30 Junho 2020
"Os relatos de Primo Levi (e Jean Amery), dois sobreviventes de Auschwitz, nos apontam caminhos para a compreensão do momento em que vivemos. Um deles seria não entronizar a experiencia do nazifascismo, como se fosse algo irrepetível, historicamente localizado e estático", escreve Diogo Justino, Mestre e Doutor em Teoria e Filosofia do Direito (UERJ), Coordenador do GT Direitos, memória e Justiça de Transição do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS).
No ano passado uma carta inédita de Primo Levi veio a público. Havia sido escrita em 1945 e enviada a sua família no Brasil. Seu conteúdo tem uma atualidade impressionante: o fascismo mostrou ter raízes profundas, muda de nome, de estilo e de métodos, mas não está morto, e principalmente permanece aguda a ruína material e moral a que levou o povo. (...) A guerra acabou, mas ainda não há paz.[1] Essa é mais uma das mensagens que Levi deixa para as gerações seguintes em seus escritos, que nos chegam como profecias, especialmente nos tempos difíceis em que vivemos.
Poucos meses após a descoberta da carta, o exército brasileiro prestou homenagem a um soldado alemão que havia sido condecorado por Hitler após a ocupação da França – promovido por bravura no ano da prisão de Levi.[2] Não foi acaso. Na homenagem ao soldado nazista, o exército brasileiro fala em "perpetuar a memória do oficial". Há duas memórias que se cruzam no mesmo ano, a carta e a homenagem. Eles têm um passado comum, mas se distanciam em tradições antagônicas: vencedores e vencidos; oprimidos e opressores; vítimas e vitimizadores. No Brasil de Bolsonaro e no mundo atormentado por neofascismos, o trabalho da memória está colocado: atualizar as injustiças.
Com a pauta antifascista sendo recolocada na arena pública brasileira, logo surgem os defensores de uma ideia de passado estático, não repetível. O fascismo como experiência localizada no século XX, como coisa de outros tempos. Políticos de extrema-direita difundem na internet imagens de combatentes da segunda guerra mundial, alguns brasileiros, para mostrar quais são os verdadeiros antifascistas, em tentativa de se contrapor aos atuais movimentos antifas que tomam as ruas. Que o Brasil tenha ajudado na luta antifascista do século passado é algo digno de recordação. Que esse país agora flerte com neofascismos seria algo digno de tristeza para Levi: para nós é motivo de constante meditação e horror ver as sementes do fascismo germinar até nos países aos quais o mundo deve a derrota do nazifascismo[3], escreveu ainda em 1974, no momento em que lembrava constantemente das violências da guerra do Vietnam e das ditaduras latinomaericanas. Um passado que acreditava não mais voltar.
Passou-se um quarto de século e hoje olhamos ao redor e vemos com preocupação que talvez aquele alívio tenha sido prematuro. Não, hoje em nenhum lugar existem câmaras de gás nem fornos crematórios, mas há campos de concentração na Grécia, na União Soviética, no Vietnã, no Brasil. Em quase todos os países existem prisões, instituições para menores, hospitais psiquiátricos onde, como em Auschwitz, o ser humano perde nome e rosto, dignidade e esperança. Acima de tudo, o fascismo não morreu: consolidado em alguns países, esperando cautelosamente a desforra em outros, não parou de prometer ao mundo uma Ordem Nova.[4]
A pergunta sobre a possibilidade de repetição é recorrente nos sobreviventes do nazifascismo. O trabalho de contar o que aconteceu, tarefa a qual dedicaram suas vidas, não servia meramente como uma narrativa histórica; estava sempre posta como tentativa de advertir às gerações futuras. Por isso Levi fala mais de uma vez em dialogar não apenas com a geração que viveu a experiência do nazifascismo, mas com os filhos e com os filhos dos filhos.[5], para mostrar que classe de perigos ameaçam hoje, como ontem, nossa civilização.
Auschwitz está fora de nós, mas em torno de nós, está no ar. A peste acabou mas a infecção grassa; seria tolo negar (...) a peste acabou, mas no Vietnam todo um povo está ameaçado de extinção.[6] Devido a isso, a luta antifascista é uma luta constante; não terminou com a libertação dos campos, não terminou em Nuremberg – a violência de hoje é filha da violência da qual somos sobreviventes[7], dirá Levi. Neste sentido podemos falar em atualizar as injustiças, buscando no mundo tal qual nos é apresentado as condições estruturais que, como no passado, serviram de fundamento para que fosse possível pôr em prática políticas nazifascistas.
Nas palavras de Levi, isso pode ser observado de muitos modos, não necessariamente com o terror policial mas também negando ou distorcendo informações, corrompendo a justiça, paralisando a educação, divulgando de muitas maneiras sutis a saudade de um mundo no qual a ordem reinada soberana e a segurança dos poucos privilegiados se baseava no trabalho forçado e no silêncio forçado da maioria.[8]
Em os afogados e os sobreviventes, ele apresenta quais são as perguntas mais urgentes, que deixam a todos angustiados: em que medida o mundo concentracionário morreu e não voltará mais? Em que medida retornou ou está retornando? Que pode fazer cada um de nós para que, neste mundo pleno de ameaças, pelo menos esta ameaça seja anulada?[9] São perguntas que movem o trabalho dos sobreviventes. Perguntas que fazem a si mesmos e que deixam ao mundo. Cabe a nós responde-las à forma do nosso tempo, já que, como disse Levi: cada época tem seu fascismo: seus sinais premonitórios são notados onde quer que a concentração de poder negue ao cidadão a possibilidade e a capacidade de expressar e realizar sua vontade.[10]
Jean Amery, outro sobrevivente do nazifascismo que se dedicou a testemunhar o que viveu, em texto de 1977, fala que às vezes tem-se a impressão que Hitler triunfou postumamente - Invasões, agressões, tortura, em suma, a destruição do ser humano em sua essência. São muitos os sinais. A Checoeslováquia em 1968, o Chile, a evacuação forçada em Phnom-Pehn, as clínicas psiquiátricas na União Soviética, os esquadrões da morte no Brasil e Argentina.[11]
Os relatos de Primo Levi (e Jean Amery), dois sobreviventes de Auschwitz, nos apontam caminhos para a compreensão do momento em que vivemos. Um deles seria não entronizar a experiencia do nazifascismo, como se fosse algo irrepetível, historicamente localizado e estático. Giorgio Agamben chega a dizer que para Levi o campo de concentração não pode se repetir porque nunca deixou de acontecer. Está se repetindo sempre.[12] Uma forma paradoxal de lidar com a memória.
As disputas por memória estão na agenda política mundial. Não é surpreendente que o exército brasileiro faça uma homenagem ao ex-oficial nazista e mencione sua memória. Não é surpreendente que, neste momento, multidões anti-racistas estejam destruindo estátuas nos Estados Unidos e na Europa. São formas de intervir na memória social. Por parte de Primo Levi, nos resta a lição simples: falar menos aos nossos filhos de glória e vitória, heroísmo e solo sagrado, e falar um pouco mais sobre essa vida difícil, arriscada e ingrata, da exaustão diária, dos dias de esperança e desespero...[13] Uma memória dos de baixo, do sofrimento que nunca deixa de exigir um nunca mais, que nunca deixa de advertir o mundo para que todos saibam até onde se pode chegar.[14]
[1] Il fascismo ha dimostrato di avere radici profonde, cambia nome e stile e metodi ma non è morto, e soprattutto sussiste acuta la rovina materiale e morale in cui esso ha indotto il popolo. Fa freddo, c’è poco da mangiare, non si lavora; fiorisce il banditismo, e mentre si parla di democrazia sociale, crescono mostruosi nuovi capitalismi nati dal traffico nero: è l’aristocrazia più antisociale. La guerra è finita, ma non c’è ancora la pace. Original disponível aqui. Tradução disponível aqui.
[2] Exército brasileiro homenageia major alemão condecorado por Hitler.
[3] LEVI, Primo. “Um passado que acreditávamos não mais voltar.” In: A assimetria e a vida: artigos e sensaios (1955-1987. (tradução: Ivone benedetti) São Paulo: Editora Unesp, 2016, p. 56.
[4] LEVI, Primo. Aos Jovens. Prefácio a É isto um homem?. In: A assimetria e a vida: artigos e sensaios (1955-1987. (tradução: Ivone benedetti) São Paulo: Editora Unesp, 2016, p. 50.
[5] LEVI, Primo. Carta a filha de um fascista que pede a verdade. In: Assim foi Auschwitz: testemunhos 1945-1986. (Tradução: Federico Carotti). São Paulo: Companhia das letras, 2015, p. 75.
[6] LEVI, Primo. Prefácio a Auschwitz, de L. Poliakov. In: A assimetria e a vida: artigos e sensaios (1955-1987. (tradução: Ivone benedetti) São Paulo: Editora Unesp, 2016, p. 47.
[7] LEVI, Primo. “À nossa geração...”. In: A assimetria e a vida: artigos e sensaios (1955-1987. (tradução: Ivone benedetti) São Paulo: Editora Unesp, 2016, p. 165.
[8] LEVI, Primo. “Um passado que acreditávamos não mais voltar.” In: A assimetria e a vida: artigos e sensaios (1955-1987. (tradução: Ivone benedetti) São Paulo: Editora Unesp, 2016, p. 56.
[9] LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 17.
[10] LEVI, Primo. “Um passado que acreditávamos não mais voltar.” In: A assimetria e a vida: artigos e sensaios (1955-1987. (tradução: Ivone benedetti) São Paulo: Editora Unesp, 2016, p. 56.
[11] AMÉRY, Jean. Além do crime e do castigo: tentativas de superação. (Tradução Marijane Lisboa). Rio de Janeiro: Contraponto, 2013, p. 15.
[12] AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 106.
[13] LEVI, Primo. O tempo das suásticas. In: A assimetria e a vida: artigos e sensaios (1955-1987. (tradução: Ivone benedetti) São Paulo: Editora Unesp, 2016, p. 16-17.
[14] LEVI, Primo. “À nossa geração...”. In: A assimetria e a vida: artigos e sensaios (1955-1987. (tradução: Ivone benedetti) São Paulo: Editora Unesp, 2016, p. 164.
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“Um passado que acreditávamos não mais voltar”: os neofascismos e a atualidade de Primo Levi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU