30 Novembro 2021
"A Bíblia dos leigos. Dois volumes publicados pela Claudiana analisam as sugestivas abordagens às Sagradas Escrituras do autor napolitano e do ganhador do Prêmio Nobel", escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 28-11-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
A Bíblia dos leigos. Dois volumes publicados pela Claudiana analisam as sugestivas abordagens às Sagradas Escrituras do autor napolitano e do ganhador do Prêmio Nobel. Em seu catálogo, a editora valdense Claudiana, de Turim - que também incorporou a prestigiosa e acadêmica Paideia - ao lado de ensaios teológicos, comentários exegéticos, estudos históricos, todos solenemente repletos de notas de rodapé e longas listas de bibliografias, há algum tempo abriu um percurso à primeira vista mais leve, mas não por isso sem um rigor analítico. De fato, começou a atravessar os territórios da cultura contemporânea em busca de pequenos filões ou mesmo de verdadeiros depósitos ligados à Bíblia, em particular aos Evangelhos. Claro, é fácil cavar e desenterrar matrizes e achados bíblicos de Lutero, Dante, Leopardi, Michelangelo e até mesmo de Saint-Exupéry, Merini e Tolkien.
A colheita pareceria muito menor quando se remexe nos quadrinhos de Tex Willer, Mafalda ou dos Simpsons, ou quando se mergulha no barulho do rock'n roll ou de Star Wars e quando se procura monumentos pop do mundo contemporâneo como Kerouac ou Springsteen. Essa aventura exploratória também contaminou outros editores "confessionais". Por exemplo, a editora de Milão Ancora, conhecida por seus textos de espiritualidade, há tempo levou às livrarias o imponente tríptico que Renato Giovannoli dedicou à Bíblia de Bob Dylan, enquanto a EMI, que é a Editora Missionária Italiana, retomou Springsteen e se orientou para os imprescindíveis Guccini e De André. Este último, depois, com sua La buona novela (A boa nova) foi celebrado por um ensaio publicado pela inesperada e insuspeitável Edizioni Terra Santa ...
Luciano Zappella,
Il vangelo secondo Erri De Luca,
Claudiana, p. 216, € 14,50
Vamos parar por aqui, nesta análise bibliográfica não exaustiva, porque nos interessam dois outros títulos que a citada Claudiana recentemente destinou a seus leitores curiosos. Na verdade, o primeiro volume coloca no palco um autor que tem a Bíblia em constante marca d'água em quase todas as suas páginas. Aliás, foi um seu tradutor e comentarista originalíssimo, convencido de que "o poder da Sagrada Escritura é tornar cada leitor contemporâneo e testemunha das coisas narradas". É fácil compreender que estamos falando de Erri De Luca, cujo nome por si só isenta de qualquer outra apresentação de sua complexa e variegada personalidade e produção literária.
Luciano Zappella, um professor que já se destacou por suas sugestivas abordagens narratológicas da Bíblia, se empenhou a analisar seu "evangelho" (em sentido amplo). É difícil esboçar sucintamente o perfil de um narrador "napólide" e metamórfico como De Luca: mas este seu intérprete consegue fixar seu rosto recorrendo tanto à sua biografia, mas sobretudo à policromia e a vasta bibliografia. Pessoalmente, considero dois capítulos sugestivos e significativos que comprimem a incandescência e fluidez de muitos escritos desse "convidado das Escrituras" no molde de uma definição dupla pertinente. Em primeiro lugar, a classificação que o consagra como targumista, evocando um termo aramaico que na prática remete à "tradução", capaz de entrelaçar o traçado pedregoso com a espumejante equivalência literária e semântica (emblemático é o Jonas/Ionà, formidável parábola universal bíblica).
A outra definição é aquela de um De Luca “midrashista”, onde a palavra hebraica revela a planície verdejante ou os picos celestes da narrativa parabólica-parenética que fascina, mas também informa e performa o leitor. E aqui bastaria citar a primordial La nuvola come tappeto (A Nuvem como Tapete, em tradução livre), mas também aquela deliciosa, mas rigorosa, releitura da figura de Jesus/Jeshu a partir dos Evangelhos da sua infância. Não vamos cair na tentação de acrescentar mais nada porque o horizonte aberto por Zappella é verdadeiramente panorâmico, mas capaz de não ignorar e até mesmo ampliar cada detalhe. Devemos, de fato, passar ao outro título, talvez mais provocativo e, até algum tempo atrás, desconcertante especialmente para algumas autoridades eclesiásticas.
Marco Campedelli,
Il vangelo secondo Dario Fo,
Claudiana, p. 144, € 12,90
Marco Campedelli, agente teatral com currículo de estudos teológicos acadêmicos, começou a investigar O Evangelho segundo Dario Fo, abrindo seu ensaio com uma pergunta que dirigiu justamente ao Prêmio Nobel de 1997: “E se Jesus tivesse realmente montado um teatro? Uma trupe errante para contar o mundo ao revés?”. É certo que Fo se inspirou fortemente na história do Evangelho, desde as núpcias de Canaã à ressurreição de Lázaro, de Maria, mãe de Jesus que sobe ao Gólgota aos pés da cruz de seu Filho, aos vários milagres, como os cegos e o aleijado, para finalmente chegar ao discípulo perfeito de Cristo, aquele "são Francisco" que vai fascinar Fo, pronto a arrastá-lo para o palco e para os seus textos infinitas vezes.
O retrato de Campedelli, que muitas vezes divaga embrenhando-se também nos contextos da história do autor, colorindo-a com sua sintonia e simpatia pessoais, poderia abrir o discurso sobre um aspecto hermenêutico básico, o da distinção entre dessacralização e profanação. A fronteira é real, mas frágil porque os dois termos não são sinônimos (como se acredita) embora floresçam a partir da única raiz (em italiano), o "sagrado", que por sua vez se junta ao "santo", palavras também não estritamente coincidentes, como ao contrário acontece na prática linguística. Esta reflexão, que deixamos suspensa, teria um extraordinário campo de exercício no "mistério bufo mas não tanto" de Fo.
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De Luca e Fo intérpretes do evangelho. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU