08 Dezembro 2021
"Deus está sempre à espreita com um rosto radiante, mas também com um perfil desconcertante, imergindo em acontecimentos humanos escandalosos".
O comentário é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 05-12-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Para nós, Abraão é mais do que qualquer outra pessoa da história grega ou alemã.” Surpreendentemente, foi ninguém menos que Nietzsche quem fez essa declaração, em sua obra “Aurora” (1881), talvez fazendo memória da sua matriz bíblica luterana.
É certo que o progenitor ideal das três religiões monoteístas abre a cortina para uma história de fé que deixa para trás a dramática genealogia do Adão pecador para se tornar o pai dos fiéis, como o apóstolo Paulo reiterará ao amarrar a sua reflexão em torno de um célebre versículo do Gênesis: “Abraão acreditou no Senhor, e isso lhe foi creditado como justiça” (15,6).
A partir daquele dia em que uma voz transcendente o erradicou com o seu clã da esplêndida cidade mesopotâmica de Ur e o lançou em uma aventurosa jornada ao longo das trilhas do deserto para aportar na terra de Canaã, até à sua morte e sepultamento na gruta de Macpelah, a sua história é narrada nos capítulos 11-25 do Gênesis, em páginas que têm a tonalidade de uma saga.
BLENKINSOPP, Joseph.
Abramo
Ed. Queriniana, 316 páginas.
Quem a quiser seguir criticamente, procedendo na crista sutil que se ramifica entre história e teologia, entre eventos e símbolos, entre panoramas terrestres e vislumbres celestes, tem agora à disposição um guia fascinante preparado por um dos maiores biblistas estadunidenses, o já patriarcal Joseph Blenkinsopp, nascido em 1927 (assim como o Papa Ratzinger). Ele o preparou quase aos 90 anos (o original é de 2015)!
As cenas se desenrolam como em um filme, partindo justamente daquela viagem no deserto “sem saber para onde ia”, como sugerirá a Carta aos Hebreus (11,8), do Novo Testamento, para depois avançar no meio de uma multidão de personagens, da esposa, Sara, à escrava Hagar e ao sobrinho Ló, dos dois filhos do patriarca, Ismael e Isaac, até à nora, Rebeca, e a três convidados misteriosos. Tudo confiado a um lampejo de eventos com uma trama convincente e difícil de exemplificar, porque assim se despojariam das cores típicas da saga e dos paramentos suntuosos da teologia.
Sim, porque Deus está sempre à espreita com um rosto radiante, mas, como veremos, também com um perfil desconcertante, imergindo em acontecimentos humanos escandalosos, como o incesto pai-filhas do sobrinho Ló, parábola provocadora da etnogênese de dois adversários tradicionais de Israel, as tribos de Moab e Amon.
Um Deus que sela o seu vínculo com Abraão por meio da promessa de um filho (Isaac, em hebraico “sorridente”), com o ato sagrado da circuncisão, mas também com um imperativo imoral e até blasfemo: “Tome seu filho, o seu único filho Isaac, a quem você ama, e ofereça-o em holocausto” (Gênesis 22,2).
E aqui estamos no ápice da fé absoluta de Abraão, que se consuma no topo de um monte, Moriá. Mas, para esse momento trágico, deixemos a voz a um poeta, ao Pe. David M. Turoldo, que, em uma espécie de balada sagrada, assim acompanhava a cena do patriarca:
“Um carvalho queimado era o Velho. / Nuvens voavam sobre a sua fronte / como se estivessem em um pico alto e nu. / Mas encilhado o jumento / cortou a lenha com lúcida calma. / Depois a mão do menino / perdida na sua grande mão, / tomou a sombra dele / a ondular no planalto... / Ó velho, como era o rosto de Deus? / talvez um lenço de sangue? / ou uma rocha negra, cratera em chamas?... / Ó Senhor meu, amado e cruel!”.
Kierkegaard, nas páginas memoráveis de “Temor e tremor” (1843), Rembrandt na emocionante tela do Hermitage, até Proust no início da “Recherche”, Carissimi e Scarlatti nos seus oratórios musicais e milhares de outros artistas também escalaram esse pico para rever um ato enigmático. Um ato que obviamente teve um eco extraordinário na tradição judaica sob o nome de ‘aqedah, a “amarração” sacrificial de Isaac por parte de Abraão no altar de pedra do Moriá.
CATTANI, Luigi. La Aqedah.
Il sacrificio di Isacco.
Libreria Editrice Vaticana,
296 páginas.
Um apaixonado e qualificado judaísta como Luigi Cattani recolheu em uma espécie de díptico precisamente essa interpretação que, florescendo a partir do rabinismo antigo e medieval e transitando pela literatura centro-europeia da comunidade dos Chassidim (os “piedosos”), chegou também à contemporaneidade, parando no meio da tempestade teológica gerada pela Shoá. Na primeira seção, é posta em cena precisamente a análise desse imponente aparato textual ocorre que foi exercido de modo multiforme no palimpsesto original bíblico do capítulo 22 do Gênesis.
A esse aprofundamento acurado, que identifica todas as variações hermenêuticas ao longo dos séculos, sucede-se a segunda tábua do díptico, constituída por uma antologia dos vários textos judaicos, de modo a verificar a análise anterior na página. Cattani ajuda a se destrincar nessa ramificação de pensamentos marcados também pelo sangue, ao contrário do relato bíblico que vê a substituição de um carneiro sacrificial por Isaac.
Talvez – em meio a essas diferentes iluminações de um evento que gera sobretudo interrogações (não falta também aquela messiânica e escatológica) – erga-se uma resposta, ventilada por alguns textos judaicos e explicitada por Kierkegaard.
O evento do Moriá é o paradigma supremo e dilacerante da nudez do crer, capaz de ir além das razões até mesmo da teologia (a promessa e o dom do filho ao casal estéril Sara-Abraão), para aderir ao Deus amado em um ato de confiança puríssima, livre de qualquer suporte experimental e racional.
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Da emboscada de Deus vem a salvação. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU