21 Janeiro 2021
“É preciso desnazificar, é preciso destrumpificar os Estados Unidos”, disse um Richard Sennett inconformado, indignado pelo ataque ao Capitólio dias atrás. Sennett é um dos intelectuais mais influentes e criativos no mundo acadêmico e na sociedade estadunidense. Também é muito lido na Europa e em nosso país [Argentina]. Decidiu passar o tempo da pandemia em Londres junto com sua esposa, a urbanista e economista Saskia Sassen, que não resistiu à tentação de aparecer na tela do Zoom para brincar com o seu marido. “Não me leva a sério – disse Sennett –, como é argentina, não leva a sério os Estados Unidos...”. “Sim, levo a sério”, rebateu Sassen.
Sennett é filho de pais socialistas (seu pai, de fato, lutou na guerra civil espanhola com a seção Lincoln das Brigadas Internacionais). Hoje, o autor de “O declínio do homem público” se mostra mais radicalizado diante do fenômeno Trump, apoiou Bernie Sanders, votou em Joe Biden e foi perseguido pelo jovem senador republicano Josh Hawley, que o tratou como antipatriótico. De qualquer modo, sua avaliação da exacerbação do ódio e o desprezo de uma parte importante da sociedade estadunidense não se inicia com Trump.
No discurso na Conferência Nacional de Conservadorismo, de julho de 2019, o senador Hawley falou sobre como uma “elite cosmopolita” vendeu as classes médias e trabalhadoras estadunidenses às corporações. “Estimularam as multinacionais a transferir empregos e ativos ao estrangeiro para buscar os salários mais baixos e a pagar impostos mais baixos”. Estes negócios depois não investem seus lucros “nos trabalhadores, nem no desenvolvimento estadunidense, mas em instrumentos financeiros que beneficiam a elite cosmopolita”. Quando Hawley mirou Sennett e outros intelectuais, o sociólogo escreveu em The Week: “Sou a favor do sentido de lugar e certamente da fé religiosa, mas sou contra o nacionalismo do tipo Trump, que celebra nosso país à custa de degradar outras pessoas, lugares e crenças”.
Já em 2012, quando Sennett publicou “Juntos: os rituais, os prazeres e a política da cooperação” (o segundo da trilogia Homo faber), sustentava: “Quando tenho uma veia masoquista, escuto os programas de rádio da direita nos quais se canta fuck you, fuck you às feministas, aos democratas progressistas, aos humanistas laicos e aos homossexuais casados, bem como, é claro, aos socialistas. Os Estados Unidos se tornaram uma sociedade intensamente tribal, onde as pessoas se opõem a se reunir com aqueles que são diferentes. O tribalismo associa solidariedade aos semelhantes e agressão aos diferentes”. É sobre esta tensão permanente na sociedade dos Estados Unidos que, com voz cansada, de Londres, o sociólogo falou nesta entrevista via Zoom.
A entrevista é de Hector Pavon, publicada por Clarín-Revista Ñ, 15-01-2021. A tradução é do Cepat.
O que você pensou quando viu as cenas de violência em Washington, dias atrás?
Pensei, como todo mundo, que isto tinha sido cozinhado anteriormente. Sempre houve um mar de fundo de violência com Trump, ele sempre teve essa qualidade. Vivi isto pessoalmente quando Josh Hawley passou a perseguir a mim e a outros três intelectuais estadunidenses. Tratou-nos como antipatriotas durante um ano. E foi ele que buscou suspender as eleições no Senado, em 6 de janeiro. Descreveu Martha Nussbaum, Leo Marx, Lloyd Rudolph e eu como cosmopolitas. Como judeu, sei ler o subtexto, a acusação. Argumentou que lideramos uma força intelectual antipatriótica nos Estados Unidos. Não me surpreendeu quando o vi assumir essa posição sobre Trump, não reconhecendo sua derrota eleitoral.
Os Estados Unidos conhecem uma “fissura”, uma divisão muito profunda da sociedade. Há saída?
Não acredito na noção de unir o país porque para mim os seguidores de Trump são fascistas e precisam ser responsabilizados pelo que fizeram, outro dia, no Capitólio. Para mim, foi indignante que somente 15 pessoas tenham sido detidas naquele dia, em vez das muitas que precisavam ser presas. Além disso, houve protestos em outras cidades. A retórica de unir os Estados Unidos, de superar isto unidos, de fazer gestos de reconciliação, parece-me equivocada.
Após a Segunda Guerra Mundial, a ideia generalizada era que as pessoas que tinham seguido a Hitler deveriam ser responsabilizadas por isso, precisavam “desnazificar-se”. Hoje, estamos em uma versão mais suave: as pessoas devem ser “destrumpificadas”. Determinadas pessoas precisam ser responsabilizadas por provocarem crenças em coisas que acabam em cenas que vimos na semana passada, e não será a última vez que veremos estas coisas nos Estados Unidos. Você não se livra de um nazista sendo agradável com ele. A empatia não é uma maneira de desnazificar ninguém. Então, não acredito na retórica que temos agora sobre curar, cicatrizar as feridas e tudo isso.
Penso que precisamos ter uma posição mais clara e começar a responsabilizar as pessoas pelo que dizem e pelo que pensam em casos assim, extremos. E não acredito que essa seja a lógica do Partido Democrata, neste momento. A ideia de curar as feridas nunca se efetivará. Um segmento considerável da população é fascista e uma quantidade considerável de cidadãos estadunidenses são fascistas comprometidos. Isto é o que está acontecendo. E isto deve ser compreendido na Argentina, já que vocês passaram pelo mesmo processo na busca em erradicar o fascismo e o militarismo que provocaram horrores na última ditadura.
Digo que esta gente deve ser exposta. Para nós, é um fenômeno de massas mais parecido ao da Alemanha do que ao que vocês sofreram, mas é o mesmo problema. Deve haver mais verdade e menos empatia. Reconheço que tenho um viés taxativo, fui atacado por este Hawley como um antiamericano, por minhas opiniões sobre a economia, a política e a cultura, etc. Mas penso que o que digo é basicamente correto, realista, dado o lugar em que nos encontramos agora.
O governo de Trump expôs esta situação, esta radicalização. Como você caracteriza o país que esta administração está deixando?
Sim, fica claro algo que é uma mudança mais estrutural, que tem raízes muito mais profundas. E essas raízes são sociológicas e econômicas e operam há muito tempo. Desde os anos 1970, no econômico. Antes, nos anos 1950, com o senador Joseph McCarthy, que era mais ou menos o mesmo. Este não é um discurso que diz que os Estados Unidos estão ameaçados por outros países, mas que há uma ameaça interior, dentro da própria sociedade. E também que os democratas ou pessoas como eu podem ser ameaçadas.
O fator acrescido aqui – único nos Estados Unidos – é que era um país onde existia a escravidão. E depois, como consequência, foi um país de segregação racial. Isto está profundamente gravado no DNA do país. Ocorre quando há uma diferença, que implica uma inferioridade, e está muito racializado. Por exemplo, o tipo de brutalidade que se viu na repressão contra as manifestações do Black Lives Matter, em Washington. Porque aqueles eram negros, tinham que ser parados com tanques. Estes, os que tomaram o Capitólio, são brancos e nada fizeram a eles.
A Covid e Trump formaram um coquetel explosivo. Um caldo onde se cozinhou esta situação.
Provavelmente. Temos este imenso problema da Covid e o governo não se concentrou nisso. Trump é inteligente para ver qualquer coisa que toque um interesse pessoal imediato, conferirá uma boa publicidade nos meios de comunicação de direita. Mas é muito estúpido nos assuntos de longo prazo, que podem destruí-lo, como a realidade, que não pode ser demonizada. Não há como demonizar a Covid, então, não deu atenção a ela.
Talvez a Covid também tenha exposto as grandes diferenças sociais nos Estados Unidos.
Não acredito. Trump conseguiu converter as reações à Covid em símbolos e respostas do que é fascista e o que não é. Se você não usava máscara, mostrava que não tinha medo. Há um elemento de machismo nessa negação. Quero dizer, a maioria dos estadunidenses não quer morrer. Inclusive os republicanos não querem morrer, mas ele dividiu o país em dois. Temos este elemento fascista em 45% da população e em 45% não existe. O que há no meio determina como será a relação entre todos, e isso continuará sendo assim, mesmo depois que a Covid se for. É endêmico.
Existe uma era Trump? Os historiadores falarão da era Trump?
Continuará até 20 de janeiro. Mas ele estará no exílio e não desaparecerá. A era Trump não é só de quatro anos, assim como Perón não desapareceu em seu país quando o deixou.
E quem são os ganhadores da era Trump?
Não sabemos ainda. Isto não será uma dinastia familiar, mas as pessoas como Hawley provavelmente poderão tomar a posição, assim como Ted Cruz, que também falou em defesa de Trump e pode continuar com isto. E são senadores, quer dizer que estarão em seu cargo por um longo prazo... Penso que se trata de uma mudança estrutural profunda, não de algo temporário, que tenha a ver com a Covid ou com Trump como presidente bilionário que é. Penso que isso é muito superficial. Perdão por dar uma entrevista tão pessimista, mas sou estadunidense e estou muito preocupado com o que está acontecendo no país.
Qual é a situação do Partido Republicano? Poderá sobreviver a Trump?
Está dividido em dois. Uma parte é o partido conservador, linhas muito tradicionais, não são pessoas que talvez compartilhem minhas opiniões de esquerda sobre a economia ou nada disso, mas são pessoas decentes e comuns. E uma parte que sempre esteve aí, foi mobilizada para esta forma abertamente fascista. E isso irá dividir o Partido Republicano em dois. Minha preocupação é que, como sabemos, o fascismo não vá embora simplesmente por não ter um partido organizado, o que faz é criar novas formas de organização.
Trump se beneficiou de sua relação com a rede Fox News, por exemplo. E agora que a Fox News se afastou dele, está buscando novas maneiras de usar as redes sociais para mobilizar e organizar seus seguidores. E isso será assim para quem ocupar o lugar de Trump. Será outra organização política, mas a configuração será a mesma. Ou seja, são pessoas que são irreconciliáveis. E agora existe este argumento, essa ideia do punhal que lhes cravaram na costa por uma eleição roubada, e essa ideia os sustenta. Desculpe-me, é uma entrevista muito deprimente.
Não tem problema.
...
Emmanuel Macron se solidarizou, mostrou sua confiança na democracia estadunidense em se recuperar desta violência. Qual é a sua opinião sobre a qualidade da democracia em seu país?
Penso que é boa, mas está sob ameaça. Quero dizer, as instituições se mantêm. Não se pode assumir que como Trump foi vencido, as instituições se manterão, pois se recusam a acreditar na legitimidade das instituições. Sustentam coisas como a que as eleições são fraudulentas, quando não vencem. Logo, devem ser fraudulentas.
É preciso fazer um trabalho de desnazificação ou desfascilização para que as pessoas se sintam envergonhadas em ter estas opiniões, em vez de confirmá-las. E temos que encontrar uma forma para que as pessoas sintam vergonha de sentir coisas assim, e isso não ocorrerá com retórica política. Pode ser que venha das igrejas, por exemplo, pode ser que venha de grupos comunitários, mas não acontecerá com o amedrontamento ideológico. É preciso ir mais fundo.
Quando há uma mudança de crença, precisa vir de uma experiência na vida. Conheço algumas destas pessoas e os únicos sinais que dão é quando me falam de como o sistema é horrível, etc. No meu caso, preocupa-me em meu papel de ser avô e do que quero para meus netos. Algo muito simples, o que quero é que respeitem a outras pessoas, não quero que sejam egoístas, quero que tenham certo respeito a si mesmos, sem vaidade. É uma maneira diferente de entrar na vida das pessoas, e temos que encontrá-la.
Quem é o principal inimigo de Trump? Os jovens, os meios de comunicação, os nova-iorquinos, os democratas...
Vamos ver... Em sua cabeça, todos eles são inimigos. Diria que, ao final, seu principal inimigo poderão ser as redes sociais. E isto acaba de começar. Foi expulso das redes sociais e entrou na dark web. Ele depende de poder se manter em primeiro plano, dizendo coisas indignantes no Twitter. Não mais, mas governou por meio do Twitter. Agora, quase não tem mais acesso às redes sociais. Por sua vez, a Fox News não o acompanhou até o final de sua presidência, parou de se interessar nele.
Trump precisa sempre se fazer presente fazendo algo indignante. Quando era um operador imobiliário em Nova York, o único modo como conseguia as coisas era fazendo um drama de si mesmo na imprensa local, demonizando os outros. Então, acredito que caso perca o acesso às redes sociais de massa, de modo definitivo, terá um grande problema pessoal.
Quais são suas expectativas em relação à presidência de Joe Biden?
Muito boas. Penso que é muito bom. Acredito que é um político sensível e razoável e se cercou de pessoas muito competentes, por isso minhas expectativas são boas.
Como passou o tempo da pandemia, permaneceu escrevendo, tocando violoncelo?
Comecei a ir mais devagar. Estou buscando escrever um livro, e se escrevo duas páginas por dia, é um bom dia. Não sei por qual razão, minha vida sempre esteve equilibrada entre estar fora de casa e estar dentro. E por causa de minha idade, agora estou confinado em casa, legalmente. Então, toco violoncelo, toco piano, mas comecei a ir mais devagar, porque não posso sair. De qualquer modo, sobreviverei, receberei a vacina logo e, para mim, isso será a liberdade. Vão me deixar sair.
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“A Alemanha se ‘desnazificou’, agora é preciso ‘destrumpificar’ os Estados Unidos”. Entrevista com Richard Sennett - Instituto Humanitas Unisinos - IHU