02 Dezembro 2020
Conheci o rabino Benedetto Carucci Viterbi durante o longo trabalho sobre a memória que durante anos realizamos com a Comunidade Judaica de Roma. Carucci é reitor da escola judaica Renzo Levi, em Roma, coordenador do colégio rabínico italiano, professor de pensamento judaico no curso universitário em estudos judaicos da UCEI. Para além dos títulos, é um homem aberto e profundo, que sabe escolher as palavras, que não frequenta a banalidade, que conhece o caminho humano. Já há tempo suas palavras têm um valor muito particular para mim.
A entrevista é de Walter Veltroni, publicada por Corriere della Sera, 01-12-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Rav. Carucci, o que você acha que está acontecendo no coração dos homens como resultado da pandemia?
No ânimo dos homens parece-me ser possível discernir confusão, medo do futuro, desorientação: uma sensação de termos sido exilados de uma realidade conhecida para outra desconhecida e inesperada. É uma condição nova, na qual os parâmetros certos e os pontos de referência parecem ter desaparecido. Ou, no mínimo, parece ter desaparecido aquela certeza no domínio - da própria vida, do mundo, da natureza - que parecia adquirida, com uma boa dose de presunção, até às vésperas da pandemia. O homem se descobriu muito mais frágil do que pensava, e isso me parece, afinal, um resultado não inteiramente negativo. A fragilidade humana é portadora de reflexão e pode nos propiciar um olhar diferente sobre a vida: reconhecê-la nos permite compreender a existência de uma perspectiva mais saudável e nos abre para a capacidade de transformação. A aparente solidez anterior à pandemia era o grande autoengano de que tudo está seguro, tudo é compreensível, tudo está em seu lugar; e se não estiver, certamente seremos capazes de arrumar tudo. Mas recompor os fragmentos da frágil realidade exige paciência e empenho, não certezas.
Como mudou a relação com o outro?
Parece-me que mudou em duas direções iguais e opostas já no lockdown de março. Por um lado, tivemos de nos habituar a uma espécie de rarefação dos espaços, a uma distância vazia entre as pessoas: uma distância forçada, uma ausência de corpo que se relaciona. Por outro lado, vivemos, da mesma forma forçada, uma proximidade dentro dos limites de nossas casas - com fronteiras reduzidas - com nossas famílias: os mais próximos dos próximos. Aqueles que estavam próximos de nós, fora da família, tornaram-se distantes; quem estava longe, mesmo que familiar, tornou-se próximo novamente. Do espaço aberto próprio dos lugares das relações sociais, que muitas vezes se tornaram quase uma moradia, fomos exilados para dentro de casa: um paradoxo que a tradição judaica vive há milênios: ser estrangeiros na própria casa. Portanto, tivemos que redefinir a distância e a proximidade.
Parafraseando o título de um livro de Magris - que retoma uma história iídiche – pode-se dizer que tivemos que responder à pergunta, talvez retórica, longe de quem? Nós já estivemos realmente próximos do outro?
A esse respeito, lembro-me de uma formidável interpretação rabínica da criação, segundo a qual o ser humano, originalmente, tinha duas faces e era andrógino: dois seres em um, presos pelas costas em uma proximidade absoluta e indiferenciada. Homem e mulher - a diferença - nascem com distância e distanciamento, que facilita o processo de identificação. Talvez o distanciamento, na primeira fase desta pandemia, tenha nos ajudado a entender melhor quem somos e nos forçou a redefinir mais profundamente o sentido das relações. Temo que nesta segunda fase, mais crítica, menos tolerante e reflexiva, o processo de identificação se transforme em uma deriva identitária exclusiva e excludente: passamos do canto coletivo sincronizado à desconfiança do próximo.
E aquela com o tempo?
Mais uma vez, vejo uma diferença entre a primeira e a segunda ondas pandêmicas. Em março, e durante o período de confinamento, a condição de suspensão temporal em que vivíamos me lembrou várias vezes uma espécie de Shabat/sábado prolongado. Na tradição e prática judaica, o Shabat/sábado é outro tempo, fora da sucessão cronológica dos dias da semana: os mestres do Talmud o identificam como um sexagésimo de mundo futuro, um sexagésimo de eternidade. Um tempo sem ontem e sem amanhã, um presente absoluto e pontual. Pois bem: o lockdown, pelo menos para aqueles que não tiveram que lidar diretamente com as tragédias do contágio, nos colocou em um presente de profundidade infinita. Sim, esperamos o fim da fase aguda, talvez esperamos a coletiva de imprensa às 18h todos os dias, mas também tivemos a oportunidade de retomar uma relação mais relaxada com o tempo, menos frenética: pudemos aproveitá-lo em si e não só explorá-lo sem descanso. Agora retornamos no tempo de trabalho, num frenesi que talvez gire em torno de si mesmo, para muitos com a angustiada sensação de uma ausência de perspectiva para o futuro: a passagem é do tempo sem dimensões para aquele circular com a ilusão de ser linear.
Os judeus, e não só eles, tiveram, com Auschwitz, de enfrentar a questão sobre a justiça de Deus. Em condições históricas completamente diferentes, não parece que está retornando a mesma questão, quando se pensa nos idosos que morrem sozinhos? Deus e as ações dos homens ... Jogar a culpa em Deus é fácil para os homens, um álibi gigantesco ...
O terreno é decididamente escorregadio, inclusive pela impossibilidade de comparar o incomparável. Mas permanece o grande tema da relação entre Deus e o homem e a constante tentativa de compreender o plano de justiça de Deus. Acho que a verdadeira pergunta nunca seja onde está Deus nos acontecimentos humanos, mas sim onde está o homem nos acontecimentos humanos. É ao homem - que saiu em sua origem do jardim do Éden e da condição paradisíaca privilegiada - que é dada a possibilidade e o dever de enfrentar o que lhe acontece e encontrar as chaves e as formas para tentar evitar a dor, as catástrofes - mesmo as naturais – as dificuldades.
A introdução de Deus no sofrimento humano lembra a reação de Adão quando Deus o censura por ter comido do fruto da árvore do conhecimento: "Foi a mulher que puseste ao meu lado que me seduziu e eu comi". O homem recém-nascido, mas já adulto, não está em condições de assumir a responsabilidade pelos seus atos e assumir o seu sentido: coloca sobre Deus o fardo da culpa, primeiro e último culpado de tudo.
A morte na solidão de todos, que testemunhamos de longe nestes meses tão difíceis, não é tanto o produto da justiça e da injustiça divina, mas da incapacidade de pensar as relações, de prever e encontrar abordagens concretas, imagináveis e possíveis para os momentos críticos e para os sofrimentos: não se trata de Deus, mas de nós, homens.
A ciência pode ser suficiente para enfrentar esta catástrofe?
Penso que a ciência tem um papel fundamental, mas não exclusivo: nada basta por si só. Estes últimos meses nos ensinaram que sem um trabalho comum, sem convergência entre disciplinas, campos do saber e estratégias concretas, não há saída para as emergências e nem as catástrofes podem ser enfrentadas. Para reverter as situações, em linha com a etimologia da catástrofe, é sempre necessário um esforço de colaboração... .
Como empenhar o tempo disponibilizado pelo isolamento?
Dedique-se um pouco ao silêncio, que é a forma privilegiada de expressar a aceitação dos acontecimentos. Isso não significa não intervir para melhorar as situações e tentar mudá-las, mas sim dar-se um espaço de reflexão para compreender o sentido dos fatos das nossas vidas, mesmo os mais dolorosos e difíceis. Em um ponto central da Torá, após a morte repentina e dramática de seus filhos, Arão, o irmão de Moisés, fica em silêncio. Vaidom, em hebraico, é o silêncio petrificado de matéria inerte e inanimada. Dedicar parte do tempo a essa condição, não ser imediatamente levado pelo desejo de resposta, pelo "mas" opositor que surge instantaneamente em nossos lábios, pode ser uma boa maneira de sair da inércia para uma ação significativa para consigo mesmo e para com os outros. E depois a ler, que multiplica as vidas que podemos viver.
O outro é o inimigo, o risco?
O outro não é o inimigo, é ele quem ajuda a me definir: sem o tu da relação não há um eu completo. Na história bíblica, 'ish, homem, só aparece depois de 'ishah, mulher: o homem consegue dizer que é homem, apenas quando vê a outra à sua frente. Sem alteridade ainda não há identidade pessoal: é no limite do rosto alheio, irredutível ao meu, que compreendo que sou e tenho uma fronteira que me identifica. Os mestres da tradição rabínica ressaltam o risco de uma deriva delirante na unicidade do Adão original: o ser humano recém-criado, ainda não dividido em seus dois componentes, foi confundido pelos outros seres vivos como um deus na terra. E talvez ele pudesse pensar que o era. A dualidade da relação salva da pretensão de ser como deuses, da egolatria que é a origem primeira da idolatria. “Não é bom para o homem ficar sozinho”, diz Deus ao se preparar para criar a mulher: Gosto de traduzir levaddò como “exclusivo” em vez de “sozinho”. A ausência do outro ao seu lado, ou melhor ainda à sua frente, gera a ideia de exclusividade no homem e abre as portas para a exclusão. Nesse sentido, a alteridade absoluta de Deus, que por outro lado está em constante relação com o homem, torna-se um fator determinante para este último. Alteridade e relação, longe de estarem em contradição, são gêmeas siamesas.
Existe um risco para a democracia em tempos de decisões vindas de cima?
O vírus deste risco é generalizado, mas estamos vacinados. O efeito da imunidade, que nunca é absolutamente garantido, nos permite certa cobertura contra o contágio. As instituições democráticas, o equilíbrio dos poderes, a atenção crítica e envolvida de cada um de nós parecem-me antídotos suficientes.
Qual é a normalidade que nos falta hoje?
É ver a boca dos outros que, mais do que os olhos - hoje em todo o caso meio encobertos - é a porta para perceber os seus sentimentos e reações: a meia face, que nos deixa mascarados, não permite aquele reconhecimento que está na base de qualquer relação. É apertar a mão e abraçar: ações que expressam um pedido e um dom de afeto, mas que, acima de tudo, dão a força de que sempre precisamos. É passear sem rumo pelas ruas e praças à noite. É imaginar um futuro, mesmo imediato, possível e vivível.
Será que "tudo vai ficar bem" foi apenas uma pia ilusão?
Foi uma pia ilusão, como todos os slogans que simplificam; ou a fórmula inutilmente e falsamente tranquilizadora que é dita a um paciente prestes a entrar na sala de cirurgia. Ou, ainda, uma expressão de onipotência presunçosa. A assertividade e a falta de dúvida prejudicam o sentido e a eficácia das palavras. Teria sido melhor, parafraseando o título de um livro de alguns anos atrás tirado de um tema de uma criança: ‘Esperamos que todos fiquem bem’.
Redes sociais e abertura para o outro. Para você, parecem um estímulo ou uma gaiola?
Podem ser uma vitrine que permite a exposição de si, mas engaiola e não é atravessável, como todas as vitrines que fecham um espaço. Mas são um canal de comunicação poderoso, sempre aberto e disponível: na minha experiência diária com os estudantes, têm sido ferramentas preciosas de contato neste longo período de distância física. As redes sociais não a garantem, mas permitem que os laços sejam mantidos, permitem a continuação de um diálogo presencial interrompido, mas nunca morto, oferecem ideias para repensar o sentido da troca de ideias e opiniões. Zoom, nome de uma das plataformas mais utilizadas no ensino à distância, parece-me uma boa metáfora para essa distância próxima ou proximidade distante que as redes sociais nos permitiram: não é o ideal - há uma tela que nos devolve a nossa imagem antes mesmo que a dos outros - mas é uma forma de comunicação.
O que é solidão em sua cultura?
O judaísmo funda-se em princípio na dimensão coletiva. As celebrações só são possíveis com a presença de pelo menos dez pessoas e, portanto, a própria vida religiosa parece estar ligada à coletividade: a própria oração - uma experiência íntima por excelência - é sempre recitada na primeira pessoa do plural e nunca no singular. Na Torá, superada a época dos patriarcas - grandes individualidades - os judeus são "os filhos de Israel", sempre no plural: o povo se move em massa e acampa; o povo que ao pé do Sinai ouve as dez palavras.
Por outro lado, a condição do homem de fé é de profunda solidão, especialmente no contexto do mundo contemporâneo, secularizado e centrado na prevalência da dimensão material. Veja, o homem de fé, de acordo com a ideia de Rav Joseph Dov Soloveitchik, nunca está sozinho, mas é ontologicamente sozinho: Abraão, Isaac e Jacó estiveram sós nos momentos constitutivos de sua existência; Moisés era só ; é só o crente de cada geração: uma solidão especular à do próprio Deus, com quem se abre a possibilidade do encontro. Em uma imagem muito poderosa do midrash, a exegese rabínica tradicional, Deus e Moisés, no topo do monte onde o Uno desceu e o outro subiu, estudam juntos, conversam, falam e se escutam reciprocamente.
O desafio a ser jogado não é transformar a solidão em individualismo: o ensinamento mais conhecido de um grande mestre da tradição rabínica clássica, Hillel, afirma: ‘Se eu não sou para mim, quem é para mim? Mas se sou só por mim, o que sou? E se não agora, quando?’. O primeiro movimento humano, que só pode ser na solidão, é na direção de si mesmo. Mas este é apenas o primeiro passo do percurso: o sucessivo, necessário, é abrir-se para o outro, sob pena da transformação de um quem em um que. E a cada momento, com urgência, é bom realizar esses dois passos.
É possível viver sem esperança?
O rabino Nachman de Breslav costumava dizer que ‘o mundo é uma ponte muito estreita, o importante é não ter medo’. Acho que isso nos ajuda a ser lúcidos ao olhar para a realidade sem nos enganar. O mundo não é uma via expressa com trânsito livre: é um espaço estreito, uma ponte sobre o abismo sobre a qual devemos caminhar com cuidado, mas sem medo.
A jornada talvez seja o próprio objetivo: é a capacidade de se mover, mudar, caminhar também com os outros, seguir em frente. Não se pode viver sem esperança, mas não se pode viver só de esperança: uma das declarações de fé de Maimônides, inserida na oração cotidiana, afirma: ‘Creio com fé na vinda do Messias, e mesmo que demore, esperarei por sua vinda a cada dia’.
A espera, que nas Teses de filosofia da história de Benjamin é a porta pela qual a palingênese pode irromper a qualquer momento, seja qual for o caráter que queiramos lhe dar, não é uma espera vazia: é o tempo do empenho do homem para se aproximar dela, é uma esperança pró-ativa.
A passagem da Torá que lhe parece mais adequada para este momento.
O primeiro versículo do Levítico, aparentemente apenas informativo: ‘E o Senhor chamou a Moisés e falou com ele da tenda da congregação, dizendo’. Nessas poucas palavras está toda a força e a necessidade de nos encontrarmos intencionalmente e individualmente. A exegese midráshica enfatiza que Deus sempre chamava Moisés pelo nome antes de falar com ele e lhe deixava, entre um contato e outro, uma pausa para reflexão: a comunicação é delicadamente preanunciada, dirigida, não genérica, não palavras vazias; e precisa de seus tempos de decantação. O encontro é um ato voluntário, generoso e de proximidade, não casual: é sempre um encontro marcado. Moisés aguarda pacientemente o chamado fora da tenda da reunião, aquele tabernáculo / santuário que acabou de erigir: não se impõe, não pretende, não comparece a todo custo. O homem se torna ser vivente, no relato do Gênesis, quando Deus insufla nele o espírito da vida: a versão aramaica do texto traduz "ser vivente" com "espírito que fala". Antes mesmo de pensar, o homem é dotado de palavra: é esta que determina sua humanidade como instrumento de relação. Devemos trabalhar para reconstruí-la – longe de qualquer assertividade violenta – em modalidade atenta, gentil e atenciosa.
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“Sentir-nos frágeis nos ajudará, no final, a redescobrir os outros”. Entrevista com o rabino Benedetto Carucci Viterbi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU