04 Janeiro 2022
"É necessário, portanto, colocar um frêmito nas consciências, um convite para ultrapassar a porta blindada dos nossos apartamentos, sinal do isolamento protetor e dos medos eventualmente até legítimos, para ir além do próprio pequeno mundo em direção às 'periferias existenciais' onde reside uma multidão de solidões", escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Avvenire, 02-01-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Ano: Período de 365 decepções”. É o que diz o verbete 'Ano' do sarcástico Dicionário do Diabo, obra do escritor, jornalista e andarilho estadunidense Ambrose Bierce, cuja data exata de morte é desconhecida, talvez em 1914, nos campos de batalha da guerra civil mexicana. A frase é obviamente provocativa e talvez tenha o mérito de abafar a retórica dos votos tradicionais, das ilusões da propaganda publicitária e política e até mesmo a ênfase de uma religiosidade meramente consoladora. Em vez disso, é preciso embrenhar-se no terreno pedregoso dos dias e das obras com um olhar menos sonhador e com projetos mais realistas. Dito isto, no entanto, melhor não seguir uma deriva pessimista, alimentada também pela marcha incessante da pandemia e das crises sociais.
O Dicionário do Diabo
Na verdade, quando a tempestade passar, não saberemos como conseguimos atravessá-la e nem mesmo se ela realmente acabou. Haverá, no entanto, uma certeza: ao sairmos dessa tempestade, não seremos mais os mesmos de quando entramos. Melhor, então, não extinguir do coração todo desejo e expectativa, dispersar todo sonho: se perderia a vontade de viver e seria arrancada da alma a semente da felicidade. Escavando mais fundo na sociedade, em vez disso, alarga-se a área da indiferença resignada, sobre a qual o Papa Francisco cunhou o lema fulgurante da "globalização da indiferença".
Paradoxalmente, esta é mais extensa que aquela sangrenta da violência que nunca se farta de vítimas, de tragédias dos migrantes no nosso mar, "cemitério sem lápides", ou das brutalidades contra as mulheres e as crianças.
Dominando o horizonte cinzento dessa superficialidade amorfa há algo mais radical, e é a queda da expectativa no futuro: no máximo nos entregamos à técnica, às mirabolantes hipóteses da inteligência artificial, às datas ilusórias, cada vez mais postergadas, dos vários Kyoto, Paris, Glasgow em relação ao 'futuro' do nosso planeta. Alguns meses atrás me deparei com o romance La clé USB (e o título é emblemático) de Jean-Philippe Toussaint, que foi publicado em 2019 em Paris. O protagonista observava que “mesmo com a excelência dos instrumentos de que dispomos, o futuro não pode ser previsto. Como podemos prever algo que ainda não existe?" E ele realisticamente reconhecia que o futuro é "simplesmente um céu imenso atravessado por um vento mutável, ora calmo, ora tumultuoso, resistente às previsões".
La clé USB
Apesar disso, devemos repetir para nós mesmos que é possível fazer crescer e brotar sob aquele céu uma semente, classificada com um termo pouco utilizado, a esperança. Foi o próprio Cristo quem recorreu àquela imagem vegetal para descrever o reino de Deus por ele inaugurado: "A semente brota e cresce... A terra por si mesma frutifica primeiro a erva, depois a espiga, por último o grão cheio na espiga" (Marcos 4,27-28). Como ensinou um filósofo não crente, Ernst Bloch, com seu Princípio esperança, as religiões, a cultura, o empenho social e humanitário deveriam ser como um espinho no flanco da humanidade entorpecidamente indiferente ou debruçada apenas sobre um presente modesto ou sobre uma realpolitik egoísta.
Uma das mais felizes representações da força da esperança, a segunda das virtudes teologais, foi delineada por outro conhecido escritor francês, Charles Péguy, que dedicou um poema inteiro a essa virtude. Ele a definia como a "irmã mais nova" das outras duas mais velhas, a Fé e a Caridade.
Ora, muitas vezes acontece às crianças - quando seus pais demoram na rua conversando com conhecidos ou param diante das vitrines - que elas os puxem para prosseguir. A Fé precisa não se tornar estéril no devocional ou se fechar no oásis do sacro, mas deve progredir no conhecimento ativo e na espiritualidade autêntica, enquanto o Amor deve ir além do sentimento e buscar nos rostos das pessoas famintas, sedentas, estrangeiras, doentes, prisioneiras e nuas o próprio perfil de Cristo (Mateus 25). É a esperança que infunde esse ímpeto.
É necessário, portanto, colocar um frêmito nas consciências, um convite para ultrapassar a porta blindada dos nossos apartamentos, sinal do isolamento protetor e dos medos eventualmente até legítimos, para ir além do próprio pequeno mundo em direção às "periferias existenciais" onde reside uma multidão de solidões. Um famoso teólogo, Jürgen Moltmann, escreveu no seu ensaio Teologia da Esperança (1964): “Quem espera em Cristo não pode se contentar com a realidade dada, mas começa a sofrer e a contradizê-la. A esperança leva o homem a recusar se contentar”, contestando a aquiescência ao mal e à injustiça.
O cristão, embora admirando Ulisses que sai em busca da pátria perdida no horizonte do passado, junta-se à tribo peregrina de Abraão que "partiu sem saber para onde ia", porque não tinha "aqui uma cidade permanente, mas buscava a futura” (Hebreus 11,8; 13,14), cujos alicerces, porém, já estão erguidos no terreno dos dias e das obras presentes, mesmo do ano que recém começou.
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Não podemos nos contentar. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU