03 Março 2021
“Os dramas do século XX, pródigo em matanças e inqualificáveis atrocidades, nos convidam ao pessimismo e desânimo, mas Frankl argumenta em sentido contrário, com uma clarividência irrefutável: “Tivemos a oportunidade de conhecer o homem talvez melhor do que qualquer outra geração. O que é, na realidade, o homem? É o ser que sempre decide o que é. É o ser que inventou as câmaras de gás, mas também é o ser que entrou nelas com passo firme sussurrando uma oração”, escreve Rafael Narbona, escritor e crítico literário, em artigo publicado por El Cultural, 02-03-2021. A tradução é do Cepat.
“Como o mundo poderia ser belo!”, escreveu o psiquiatra vienense Viktor Emil Frankl, depois de perder sua esposa e seus pais em diferentes campos de concentração do regime nazista. Seu pai morreu em Theresienstadt, vítima da fome e de uma pneumonia, sua mãe foi gaseada em Auschwitz, e sua mulher, Tilly Grosser, em Bergen-Belsen, no dia de sua libertação. Fragilizada pelas penalidades, foi esmagada por uma multidão que avançou em direção à porta de entrada, quando descobriu a presença de tropas britânicas.
No entanto, nada conseguiu destruir a confiança de Frankl no ser humano. “Tudo pode ser tirado de uma pessoa, exceto uma coisa: a última das liberdades humanas – a escolha da atitude pessoal diante de um conjunto de circunstâncias – para decidir seu próprio caminho”.
Viktor nasceu no seio deu uma família judia, no dia 28 de março de 1905, em Pohorelice, um local tcheco situado a 80 quilômetros de Viena. Naquela época, Viena era uma das cidades mais deslumbrantes da Europa. Dividia com Budapeste a centralidade do Império Austro-Húngaro e era o símbolo de um estilo de vida tolerante e cosmopolita. Viktor desfrutou de uma infância venturosa e tranquila. Apesar de sua fragilidade e seu temperamento sonhador, sempre contemplou a vida como um dom, um maravilhoso presente que precisava ser administrado com inteligência e ternura.
A Primeira Guerra Mundial significou a queda do Império Austro-Húngaro e, para Frankl, a experiência da fome e a precariedade. Durante seus estudos, Viktor escutou de um professor que “a vida humana não era mais do que um processo de combustão e oxidação”. Sem conseguir se conter, respondeu-lhe: “Se é assim, qual é o sentido da vida humana?”.
Movido por essa interrogação, estuda neurologia e psiquiatria, identificando-se com os postulados da psicanálise. Inicia uma constante correspondência com Freud, mas em 1925 se distancia de sua tese, seduzido pelas teorias de Alfred Adler, um psicanalista heterodoxo, segundo o qual a nota mais dominante da mente humana é a necessidade de ordenar a vida conforme uma meta.
Viktor Frankl considerava que Freud havia interpretado o ser humano a partir de baixo, atribuindo uma importância desmedida ao instintivo. Em sua opinião, é preciso olhar o ser humano a partir de cima. Só assim compreenderemos que as atividades psíquicas são a essência de nossa natureza. O neurótico não encontra nenhum sentido para a vida, mas uma mente sadia adverte que o sentido não é um dado objetivo, mas a culminação de um projeto pessoal, algo que se elabora livre e racionalmente. Graças a essa construção, o ser humano pode enfrentar as piores tragédias, sem perder o desejo de viver.
Frankl aprende de Max Scheler que o ser humano não está restrito aos impulsos e a influência do ambiente. Dado que é um ser inteligente, pode se mover por intenções, desenvolvendo empatia aos seus semelhantes e respeito ou simpatia ao resto dos seres vivos. Se não pudéssemos transcender o biológico e social, seríamos simples autômatos.
Em inícios dos anos 1930, Frankl se dedica à psiquiatria e a neurologia, começa a escrever ensaios e dá conferências. Em 1938, a Áustria é anexada ao Reich alemão e são aplicadas as leis de Nuremberg, que obrigam Frankl e sua família a se identificar com uma estrela amarela. Em 1941, casa-se com Tilly. Nessa dada, recebe um visto para viajar para os Estados Unidos, solicitado dois anos antes, mas não o utiliza, pois parece pouco ético abandonar seus pais, seus pacientes e seus compatriotas judeus. Decide ficar e dividir a sorte das pessoas que ama.
Em setembro de 1942, Viktor é deportado para Theresienstadt com seus pais e sua mulher. É tatuado com o número 119.104. Carrega um manuscrito, mas os guardas o retiram. A ideia de reescrevê-lo proporciona uma meta e o ajuda a não se desmoronar. Será o único sobrevivente de sua família. Após recuperar a liberdade, publica “O homem em busca de um sentido”, com o subtítulo “Um psicólogo no campo de concentração”. O livro é uma das obras de referência sobre o Holocausto ou Shoah. Além disso, estabelece as bases teóricas da logoterapia ou o que se conhece como Terceira Escola Vienense de Psicologia.
A logoterapia é um método menos retrospectivo e menos introspectivo que a psicanálise. Está orientada para o futuro, para a possibilidade de se elaborar metas e objetivos. Este delineamento rompe com o ensimesmamento neurótico, que retorna novamente às suas obsessões, reforçando-as com seus pensamentos recorrentes. A logoterapia considera que a principal motivação do ser humano não é a busca do prazer ou poder, mas a vontade de sentido. A busca de sentido não é uma sublimação do instinto, mas algo primário. Frankl destaca que as pessoas vivem e morrem por seus ideais e princípios. A logoterapia estima que sua tarefa é ajudar o paciente a encontrar o sentido da vida.
Escreve Nietzsche: “Quem tem um porquê para viver, quase sempre encontrará um como”. A logoterapia compartilha essa convicção. Frankl aprofunda a reflexão de Nietzsche: “Quando se aceita a impossibilidade de substituir uma pessoa, adverte-se em toda a sua magnitude a responsabilidade que o ser humano assume diante de sua existência. O ser humano se torna consciente de sua responsabilidade diante do outro que o espera com todo o seu afeto ou diante de uma obra inconclusa nunca poderá jogar sua vida fora. Conhece o porquê de sua existência e poderá suportar quase qualquer como”.
O equilíbrio psíquico não reside na ausência de tensões, mas na tensão entre o que somos e o que queremos ser. Sem esse conflito, caímos no vazio existencial. A essência íntima do ser humano é sua capacidade de enfrentar com responsabilidade a sua finitude, relacionando-a com uma finalidade. O sofrimento se torna tolerável quando adquire um sentido, como cuidar de um doente.
A logoterapia utiliza uma técnica denominada “intenção paradoxal”. É preciso buscar uma meta, mas sem ansiedade antecipatória. “A felicidade é como uma borboleta. Quando mais você a persegue, mais foge. Mas se você coloca a sua atenção em outras coisas, ela vem e suavemente pousa em seu ombro. A felicidade não é uma pousada no caminho, mas uma forma de caminhar pela vida”.
Se a perspectiva do fracasso nos inspira um medo patológico, existem maiores possibilidades de se fracassar. A angústia atrai as falhas e descalabros. Se experimentarmos uma impaciência infantil, obcecando-nos com um objetivo, perderemos a calma necessária para triunfar. Sempre devemos estar dispostos a rir de nós mesmos, pois o humor descontrai e nos ajuda a controlar as emoções.
O neurótico cai em um círculo vicioso porque é incapaz de relativizar seus problemas e contemplá-los com certa ironia. A logoterapia destaca a liberdade da mente humana para superar condicionamentos e determinações. “O ser humano é filho de seu passado, mas não o seu escravo, e é o pai de seu futuro”. O homem não é uma coisa entre as coisas, mas um sujeito racional. Não se limita a existir, mas decide. Retificar também é uma forma de decidir, pois implica uma reelaboração da meta estabelecida. A liberdade só é verdadeira quando está ligada à responsabilidade. Em definitivo, a logoterapia é uma psicologia humanizada, que reivindica a dignidade do ser humano, artífice da História e protagonista de sua própria história.
Em 1947, Viktor Frankl se casa pela segunda vez com Eleonore Schwindt, uma enfermeira com quem passará o resto de sua vida e com quem terá uma filha. Diretor de uma policlínica de neurologia de Viena até 1971, será professor universitário na mesma cidade e trabalhará como professor convidado em diferentes universidades norte-americanas (Harvard, Stanford, San Diego, Dallas, Pittsburgh). Recebe uma enxurrada de prêmios e distinções.
Publica trinta livros que são traduzidos para diferentes idiomas. Podemos destacar “Psicoterapia e existencialismo” (a obra confiscada em Theresienstadt), “No princípio era o sentido”, “Logoterapia e análise existencial”, “Psicoterapia e humanismo”, “A presença ignorada de Deus”. Frankl ganha o Prêmio Oskar Pfister, concedido pela Associação Estadunidense de Psiquiatria.
Alpinista, amante das gravatas, viciado em café, devoto de Mahler e caricaturista notável, conseguiria uma licença para voo aos 67 anos, pilotando aviões sozinho. Morre em 02 de setembro de 1997, com 92 anos.
“O homem em busca de um sentido” impressionou várias gerações. Frankl relata sua passagem pelo sistema de campos de concentração da Alemanha nazista com grande honestidade: “Nós que retornamos de lá, graças a uma infinidade de coincidências fortuitas ou milagres – conforme cada um prefere descrever –, sabemos bem: os melhores entre nós não retornaram”. Os deportados que superavam as primeiras seleções desembocavam em “uma espécie de morte emocional”. Era a única coisa que permitia suportar uma vivência profundamente desumanizadora. Na rotina dos campos, o pior não era a dor física ou as cruéis privações, mas “a angústia mental causada pela injustiça, pelo irracional de tudo aquilo”.
O trabalho esgotador, os maus-tratos e uma alimentação deliberadamente insuficiente reduzem os deportados a uma massa que se degrada dia a dia. A desnutrição mata o desejo e a compaixão, pois não há espaço para os sentimentos quando a prioridade é salvar a pele. A mente hiberna, despojando-se de emoções e ideias. Só perduram as firmes crenças religiosas e as convicções políticas, pois resultam úteis para a sobrevivência. Os céticos ou descrentes são mais vulneráveis.
Apesar de tudo, Frankl não cai no desespero. Pensa que sua vida interior é uma poderosa ferramenta para suportar as calamidades, mas sobretudo se apega à capacidade de experimentar amor: “a salvação do homem está no amor e através do amor”. Ignora se sua mulher está viva, mas sente que nem sequer sua morte poderia depreciar o seu amor. Afirma que se tivessem lhe comunicado a notícia de seu falecimento, teria continuado sua conversa mental com ela e teria sido “igualmente real e gratificante”. O amor ajuda a preservar a própria identidade individual em um ambiente concebido para destruí-la. Só amando é possível conservar a liberdade interior, a autoestima e a personalidade.
Frankl atua como médico e psicólogo de outros deportados, combatendo seu afundamento emocional, que inclui fantasias suicidas. Em Auschwitz, quem se mata condena à morte todos os seus companheiros de barracão. Não há liberdade para morrer. Por isso, é preciso viver para si mesmo e para os outros. Frankl é fiel a suas ideias, pois descarta qualquer plano de fuga para ficar com seus pacientes. Mais tarde, escreverá: “Encontrei o significado de minha vida ajudando os outros a encontrar um significado em suas vidas”.
Se sabemos que o sentido último da vida é o amor, poderemos suportar as formas mais temíveis de adversidade. Amor aos outros e amor a nós mesmos, pois cada ser humano tem uma enorme responsabilidade para com a sua própria existência. Os dramas do século XX, pródigo em matanças e inqualificáveis atrocidades, nos convidam ao pessimismo e desânimo, mas Frankl argumenta em sentido contrário, com uma clarividência irrefutável: “Tivemos a oportunidade de conhecer o homem talvez melhor do que qualquer outra geração. O que é, na realidade, o homem? É o ser que sempre decide o que é. É o ser que inventou as câmaras de gás, mas também é o ser que entrou nelas com passo firme sussurrando uma oração”.
A biografia e a obra de Viktor Frankl constituem uma lição de vida. Deveríamos visitá-las com frequência para nos contagiar com sua esperança e dignidade.
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Viktor Frankl e o sentido da vida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU