09 Dezembro 2017
Há algo de profundamente paradoxal, mas não menos congênito, ao judaísmo no fato de a tradição de Israel chamar de “Torá oral” um imenso corpus de textos escritos. Esse sugestivo oxímoro traz consigo a ideia de uma espécie de revelação permanente que começa com o chamado de Abraão – que, em hebraico, significa “Pai grande” –, continua com o ditado da Lei no Sinai, encaminha-se na história do povo de Israel com os Profetas e os Hagiógrafos, e prossegue em uma progressiva descida, mas também diluição da inspiração divina que, aliás, continua animando os ditos dos rabinos e a sua inesgotável discussão em torno do texto sagrado, isto é, a Torá escrita – a Bíblia hebraica.
O comentário é da escritora italiana Elena Löwenthal, estudiosa do judaísmo, em artigo publicado no jornal La Stampa, 07-12-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A Torah she beal peh, “Torá que está na boca”, é fundamentalmente o Talmud, palavra derivada da raiz hebraica que – em nome da extraordinária didática do intercâmbio que faz um grande mestre dizer: “Aprendi sobretudo com os meus discípulos” – significa, ao mesmo tempo, “aprender” e “ensinar”: um imenso verbal de discussões, comentários, divagações e interpretações da Bíblia, passo a passo.
Não é um fim em si mesmo, que fique claro, mas sim uma parte de um contínuo diálogo entre céu e terra em busca daqueles infinitos significados que a Bíblia contém, mas que não são evidentes.
Tendo chegado à sua redação final em torno do século VI, o Talmud é composto por seis ordens e 63 tratados, em um total de muitos milhares de páginas. Esse texto extraordinário (do qual, na verdade, existem duas redações, uma chamada “de Jerusalém” e uma, a canônica, que, em vez disso, vem “da Babilônia”, porque este era, na época, o fulcro da cultura judaica) é muito mais do que um comentário erudito à Lei divina, isto é, à Bíblia: é uma verdadeira enciclopédia da vida, por mais desordenada e dificílima de explorar, em que o material é delineado – sempre desordenadamente – de acordo com duas categorias: a halakhah, isto é, o conjunto de regras, e a haggadah, isto é, a narração.
Nestes dias, está sendo publicado o segundo volume do monumental projeto que prevê a primeira tradução italiana na íntegra de todos os 63 tratados talmúdicos, iniciado há muitos anos já e apoiado, dentre outros, pelo Ministério da Educação italiano e pela presidência do Conselho (https://www.talmud.it).
Trata-se do tratado Berakhot, que hoje vê a luz na língua italiana com o prefácio do rabino Gianfranco Di Segni (em dois tomos, pela editora Giuntina) e que, talvez, seja o mais sugestivo, o mais rico em evocações de todo o Talmud.
Berakhot se traduz convencionalmente como “Bênçãos” e é um dos tratados contidos na ordem Zeraim, isto é, “sementes” (e, portanto, tudo o que está ligado à vida produtiva do homem e à sua relação com a terra, com a matéria). Mas, no universo judaico, a bênção é algo de difícil, senão impossível, tradução, porque, escreve Di Segni, “não transmite bem a riqueza semântica e conceitual que ressoa no termo hebraico. [...] É a maneira mais tipicamente judaica com a qual se expressa a fé em Deus Rei e Criador do mundo”.
O homem bendiz Deus e Deus bendiz o homem em uma dinâmica em que ativo e passivo se alternam, o abstrato faz-se concreto e vice-versa, como quando o Senhor mesmo impõe ao homem “Bendiz-me!”.
Os três primeiros capítulos do tratado abordam a leitura do Shema (“Escuta, Israel”, a profissão de fé do judaísmo) e das relativas bênçãos; seguem-se partes dedicadas à oração “genérica” e àquela que deve ser recitada “de pé” (Amidah); depois, trata-se das bênçãos para a refeição, os alimentos, os fenômenos naturais, os milagres, a salvação, as roupas novas... porque tudo é digno de bênção.
Mas, como escreve o maior talmudista vivo, rabino Adin Steinsaltz, o tema central dessas páginas é a própria fé, através de um diálogo a muitas vozes, que envolve o espaço e o tempo do mundo.
Talvez mais o tempo do que o espaço, porque o judaísmo, por milênios, habitou no primeiro muito mais do que na geografia real. E, então, um dos temas centrais do tratado Berakhot é entender quando rezar, quando se dedicar ao estudo: “Como o rei Davi fazia para entender quando era meia-noite? Ele tinha um sinal para saber quando era meia-noite. Havia uma harpa pendurada sobre o leito de Davi, e, quando chegava a meia-noite, vinha um vento do Norte e soprava através da harpa, e a harpa tocava sozinha. Imediatamente, Davi se levantava e se ocupava da Torá até surgir a aurora”.
É precisamente assim que o Talmud se desenrola: interrogando o texto sagrado lá onde se cala, procurando aquilo que, aparentemente, está faltando e que, ao contrário, está lá, nos inesgotáveis espaços em branco entre as linhas, lá onde tudo é dito, fora do tempo e espaço.
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Talmud, a revelação permanente. Artigo de Elena Löwenthal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU