09 Março 2021
Em sua última entrevista coletiva a bordo, o Papa Francisco disse nessa segunda-feira que não tem medo de ser chamado de “herege” por se engajar no diálogo com os muçulmanos; que ele se sentiu “preso” durante os confinamentos devido à Covid-19; que ficou chocado com a destruição que testemunhou na cidade iraquiana de Mosul no domingo; e, no Dia Internacional da Mulher, lamentou a exploração das mulheres, incluindo a prática da mutilação genital.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 08-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“As mulheres são mais corajosas do que os homens, isso é verdade”, disse ele. “A mulher hoje também é humilhada. Uma de vocês [a jornalista espanhola Eva Fernández, da Radio Cope da Espanha] me mostrou a lista de preços das mulheres” escravizadas pelo ISIS.
“Eu não podia acreditar. As mulheres são vendidas, são escravizadas. Também no centro de Roma. O trabalho contra o tráfico é um trabalho diário”, disse o papa.
Francisco também mencionou que há países, “principalmente na África”, que ainda praticam a mutilação, “como um rito que deve ser feito. Mas as mulheres ainda são escravas, e devemos lutar e lutar pela dignidade das mulheres”.
As mulheres, continuou, são aquelas que “levam em frente a história”, e isso, disse Francisco, “não é um exagero. As mulheres levem em frente a história”.
A fraternidade humana, termo frequentemente usado por Francisco para descrever o objetivo do diálogo inter-religioso, é importante porque homens e mulheres são todos irmãos, disse o papa, acrescentando: “Devemos seguir em frente também com as outras religiões”.
Francisco definiu o seu encontro no sábado com o Grande Aiatolá Ali al-Sistani, o líder xiita de mais alto escalão do Iraque, como um “segundo passo” nesse caminho rumo à fraternidade, após assinar uma declaração conjunta com o Grão-Imã Ahmed el-Tayeb, de al-Azhar, um importante ponto de referência no Islã sunita, em 2019.
O pontífice reconheceu que, quando se trata do diálogo inter-religioso e da promoção da fraternidade humana, ele corre “riscos”, porque isso é “necessário”.
“Você sabe que há algumas críticas: que o papa não é corajoso, que é um inconsciente, que está dando passos contra a doutrina católica, que está a um passo da heresia”, disse Francisco. “Há riscos, mas essas decisões são tomadas sempre em oração, em diálogo, pedindo conselho.”
“Essas escolhas não são um capricho e estão também na linha que o Concílio Vaticano II ensinou”, disse ele.
Ele definiu o seu encontro com al-Sistani não como uma mensagem ao Irã, que oficialmente não reconhece a autoridade do grande aiatolá, mas ao mundo e reconheceu que sentiu “o dever, nesta peregrinação de fé e de penitência, de ir encontrar um grande, um sábio, um homem de Deus. E, simplesmente ao ouvi-lo, percebe-se isso.”
“Ele é uma pessoa que tem essa sabedoria e também a prudência”, disse o papa sobre o aiatolá. “Ele me dizia: ‘Há 10 anos eu não recebo pessoas que vêm me visitar com outros objetivos, políticos e culturais. Não, apenas religiosos’.”
Ele também disse que al-Sistani foi “muito respeitoso”, destacando que o líder muçulmano se levantou duas vezes para cumprimentá-lo, embora ele nunca se levante para saudar outros. “Ele é um homem humilde e sábio. Esse encontro fez bem à minha alma. É uma luz.”
Os católicos, disse ele, também têm esses homens sábios, que estão por toda a parte, muitas vezes como os “santos da porta ao lado”.
Questionado sobre a sua decisão de fazer a viagem ao Iraque apesar dos muitos desafios que a visita representou – de uma pandemia global aos atentados suicidas e ataques com foguetes – Francisco disse que, quando se inspira para fazer uma viagem, ele pede conselhos, ouve muitos deles e, acima de tudo, reza e reflete sobre a sua decisão.
Colocando na balança os riscos da Covid-19 e todo o restante, disse ele, “eu tomei a decisão, livremente, que vinha de dentro. E eu disse: ‘Aquele que me permite decidir que se ocupe das pessoas”.
Ele tomou a decisão – insistiu – depois de muita oração e “sabendo dos riscos”.
Os jornalistas perguntaram ao papa se ele havia considerado a possibilidade de que seus eventos no Iraque poderiam se tornar disseminadores do coronavírus e, como tais, levar as pessoas a adoecer e potencialmente a morrer.
Francisco disse que a ideia de uma viagem ao Iraque começou a fervilhar primeiro graças à insistência do ex-embaixador do Iraque junto à Santa Sé, mas, acima de tudo, ao testemunho da sobrevivente Yazidi e ganhadora do Prêmio Nobel da Paz Nadia Murad, que escreveu o livro “Que eu seja a última” (Ed. Novo Século), que conta aquilo que o grupo vivenciou nas mãos do Estado Islâmico.
“Eu aconselho que vocês o leiam”, disse ele.
Francisco admitiu que não esperava encontrar as ruínas que encontrou em Mosul, a cidade que era a “capital” do autoproclamado califado islâmico pelos terroristas do Estado Islâmico.
“Eu tinha visto coisas, tinha lido um livro, mas isso [ver a destruição] toca, é tocante”, disse ele. “Quando eu parei na frente da igreja destruída, eu não tinha palavras. É inacreditável, inacreditável. Não apenas aquela igreja, mas também as outras, até uma mesquita destruída. Vê-se que não estava de acordo com aquelas pessoas.”
“A nossa crueldade humana é inacreditável”, disse ele. “Olhemos para a África. E, com a nossa experiência em Mosul, essas igrejas destruídas e tudo isso, cria-se a inimizade, a guerra e agora o chamado Estado Islâmico recomeça a agir. Isto é ruim, muito ruim.”
“Uma pergunta que veio à minha mente na igreja era esta: quem vende as armas para esses destruidores?”, disse ele. “Porque eles não fazem essas armas na sua casa. Quem vende as armas? Quem é o responsável? Pelo menos, eu pediria que essas pessoas que vendem as armas tenham a sinceridade de dizer: ‘Nós vendemos as armas’.”
Embora o homem conhecido mundialmente como cardeal Jorge Mario Bergoglio odiasse viajar, como papa ele se tornou um globetrotter, com uma média de mais milhas em um ano do que qualquer um estimaria para um homem que assumiu o cargo aos 76 anos.
Mas a sua década como prelado que sempre permaneceu na Arquidiocese de Buenos Aires não o preparou para o confinamento produzido pela pandemia global.
“Depois destes meses de prisão – porque eu realmente me senti um pouco preso – isto [a viagem] para mim é reviver. Reviver porque é tocar a Igreja, tocar o santo povo de Deus, tocar todos os povos”, disse. “Um padre se torna padre para servir, a serviço do povo de Deus, não por carreirismo nem pelo dinheiro.”
Francisco também disse aos jornalistas que, a partir de hoje, só há uma outra viagem que ele se “inspira” a fazer ao Oriente Médio, que é o Líbano, um país que “é uma mensagem” no que diz respeito à convivência.
Uma viagem à Síria, disse ele, não é algo que ele tenha se “inspirado” a levar em consideração, mas, mesmo assim, ele mantém essa nação “martirizada” em seu coração.
Questionado sobre uma possível viagem à Argentina, ele brincou dizendo que já esteve lá por 76 anos e que isso deveria ser o suficiente. Francisco também lamentou que raramente se diz que uma viagem foi planejada para novembro de 2017, como parte de uma viagem que o levaria ao Chile e ao Uruguai também. Mas, como o Chile estava realizando eleições, a viagem foi adiada para janeiro, e visitar a Argentina e o Uruguai em janeiro, segundo ele, não era uma boa ideia, porque é verão, e ninguém está em casa.
“Mas eu quero dizer isto, porque não quero que criem fantasias de ‘patriafobia’: quando houver a oportunidade, a viagem deverá ser feita”, disse ele.
Na agenda, observou Francisco, há uma viagem à Hungria para celebrar a missa de encerramento do Congresso Eucarístico Internacional, mas essa visita não seria “ao país”, mas simplesmente para celebrar a missa. Na verdade, isso significa que não seria uma visita oficial de Estado, com reuniões com as autoridades civis.
Francisco também mencionou que conheceu Abdullah Kurdi, o pai de Alan Kurdi, de três anos, que em 2015 foi encontrado morto na costa turca do Mar Mediterrâneo, depois que o pequeno bote que sua família estava usando para tentar chegar à Europa em seu caminho para o Canadá virou.
Alan, disse ele, é um “símbolo” que vai além de “um menino morto na migração. Ele é um símbolo de civilizações mortas, de civilizações que não podem sobreviver, um símbolo de humanidade”.
“São necessárias medidas urgentes para que as pessoas tenham trabalho nos seus países e não precisem migrar”, disse Francisco. “E também medidas para proteger o direito de migração, que não é apenas recebê-los e deixá-los na praia. É recebê-los, acompanhá-los, fazê-los progredir e integrá-los.”
Em seguida, ele aproveitou para agradecer ao Líbano e à Jordânia, indicando-os como dois países que têm sido “muito generosos” no que diz respeito ao acolhimento de migrantes.
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Papa diz que não tem medo de ser chamado de “herege” por ir ao encontro do Islã - Instituto Humanitas Unisinos - IHU