23 Março 2022
"Na onda da tempestade de adrenalina que assola o 'metaverso': o verdadeiro lugar geométrico - o invólucro virtual que envolve o universo de nossas vidas concretas e o sobredetermina - em que se está jogando essa guerra que tragicamente está nos atraindo para o seu vórtice se não soubermos, mentalmente antes que fisicamente, resistir a ele", escreve o cientista político italiano Marco Revelli, professor da Universidade do Piemonte Oriental “Amedeo Avogadro”, em artigo publicado em Il Manifesto, 22-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Enquanto a guerra na Ucrânia parece entrar em uma fase de relativo impasse, embora com seu cotidiano feroz sacrifício de sangue, torna-se cada vez mais aguda a sensação que por algum erro possa acontecer o irreparável. Uma extensão do conflito a outros países, talvez da Aliança Atlântica.
Um confronto em maior escala, por extensão e destruição.
Por outro lado, se sabe, quando em um único lugar são empilhadas muitas armas... as armas podem disparar sozinhas.
Mas, acima de tudo, se sabe que quando na narrativa predominante é construído um cenário, as chances de que esse cenário se materialize efetivamente crescem exponencialmente.
É por isso que o que acontece no "mundo da informação" é importante. Carregado de responsabilidade.
E o mundo da informação hoje, pelo menos aquele italiano, é cada vez mais dramaticamente refém da guerra. A guerra entrou na mente dos operadores de mídia (de muitos deles, felizmente não de todos). Colonizou sua linguagem. Monopolizou suas programações. Ocupou seu próprio imaginário. E simplificou à velocidade da luz a complexidade das situações reais, reconduzindo-a ao único vetor dominante: a "lógica das armas".
O que consumimos diariamente em doses massivas são informações carregadas de adrenalina, muitas vezes gritadas, de forma sempre assertiva, em que abundam as reportagens das áreas da guerra, as imagens repetidas em série dos montes de escombros, a que frequentemente se sobrepõe a imagem em primeiro plano do enviado em trajes militares, para acentuar um senso de urgência e de ação em curso que parece não deixar espaço para pausas de reflexão. Exatamente como nos talk shows, onde o coro unânime quase nunca parece considerar outras alternativas que não sejam de viés militar. Outros meios de superação da tragédia em curso que não aqueles relacionados ao armamento.
É como se todo o repertório da diplomacia, que em circunstâncias igualmente dramáticas muitas vezes inventou soluções civis, de repente tivesse ido “fora do curso”. Enquanto aqueles que tentam insinuar para a agora ampla e sofisticada elaboração pelas teorias da não-violência, não tanto do lado dos fins quanto do lado dos meios, muitas vezes tanto quanto, se não mais eficazes, daqueles grosseiramente usuais da técnica militar, são olhados com sorrisos de superioridade e complacência.
Estou pensando em Gene Sharp e seu precioso manual The Methods of nonviolent action, sobre o “uso estratégico da ação não violenta como uma alternativa pragmática à violência”. Estou pensando na elaboração filosófica de um pacifista certamente não rendido como Giuliano Pontara, e em suas amistosas interlocuções com Bobbio de O problema da guerra e os caminhos da paz. Estou pensando nas ideias de um grande liberal-socialista como Aldo Capitini, o inventor da marcha Perugia-Assis em plena guerra fria, quando o confronto nuclear parecia estar a um passo de distância.
Um patrimônio de ideias e técnicas sobre o qual se formaram gerações de pacifistas, nunca resignados a sofrer a prevaricação dos agressores e dos prepotentes, mas cientes da verdade elementar, repetida mais uma vez recentemente pelo fundador do Arsenale della pace de Turim, Ernesto Olivero, segundo quem “o recurso às armas nunca é a solução”. É em virtude desse avassalador banimento do pensamento racional e razoável em nome de uma entrega cega ao fascínio da guerra, se hoje o que parecia ainda ontem o impensável e o indizível, ou seja, a hipótese de um conflito nuclear, se tornou no noticiário cotidiano e no imaginário coletivo "opção possível" (evocada primeiro pelo agressor Putin, mas não rejeitada, aliás, por Biden): algo de que se fala quase en passant, inscrita no horizonte das alternativas disponíveis, com uma espécie de entediada indiferença.
E enquanto isso não causa nenhum espanto quando lemos que a União Europeia está planejando a produção e distribuição de pastilhas de iodo para combater (sic) o efeito das radiações.
Ou quando se somos informados pelo entretenimento matinal, que no Veneto as pessoas ligam aos prefeitos para reservar vaga no gigantesco bunker antinuclear da OTAN. Ou ainda, quando é celebrada nos editoriais dos jornais mainstream a infeliz escolha alemã de se rearmar com uma verba monstruosa de 100 bilhões de euros, que zera num único golpe o valor civilizador da lição aprendida pelos alemães no final da Segunda Guerra Mundial, levando-nos de volta à idade da pedra do nosso continente.
Enquanto nós também, em nosso âmbito restrito, escorregamos, quase sem perceber e sem solução de continuidade, em uma "economia de guerra" - a expressão é Draghi - que revira em 180 graus o senso comum anterior, com aquela lúgubre moção parlamentar aprovada quase por unanimidade sem um pingo de debate que compromete realinhar os gastos militares em 2% do PIB (aproximadamente 36 bilhões).
O mundo está mudando ao nosso redor, está se revirando em seu eixo, sem um fragmento de pensamento.
Na onda da tempestade de adrenalina que assola o "metaverso": o verdadeiro lugar geométrico - o invólucro virtual que envolve o universo de nossas vidas concretas e o sobredetermina - em que se está jogando essa guerra que tragicamente está nos atraindo para o seu vórtice se não soubermos, mentalmente antes que fisicamente, resistir a ele.
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Quando a hipótese do conflito nuclear se torna o discurso corrente. Artigo de Marco Revelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU