12 Abril 2021
Depois da crise militar, o presidente brasileiro parece enfraquecido. Mas longe de romper com ele, os militares mantêm cargos destacados e tentam limpar a imagem.
A reportagem é de Marcelo Aguilar, publicada por Brecha, 09-04-2021. A tradução é do Cepat.
A imagem dos militares vinha se deteriorando. É o que mostra o desastre que significou a gestão do general Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde, em especial o impacto midiático da escandalosa falta de oxigênio em Manaus, pela qual Pazuello é investigado judicialmente.
Até sua nomeação em setembro, e apesar de ocupar diversos postos estratégicos no governo, os militares atuavam de forma mais discreta, quase sempre por meio de oficiais aposentados. Mas Pazuello, general em atividade, agarrou o ferro quente durante a maior crise sanitária da história do país.
Outros oficiais vazavam constantemente à imprensa o seu mal-estar com a gestão sanitária do governo e, quase sempre em off, pediam que o general se aposentasse e, assim, evitasse a mancha na imagem militar. Pazuello saiu no dia 23 de março, dia em que foi registrado um novo recorde de 3.251 mortes por covid-19.
A crítica de alguns oficiais à política sanitária não era, no entanto, o único motivo de desencontro entre as hierarquias civis e militares. Desde o ano passado, Bolsonaro estava incomodado com o agora ex-comandante do Exército Edson Pujol. Em abril, em um evento militar em Porto Alegre, o presidente, conhecido por sua rejeição aos mínimos cuidados sanitários, estendeu sua mão para cumprimentar Pujol. Recebeu um cotovelo.
Em novembro, dois dias após a velada ameaça bélica de Bolsonaro ao então presidenciável estadunidense, Joe Biden, por algumas declarações deste a respeito da proteção da Amazônia (“quando acaba a saliva, tem que ter pólvora”, havia retrucado o brasileiro), Pujol atravessou seu superior e sustentou à imprensa que não existia nenhum país no continente que representasse uma ameaça para o Brasil e que, de qualquer modo, as Forças Armadas brasileiras não tinham os recursos suficientes para garantir a soberania nacional.
Para maior ira bolsonarista, durante uma coletiva com empresários, no dia seguinte, Pujol afirmou: “Não queremos fazer parte da política governamental ou do Congresso Nacional, e muito menos queremos que a política entre em nossos quartéis”. “Não mudamos a cada quatro anos nossa maneira de pensar ou de cumprir nossas missões”, acrescentou. Imediatamente, Bolsonaro recordou no Twitter que era ele quem havia escolhido Pujol para o cargo de comandante, uma ajuda de memória que parecia ter como destinatário o próprio general.
O certo é que Pujol era visto como um obstáculo para as tentativas do presidente em radicalizar o apoio militar a seu governo. Nas últimas semanas, o mandatário se referiu várias vezes às tropas como “meu exército” e deixou claro, fiel a seu estilo de conduzir a pandemia, que os militares não iriam às ruas para obrigar nenhum trabalhador a ficar em sua casa.
Enquanto isso, a Justiça anunciava a anulação das condenações de quem certamente será o principal entrave a Bolsonaro nas próximas eleições, Lula da Silva, em meio ao estrito silêncio militar. Nesse cenário e em plena mudança de gabinete, o presidente removeria, no dia 20 de março, como quem não quer a coisa e sem maiores explicações, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, protetor de Pujol.
As coisas não saíram como esperava. Após o terremoto da renúncia simultânea dos três comandantes das Forças Armadas em apoio a Azevedo e Silva, Bolsonaro acabou respeitando o critério de antiguidade para as novas nomeações. Acabou elegendo – ou aceitando, depende de como se olha – o general Paulo Sérgio Nogueira como novo comandante do Exército, fato que, com o passar dos dias, foi entendido por analistas e entendidos em política militar como um sinal de continuidade.
Então, o exército publicou uma foto de uma reunião entre o novo ministro, Eduardo Villas Bôas, Pujol e Nogueira, com a frase: “Antigo, atual e futuro comandante do Exército de Caxias: laços inquebrantáveis de respeito, camaradagem e lealdade”.
As primeiras reações midiáticas e políticas foram dominadas pela euforia. O jornalista e ex-assessor de imprensa do governo de Lula, Ricardo Kotscho, que mantém contato com alguns militares em atividade, no dia primeiro de abril, expressou em sua coluna no UOL que Bolsonaro havia conseguido “unir os militares contra ele”, já que os militares, enfim, tinham “desembarcado do governo e enquadrado o presidente nos limites constitucionais”.
No entanto, dois dias depois, escreveu: “O que pareceu uma ruptura do governo com sua base militar foi apenas um jogo de cena para mudar os quepes dos chefes militares por outros mais ao gosto do capitão, sem mudar nada na concepção secular dos militares como guardiões do poder civil”.
Kotscho repensou sua leitura, mas o restante das análises da imprensa brasileira foram – são – quase unânimes: os militares estariam buscando evitar a “politização” das Forças Armadas, empenhados em preservar a democracia frente às “aventuras golpistas” de Bolsonaro. Mas pensar que os militares querem evitar uma politização dos quartéis, durante o governo mais militar da história democrática, no mínimo, soa contraditório.
Piero Leirner, antropólogo e especialista em estratégia militar da Universidade Federal de São Carlos, afirma que o ocorrido não se trata de uma reação aos arroubos golpistas de Bolsonaro, mas a simulação de uma reação: “A figura de Bolsonaro como presidente é em si uma construção militar, feita para parecer independente, errática e incontrolável. Dessa forma, os militares sempre aparecem como um fator de contenção. O que aconteceu agora é uma sobrecarga dessas construções, uma operação psicológica do tipo comoção e pavor, em nível informacional, na qual todo mundo fica desnorteado, em um primeiro momento, e depois com a sensação que eles quiseram imprimir no imaginário coletivo: que disseram ‘basta’, que agora ‘a política’ irá se manter longe dos quartéis”. Para o analista, “a suposta crise militar já atingiu o seu objetivo e o que virá agora é uma operação de desacoplamento da tropa em relação a Bolsonaro”.
Para o jornalista André Ortega, coautor, ao lado de Pedro Marin, do livro “Carta no coturno: a volta do partido fardado no Brasil”, “os militares afirmaram sua unidade no atual cenário e mostraram que mantêm uma unidade corporativa, que não é somente institucional, racional-burocrática, mas política e cultural, como sempre fizeram na história”.
Ortega também não acredita que os militares estejam defendendo as instituições democráticas: “Há um excesso de entusiasmo em relação aos supostos generais democráticos. Não podemos confundir as diferenças de ambições individuais ou de feudos com grandes diferenças políticas. Não há ruptura, nem esforços de preservação democrática. Há uma encenação para preservar a imagem de que a instituição militar é competente e manter, e inclusive aumentar, o que conquistaram com este governo”.
Eduardo Svartman, historiador, doutor em Ciência Política e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, também não acredita que se possa falar em ruptura, porque “os militares são corresponsáveis pela eleição deste governo e são uma parte de sua base”.
Em sua perspectiva, o acontecido “sugere uma reacomodação na qual alguns militares em atividade pretendem marcar certa distância em relação ao governo e, nesse marco, se explicita uma tensão entre parte dos altos oficiais em atividade e os da reserva, que são aqueles que estão presentes em massa no Executivo”. Este último ator, sustenta Svartman, “enfrenta seu pior momento e joga com o golpismo para contrabalançar seu enfraquecimento”.
Para o historiador, o que os oficiais em atividade querem evitar é uma possível insubordinação nos quartéis: “Há uma preocupação com a crescente politização e polarização e o acionamento das tropas das milícias digitais bolsonaristas”. Existe, segundo ele, “um temor de que ocorram episódios como os da Bahia em unidades militares e que fique difícil para a cúpula manter o alinhamento de todos”.
Na segunda-feira, 29 de março, um integrante da Polícia Militar protagonizou um estranho episódio no Farol da Barra, um lugar simbólico de Salvador da Bahia. Após começar a disparar contra os seus companheiros, o agente foi morto. Rapidamente, as bases bolsonaristas da Internet passaram a torná-lo um herói, alimentando a versão de que o policial teria morrido por se negar a seguir as ordens do governador do Estado, Rui Costa (do Partido dos Trabalhadores), que havia decretado algumas restrições à mobilidade por causa da pandemia.
A campanha, pelo teor de suas mensagens, parecia uma tentativa bolsonarista de inflamar seus seguidores e desencadear um levante das Polícias Militares pelo país. Rafael Alcadipani, integrante do Fórum Nacional de Segurança Pública, disse que as bases do governo “erraram o diagnóstico”. A tática não funcionou. Sim, existe, afirma, uma coincidência ideológica entre as duas forças: as Polícias Militares, “alinhadas à direita e ao conservadorismo, estão muito influenciadas pela ideologia do bolsonarismo e se identificam com o presidente”. Mas Alcadipani acredita que, apesar de não poder ser descartadas sublevações ou aquartelamentos pontuais, não possuem, sozinhas, a força suficiente para gerar um fato de maior gravidade: “Com uma taxa de desemprego tão alta, sem uma ajuda econômica forte e um sólido apoio das Forças Armadas é muito difícil que tentativas como estas tenham possibilidades”.
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Bolsonaro, os generais e o teatro dos inocentes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU