21 Julho 2020
"A Banda se atualiza. Seu valor é recuperado de modo muito especial na situação de pandemia. Há uma afinidade eletiva entre aquela cidade da canção e as nossas cidades atuais, as externas e as internas. Nelas estão contidas melancolias humildes, que não se encastelam orgulhosas, mas se abrem singelamente à alegria que por ali passa", escreve Gustavo Xavier, jornalista, pesquisador de movimentos sociais e cultura, mestre em Psicologia Social e coordenador de programação da Rádio USP.
E cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor
Encher a vida de sentido é uma das buscas mais profundas de toda pessoa. Talvez seja mais imprescindível que a felicidade ou o bem-estar. O psiquiatra Viktor Frankl, por exemplo, que viveu anos preso em campos de concentração, entre 1942 e 1945, formulou uma abordagem psicoterapêutica baseada na identificação do sentido da existência para cada indivíduo num dado momento da vida, encontrando um ponto de apoio interior em que segurar. Nada mais coerente para quem presenciou a luta diária pela sobrevivência numa das mais terríveis experiências às quais seres humanos foram submetidos. Ali, o que impedia alguém de se entregar à morte era o sentido. A insistência em viver e a esperança por ultrapassar aquele estado de coisas poderia estar sustentada na aspiração de reencontrar um filho, numa obra a concluir, entre outros alvos futuros. Ou seja, a vida de cada um continha um sentido ligado a algo em que sua presença era insubstituível. E também ali, naquele sofrimento, na experiência singular assumida por cada um nos campos de concentração, a pessoa era insubstituível.
Nesses tempos, em que uma pandemia traz tanta dor, isolamento e apreensão, a necessidade de sentido aflora ainda mais explicitamente. Uma das expressões claras disso é a música. Mesmo antes do coronavírus chegar ao Brasil, assistíamos às cenas comoventes de bairros inteiros entoando canções de suas janelas e sacadas na Europa. Vizinhos unidos em coro.
E, já agora, borbulham lives de músicos, montagens reunindo gravações de vários intérpretes, teleconferências em que cada músico toca em seu canto uma camada do mesmo arranjo, e por aí vai.
Talvez nunca tenha sido tão atual e necessária a ressignificação de uma das mais emblemáticas músicas do que hoje chamamos de MPB: a canção A Banda, composta por Chico Buarque.
Adélia Bezerra de Meneses é uma das pesquisadoras da obra de Chico Buarque. Ela identifica em várias de suas canções a capacidade de colocar o sofrimento da vida presente em suspenso durante alguns instantes. Diz ela: “Em todos os casos, uma constante: a tentativa de superar o curso normal da vida, através da criação de um tempo mítico”. E logo adiante, continua sobre Chico: “Isso significa uma tentativa quase que desesperada de se estancar a passagem do tempo, através do retorno a uma tal situação que provoca provisoriamente a reintegração do indivíduo numa determinada experiência, em que a dor humana é vencida”[1].
Esse tempo distinto, que transfigura a vida cotidiana, vai ganhando densidade com os sons da banda que vem vindo, cantando coisas de amor.
Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
O teólogo alemão Paul Tillich, que viveu entre 1886 e 1965, examinou intensamente a relação da arte com a transcendência. No Brasil, um dos teólogos que segue a trilha de Tillich é Carlos Eduardo Calvani. Ele se dedica justamente a olhar essa relação na MPB[2]. E viu em Chico Buarque a expressão dessa transformação de realidades comuns em novas realidades cheias de significado.
O homem sério que contava dinheiro parou
O faroleiro que contava vantagens parou
A namorada que contava as estrelas
Parou para ver, ouvir e dar passagem
Outro que identifica em Chico Buarque a mudança de realidades é o brasilianista Charles Perrone. Do fechamento/silêncio faz-se uma travessia à abertura/música. “A infelicidade e a rotina são superadas com a presença da música”, diz ele[3].
A moça triste que vivia calada sorriu
A rosa triste que vivia fechada se abriu
E a meninada toda se assanhou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
No antológico livro Memória e sociedade: lembranças de velhos, de Ecléa Bosi, uma das entrevistadas é a Dona Risoleta. Ela vai contando sua vida e, em certo momento, tocada pelo encantamento e pela tristeza, recorda as serestas de sua infância:
“Faziam muita serenata em Campinas naquela época e a gente não tinha licença de abrir a janela para espiar. Relembrar uma coisa dessas é triste: vinham quatro ou cinco moços, um tocava violino, outro violão, outro cantava, e tocavam bandolim, cavaquinho, com aquela voz bonita que entrava no coração da gente e a gente ficava… quem disse que ficava dormindo?!”[4].
E com a música vai se dando isso: a gente acorda – ou permanece desperto - para alguma coisa que provavelmente vai transformar nossa vida, nem que seja por um instante. Como o Flautista de Hamelin, que com o som de sua flauta vai atraindo os ratos para o rio, assim também pode acontecer com nossas cidades interiores, que vão ficando temporariamente livres dos roedores de nosso cotidiano.
Com a covid-19, os velhos, os hipertensos, os imunodeprimidos, e tantos outros, que ficam no meio fio entre o zelo de pessoas cuidadosas e o descaso obsceno de certos governantes e seus seguidores, veem-se refletidos em alguns dos personagens dessa rua que vê a banda passar. Suas vulnerabilidades são convidadas à alegria também.
O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou
Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou
A moça feia debruçou na janela
Pensando que a banda tocava pra ela
Quando olhamos para o dia que amanhece, ainda que pareça um eterno retorno ao ponto inicial, pela repetição das horas e de suas atividades confinadas, é possível imaginar uma redenção. Haverá na nossa esperança uma banda prestes a passar? Parece-me que a multiplicação de lives musicais, montagens de coros virtuais e outras atrações, por vezes com composições motivadas pela crise atual, são uma metáfora delicada dessa ânsia por um enraizamento. Pois mesmo que estejamos em casa, fomos arrancados do solo da vida social tal como costumávamos vivê-la.
A Banda esteve envolvida numa das mais contundentes disputas da MPB. Foi no 2º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 1966. Sua concorrente era Disparada, composta por Geraldo Vandré e Théo de Barros. Ambas foram finalistas. A Banda dividiu o prêmio com Disparada depois de o próprio Chico Buarque comunicar ao júri que o devolveria se ganhasse sozinho, como conta Zuza Homem de Mello no seu livro A Era dos Festivais[5]. Zuza lembra que a torcida por Disparada vinha, em geral, da plateia mais politizada.
Nessa linha, entre tantas análises realizadas ao longo de décadas, por vezes encontramos A Banda situada como música presa à nostalgia, focada no passado, deixando tudo em seu lugar; ou como canção romântica – no sentido da visão de mundo disseminada a partir do século 18 –, em termos desfavoráveis, retratando o povo sem se preocupar com a alteração de sua situação.
Mais uma vez, Ecleá Bosi nos ajuda a reatar os fios. Ela diz em O tempo vivo da memória: “A nostalgia revela sua outra face: a crítica da sociedade atual e o desejo de que o presente e o futuro nos devolvam alguma coisa preciosa que foi perdida”[6].
Isso ninguém pode dizer que a passagem d’A Banda não fez. Uma utopia implícita reclama seu lugar na alegria que acompanha o trajeto daqueles sons pelas ruas do bairro imaginário. Uma outra utopia – ou meramente alívio da situação que vivemos – se anuncia nas reuniões musicais que colorem a internet nos dias atuais.
A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu
A lua cheia que vivia escondida surgiu
Minha cidade toda se enfeitou
Pra ver a banda passar cantando coisas de amor
A Banda se atualiza. Seu valor é recuperado de modo muito especial na situação de pandemia. Há uma afinidade eletiva entre aquela cidade da canção e as nossas cidades atuais, as externas e as internas. Nelas estão contidas melancolias humildes, que não se encastelam orgulhosas, mas se abrem singelamente à alegria que por ali passa. E mesmo que para o meu desencanto, o que era doce acabou, fica o legado esperançoso que esse instante redentor deixou em sua passagem.
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou
Será que tomou mesmo? Enquanto permanecerem as imagens mundiais dos vizinhos cantando juntos de suas janelas e sacadas, temos o direito de acreditar que algo pode ser significativamente melhor. Que o sentido da existência de cada um tenha emergido. Ou como diria Viktor Frankl: “Sempre e em toda parte a pessoa está colocada diante da decisão de transformar a sua situação de mero sofrimento numa produção interior de valores”[7]. Talvez seja nosso ponto de apoio. Mesmo que, por hora, estejamos
Cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor.
[1] MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. 3. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002, p. 62.
[2] CALVANI, Carlos Eduardo B. Teologia e MPB. São Paulo: Loyola, 1998.
[3] PERRONE, Charles A. Letras e letras da MPB. 2. ed. Rio de Janeiro: Booklink, 2008, p. 40.
[4] BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 378.
[5] MELLO, Zuza Homem de. 5. ed. A era dos festivais: uma parábola. São Paulo: Editora 34, 2010.
[6] BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. São Paulo, Ateliê Editorial, 2004, p. 67.
[7] FRANKL, Viktor. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 52.
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