23 Março 2022
"É certo que o cerne temático é a concepção cristã em relação à escravidão que, no epistolário que lhe é atribuído, Paulo aborda de forma nem sempre homogênea. Por um lado, de fato, reitera que o status social da escravidão não colide com a possibilidade de ser cristão, ao contrário do judaísmo que com suas necessárias observâncias rituais (por exemplo, o descanso sabático) declarava impossível a coexistência dessa dupla situação".
Novo Testamento. Um comentário aprofundado sobre o mais curto dos escritos paulinos do Novo Testamento: um texto de apenas 328 palavras gregas divididas em 25 versículos.
O comentário é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 27-02-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Organização de Antonio Pitta
Lettera a Filemone
Paoline, pp. 216, € 34
São apenas 328 palavras gregas, quase nada em comparação com a obra-prima do apóstolo Paulo, a Epístola aos Romanos, que tem 7.094. Estamos falando de uma espécie de bilhete dirigido a um certo Filemon ("amável"), definido como "nosso amigo e colaborador", o mais curto dos escritos paulinos do Novo Testamento. Sobre esse folheto, agora dividido em 25 versos, um de nossos maiores estudiosos do Apóstolo, Antonio Pitta, teceu um comentário de mais de 200 páginas das quais quase vinte são bibliografia, demonstrando quanto interesse suscitou essa carta de viés autobiográfico endereçada – além do principal destinatário - também para duas outras pessoas, um "nosso companheiro de luta" (em sentido metafórico, na luta pelo Evangelho), Arquipo, e a uma mulher, Áfìa. Sobre ela, vários graus de parentesco com Filemon foram sugeridos (esposa, filha, irmã?).
O coração do texto diz respeito a um escravo, um certo Onésimo, em grego "útil", sobre cujo nome Paulo também tece um pequeno jogo de palavras: "Antes ele era inútil para você, mas agora ele é útil, tanto para você como para mim" (v. 11). O Apóstolo acrescenta uma curiosa nota contextual: "Eu, o velho Paulo, já idoso, agora também prisioneiro de Cristo Jesus... Peço-lhe em favor de Onésimo, o filho que eu gerei na prisão" (vv. 9-10). Dado, porém, que ele podia receber visitantes, seria um simples caso de custódia militar, uma espécie de prisão domiciliar como aquela de sua estada em Roma, até a sentença final da cassação imperial a que Paulo havia apelado: então "Paulo ficou dois anos inteiros na sua própria habitação que alugara, e recebia todos quantos vinham vê-lo” (Atos dos apóstolos 28,30). Talvez seja dentro dessas coordenadas históricas romanas que deva ser colocado texto.
Supõe que a relação de dependência entre o senhor Filemon e o escravo Onésimo tivesse sido interrompida por uma fuga. Várias interpretações foram sugeridas sobre este dado, especialmente aquela que considerava que se tratasse de um escravo fugitivo, enviado de volta a Filemon por meio da calorosa mediação do Apóstolo para uma acolhida benevolente. Pitta sugere, em vez disso, outra leitura do caso: "Paulo escreve a Filemon para implorar-lhe que, por um lado, receba Onésimo de volta como irmão e não mais como escravo e, por outro, o coloque à sua disposição como "colaborador" na evangelização". Uma readmissão, portanto, não no orgânico familiar, mas para uma função missionária ao serviço do Apóstolo.
É certo que o cerne temático é a concepção cristã em relação à escravidão que, no epistolário que lhe é atribuído, Paulo aborda de forma nem sempre homogênea. Por um lado, de fato, reitera que o status social da escravidão não colide com a possibilidade de ser cristão, ao contrário do judaísmo que com suas necessárias observâncias rituais (por exemplo, o descanso sabático) declarava impossível a coexistência dessa dupla situação. Famosa é a afirmação da Epístola aos Gálatas: “Não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea, porque todos vós sois um em Cristo” (3,28).
Por outro lado, porém, sem se contradizer pelo motivo já mencionado, o Apóstolo não hesita em várias passagens em recomendar uma correta relação de dependência do escravo e o faz várias vezes com apelos ético-sociais ligados à estrutura sociocultural da época. Aqui está um exemplo: "Vós, servos, obedecei em tudo a vossos senhores segundo a carne, não servindo só na aparência, como para agradar aos homens, mas em simplicidade de coração, temendo a Deus." Mas logo acrescenta: "Vós, senhores, fazei o que for de justiça e equidade a vossos servos, sabendo que também tendes um Senhor nos céus." (Colossenses 3,22; 4,1). A motivação da radical fraternidade cristã entre senhor e escravo é inovadora, como pode ser visto na "súplica" por Onésimo, "gerado" para a fé cristã por Paulo justamente durante seu aprisionamento.
De fato, o Apóstolo pede a Filemon que o acolha “não mais como escravo, mas muito mais do que escravo: você o terá como irmão querido; ele é querido para mim, e o será muito mais para você, seja como homem, seja como cristão. Assim, se você me considera como irmão na fé, receba Onésimo como se fosse eu mesmo.” (vv. 16-17). Interessante é a identificação, por Pitta, da "estratégia retórica" com a qual Paulo adota dois argumentos nessas linhas para convencer seu interlocutor. Os paralelos que o estudioso tece com o estoicismo também são significativos, a começar pela deslumbrante passagem de uma das cartas de Sêneca a Lucílio: “São escravos. Sim, mas são seres humanos. São escravos. Sim, mas companheiros sob um mesmo teto. São escravos. Sim, mas também amigos humildes” (47, 1). O cristianismo a esta comunhão radical na humanidade acrescenta uma partilha mais elevada, expressa pelo sintagma "irmão querido".
O bilhete é estudado pelo exegeta, docente da Pontifícia Universidade Lateranense, em todos os seus segredos, nas nuances semânticas mais recônditas, no envolvimento pessoal do seu autor, em sua contextualidade histórica e cultural (até no detalhe do "correio epistolar", que neste caso é o próprio Onésimo, secretário, portador e lupus in fabula). Mas é claro que uma seção final é dedicada à mensagem teológica da carta com seus componentes cristológicos, eclesiológicos e morais, levando também em conta a forte explicação de Martinho Lutero: "Esta carta mostra um exemplo admiravelmente caro de amor cristão ... Todos nós somos Onésimos de Cristo, se o crermos”.
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O bilhete de São Paulo a Filemon - Instituto Humanitas Unisinos - IHU