e doutorado em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é professora na Pontifícia Universidade Católica de Campinas – Puc-Campinas e no Instituto São Paulo de Estudos Superiores.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que análise estrutural pode ser feita do texto da constituição dogmática Dei Verbum?
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Ceci Baptista Mariani – O documento intitulado Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina – Dei Verbum (DV) é aberto por um proêmio seguido de seis capítulos que se articulam segundo quatro grandes preocupações.
Em primeiro lugar, buscam-se esclarecer a natureza e o objeto da revelação. Aqui se observa a grande reviravolta na maneira de compreender a revelação divina, de um conjunto de verdades, um “depósito” confiado à guarda da Igreja Católica, instituição que detém a autoridade suprema de defendê-la, para um diálogo entre amigos.
Em seguida o documento trata da transmissão da divina revelação sob a responsabilidade dos apóstolos e de seus sucessores, mas que progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo.
É interessante notar aqui que, embora o documento enfatize a autoridade hierárquica da Igreja na transmissão da revelação, ele reconhece que a compreensão da verdade de Deus em sua relação com o mundo cresce pela contemplação e estudo da palavra pelos que creem, daqueles que a meditam em seu coração. A verdade, podemos interpretar, é historicamente sempre melhor compreendida com a assistência do Espírito Santo. Deus, que fala aos homens como amigos, falou outrora e continua falando, “mantém um permanente diálogo com a esposa de seu dileto Filho, e o Espírito Santo, pelo qual a voz viva do Evangelho ressoa na Igreja e através dela no mundo, leva os crentes à verdade toda e faz habitar neles abundantemente a palavra de Cristo” (DV 8).
Uma terceira preocupação é com interpretação da Escritura. Cabe ressaltar aqui que o terceiro capítulo da DV responde a uma tensão entre o avanço dos estudos bíblicos e a doutrina proposta por Leão XIII na encíclica Providentissimus Deus, de 1893, que associa inspiração à inerrância. Sob a inspiração do Espírito, afirma a DV, os livros da Escritura ensinam com certeza e sem erro a verdade. Entretanto, o documento pondera: “já que Deus na Sagrada Escritura falou através de homens e de modo humano, deve o intérprete da Sagrada Escritura, para bem entender o que Deus quis transmitir, investigar atentamente o que os hagiógrafos de fato quiseram dar a entender e aprouve a Deus manifestar por suas palavras” (DV 12). A inspiração aqui não é entendida como uma intervenção de Deus que “dita verdades” usando escritores como instrumentos, mas como atuação de Deus entre nós que elege autores para comunicar ao modo humano o projeto de Deus para o mundo. Na Sagrada Escritura se manifesta a admirável “condescendência” de Deus, a disposição divina de se achegar a nós acomodando-se à nossa linguagem, cuidadoso que é de nossa natureza, afirma a Dei Verbum no n. 13 citando S. João Crisóstomo.
Finalmente, uma quarta preocupação é com o lugar que a Palavra ocupa na vida da Igreja. A Sagrada Escritura é fonte perene de vida espiritual e deve ser acessível a todos. A Dei Verbum não dá privilégio nessa última parte a uma preocupação com a ortodoxia, mas sim ao acesso dos fiéis à Bíblia que deve ser amplamente aberto.
IHU On-Line – Quais suas principais chaves de interpretação? Como o texto se organiza em termos linguísticos e de argumentação?
Ceci Baptista Mariani – Dei Verbum é um documento dogmático, isto é, situa-se no âmbito da teologia sistemática, mais especificamente no da teologia fundamental, área que tem a tarefa de articular fé e razão para que a mensagem cristã possa ser acolhida por todos. Tradicionalmente, um documento dogmático é apresentado numa linguagem mais formal. A Dei Verbum, todavia, apresenta uma linguagem com predominância do estilo hermenêutico, dada a presença de mestres biblistas que utilizam uma linguagem técnica em suas especializações, mas elaboram uma teologia bíblica em termos mais concretos, menos escolásticos. O documento vai procurar interpretar o sentido da Revelação Divina entendida como diálogo entre Deus e os homens concretizado na história. Ajuda-nos a fazer uma boa leitura do documento ter presente o horizonte trinitário e histórico-salvífico da Revelação, isto é, a compreensão que Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo, e que se revela na história humana conduzindo o mundo à sua realização plena, o Reino de Deus, nossa salvação.
IHU On-Line – Em linhas gerais, qual o foco da abordagem que a senhora trará ao falar sobre “Linguagem mística e Revelação: uma reflexão a partir do Documento Conciliar sobre a Revelação – Dei Verbum”?
Ceci Baptista Mariani – Quando aceitei o convite para participar de um seminário que pretendia refletir sobre o Vaticano II como evento dialógico, pensei logo na Dei Verbum e na renovação do conceito de Revelação que se operou no interior da teologia fundamental ao longo do século XX. Tenho estudado a mística e refletido sobre a importância dela para os estudos da religião hoje. Vejo que a longa tradição no interior do cristianismo, com sua ousada crítica de todas as mediações, teve lugar nessa renovação do conceito de Revelação, que tende ao diálogo. O teólogo K. Rahner, que significativa influência teológica teve no Concílio, é considerado um grande místico. A Revelação Divina na Dei Verbum é compreendida como autocomunicação de Deus que “levado por seu grande amor, fala aos homens como a amigos (cf. Êx 33,11; Jo 15, 14-15), e com eles se entretém (cf. Bar 3,38) para convidar à comunhão consigo e nela os receber” (DV 2). Revelação como diálogo entre amigos concretizado na história, “através de acontecimento e palavras intimamente conexos entre si, de forma que as obras realizadas corroboram os ensinamentos e as realidades significadas pelas palavras” (DV 2). O diálogo sobre o qual fala a Dei Verbum, de onde emergem as verdades a respeito de Deus e da salvação do mundo, no entanto, é um diálogo que permanece envolto em mistério. Aqui podemos ver sinais da presença da tradição mística que têm sempre afirmado o mistério de Deus e questionado toda a afirmação que pretende ter palavras definitivas sobre Deus.
IHU On-Line – Que reflexão pode ser feita a partir da Dei Verbum tendo em vista os aspectos da linguagem mística e da revelação?
Ceci Baptista Mariani – A linguagem mística é crítica, afirma o limite da condição humana e a impossibilidade que ela tem de abarcar o mistério inconcebível e “indisponível” que é Deus. Limite conhecido, no entanto, paradoxalmente mediante a presença de Deus. Os textos místicos são narrativas de processos, caminhos, itinerários, onde se fala do trabalho humano de busca de Deus absolutamente transcendente, e do encontro surpreendente com Deus que se revela muito maior do que seu pensamento é capaz de pensar e do que sua vontade é capaz de querer. Uma busca que atravessa as mediações e que, vislumbrando o encontro direto, face a face com Deus, descobre pela via negativa que ele é “Treva luminosa” (cf. Dionísio Areopagita), Mistério que a tudo ilumina e confere sentido definitivo a todas as coisas. O fruto do processo místico, testemunham muitos textos, é a liberdade. Apoiado numa experiência fundamental, o místico vê com maior clareza a relatividade de todas as mediações, percebe que são importantes pontos de apoio, mas não a garantia absoluta para que se realize a salvação. A mística indica que o conhecimento de Deus requer penetração sempre mais profunda e o ultrapassamento das afirmações e das imagens que vão se institucionalizando. Reconhecimento do limite humano, valorização da experiência fundamental e liberdade diante das mediações são elementos importantes que podemos distinguir no interior da tradição mística.
Não se pode negar que existe no documento Dei Verbum uma mudança de postura da Igreja em relação à revelação divina, uma conversão que converge com essa dinâmica. No proêmio da Dei Filius, documento sobre a fé católica, fruto do Concílio Vaticano I (1869-1870), por exemplo, se afirma num tom defensivo, que a Igreja é a depositária da doutrina de Cristo com a obrigação de professá-la e declará-la proscrevendo e condenando os erros contrários. Na Dei Verbum, vê-se uma Igreja mais consciente de seus limites diante da verdade de Deus que a ultrapassa. O documento elege como ponto de partida o Mistério de Deus para a reflexão sobre a natureza da revelação e convida a contemplar a realidade de Deus, em seu modo próprio de ser, absolutamente livre de se manifestar. Essa compreensão possibilitará desdobramentos importantes. Uma maior abertura ao diálogo ecumênico e posteriormente ao diálogo inter-religioso, podemos dizer, são bons frutos desse elemento místico que pode ser detectado na elaboração do conceito de revelação expressa no documento.
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O diálogo entre Deus e a humanidade concretizado na história. Entrevista especial com Ceci Baptista Mariani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU