É densa a argumentação com a qual o filósofo e teólogo francês Loïc de Kerimel aborda a raiz doente do clericalismo eclesiástico no seu livro “En finir avec le cléricalisme” [Acabar com o clericalismo] (Seuil, 2020).
O comentário é de Andrea Lebra, leigo católico italiano, em artigo publicado por Settimana News, 23-11-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É um livro que está obtendo um considerável sucesso na França. Ele aborda de frente e de forma meticulosa e documentada uma das questões particularmente caras ao Papa Francisco: como prevenir, combater e superar na Igreja aquele “mal feio que tem raízes antigas” (meditação matinal de 13 de dezembro de 2016), constituído pelo clericalismo, “modo anômalo de entender a autoridade na Igreja” e “atitude que não só anula a personalidade dos cristãos, mas também tende a diminuir e a subestimar a graça batismal” posta pelo Espírito Santo no seu coração (Carta ao Povo de Deus de 20 de agosto de 2018).
O livro intitula-se “En finir avec le cléricalisme”. Foi escrito por Loïc de Kerimel, pai de quatro filhos e avô de seis netos, irmão do bispo de Grenoble-Vienne, Guy de Kerimel, apreciado professor de filosofia por quase 30 anos em um colégio de Le Mans, teólogo perspicaz, assíduo leitor das obras de um dos mais renomados teólogos franceses, o jesuíta Joseph Moingt, que morreu com mais de 100 anos no dia 28 de julho de 2020.
Cofundador da associação Chrétiens en Marche, por uma presença ativa e responsável do laicato na Igreja, particularmente comprometido no âmbito da Conférence Catholique des Baptisé-es Francophones, por uma reforma profunda da Igreja, Loïc de Kerimel também tem um papel particularmente ativo no Amitié Judéo-Chrétienne de France, uma associação que visa a favorecer o diálogo entre cristãos e judeus.
Precedido por um belo prefácio de Jean-Louis Schlegel, redator da revista Esprit, a revista fundada em 1932 por Emmanuel Mounier, “En finir avec le cléricalisme” tem o mérito de ir às raízes teóricas e culturais do clericalismo, uma doença crônica de que padece o cristianismo desde o fim do segundo século da era cristã. Publicado em abril de 2020, logo após a morte prematura do autor, ele pode ser considerado como um testamento espiritual dele.
A intenção de Loïc de Kerimel não é tanto estigmatizar as formas desviantes de clericalismo na Igreja que desembocaram – como afirmou o Papa Francisco na Carta ao Povo de Deus de 20 de agosto de 2018 – nos abusos sexuais, de poder e de consciência, mas sim de evidenciar o seu caráter sistêmico.
Este último é identificado pelo autor no fato de terem sido introduzidas e reiteradas no seio do “povo de Deus” as categorias da separação (clero/leigos, homens/mulheres, puro/impuro), da hierarquização (bispos/presbíteros/diáconos/religiosos/fiéis), da marginalização da mulher e da sacralização de uma pessoa mediante a imposição das mãos, que cria as condições para se sentir parte de uma casta (a “sacerdotal”), detentora de competências e de atribuições exclusivas e excludentes.
O caráter sistêmico daquilo que o Papa Francisco denuncia como “um modo não evangélico” de conceber o papel eclesial do presbítero (discurso de 6 de outubro de 2018 aos peregrinos da Igreja Greco-Católica Eslovaca), ou como “uma caricatura e uma perversão do ministério” do bispo (discurso de 24 de janeiro de 2019 aos bispos da América Central), ou ainda como “um perigo do qual os diáconos também devem se resguardar” (discurso de 25 de março de 2017 aos padres e consagrados por ocasião da visita apostólica a Milão), é examinado percorrendo, primeiro, a história dos primeiros séculos da Igreja.
Segundo Loïc de Kerimel, na origem do clericalismo, há um processo de sacralização da função do presbitério, que, a partir do fim do século III, a Igreja nascente tomou emprestada das estruturas centralizadoras da tribo judaica dos levitas. A classe sacerdotal constituiria uma casta depositária dos poderes divinos, implicando uma diferença não apenas de grau, mas também de natureza entre o clero e os leigos. No que diz respeito à generalidade das pessoas batizadas, o clero seria depositário de uma superioridade religiosa derivada do sacramento da ordem.
Paradoxalmente, enquanto a religião judaica, com a substituição do templo pela sinagoga, do rabinato pelo sacerdócio e do sistema sacrificial pelo estudo da Torá, se encontra, de fato, após a destruição do Templo em 70 d.C., dessacralizada e dessacerdotalizada, a Igreja se estrutura de acordo com categorias levíticas, como a instituição do sumo sacerdote (ou seja, do bispo), a distinção sacerdotes/leigos, a exclusão das mulheres, a concepção sacrificial do culto e a reintrodução do “espaço sagrado” inteiramente dedicado a ele e acessível apenas ao clero.
A esse respeito, o autor cita a fórmula lapidar utilizada por Joseph Moingt na sua obra “Esprit, Église et monde: de la foi critique à la foi qui agit” (Paris: Éditions Gallimard, 2016, p. 216): o Antigo Testamento fundado na lei superou o Novo fundado no amor recíproco (p. 29).
São 15 os capítulos do livro distribuídos em três partes. A primeira (capítulos 1 a 6) examina o nascimento do “sistema clerical”, em contraste com o ensino de Jesus e com a vida das primeiras comunidades cristãs. O elemento mais problemático do processo que, ao longo da história, afetou o ministério ordenado – vivido concretamente hoje nos distintos papéis do bispo, do presbítero e do diácono – é a assunção de um forte caráter sacral e sacerdotal, que no início lhe era completamente estranho.
É significativo que os escritos neotestamentários, inclusive os apócrifos, concordam em atribuir a Jesus uma linhagem genealógica que não tem nada a ver com a tribo de Levi, excluindo-o assim na raiz do pertencimento à classe sacerdotal.
Com respeito a Jesus – e aos seus apóstolos – os Evangelhos nunca falam de sacerdócio. São muitos os títulos atribuídos a ele (Mestre, Profeta, Filho de Davi, Filho do homem, Messias, Senhor, Filho de Deus), mas nunca o de Sacerdote ou de Sumo Sacerdote (p. 45).
“Lendo os textos das origens cristãs, pode-se perceber que nenhum apóstolo e nenhuma outra pessoa se separa da comunidade em virtude de um caráter sagrado, ou se comporta como ministro de um culto novo ou realiza atos especificamente rituais. Pode-se observar que não há nenhuma distinção entre pessoas consagradas e não consagradas (…). Não há espaços ocupados por uma instituição sacerdotal”. Quem escreve isso é Joseph Moingt (em: “Dieu qui vient à l’homme”, t. 2/2, Paris: Les Éditions du Cerf, 2008, p. 842), o teólogo muitas vezes citado por Loïc de Kerimel.
O que é indelével no âmbito do “santo povo fiel de Deus” – escreve o autor – é a condição comum dos batizados e das batizadas à qual tudo, inclusive o exercício da autoridade, está subordinado (p. 41).
É o que emerge a partir das Escrituras, e foi o que o Concílio Vaticano II afirmou com autoridade: antes do ministério ordenado, isto é, antes do “sacerdócio ministerial” do bispo, do presbítero e do diácono, existe a condição comum de todos os fiéis em virtude do batismo, significativamente definida como “sacerdócio comum”. E é isso que, infelizmente, em nível prático e generalizado, por enquanto, não parece ter sido recebido pela Igreja, mesmo que seja um bom presságio a insistência do Papa Francisco em colocar novamente no centro o batismo como base inevitável da vida cristã.
Em outras palavras, no que se refere ao presbiterado, é do batismo que se origina não o “poder” sobre uma comunidade de fiéis, mas sim o “serviço” a ela. O sacramento da ordem não sacraliza a pessoa sobre a qual são impostas as mãos, mas radicaliza a sua vocação batismal.
Na segunda parte do seu ensaio (capítulos 7 a 11), o autor se detém sobre a evolução e o fortalecimento do sistema clerical ao longo da história da Igreja.
Estigmatizando as ligações entre a violência e o sagrado a partir dos estudos de René Girard (p. 143), ele relê a Reforma de Lutero e o Concílio de Trento, que enfatizou a dimensão sacrificial da eucaristia e a sacralidade da figura do padre, ofuscando decisivamente a centralidade do fundamento batismal que une todos os fiéis.
Quanto aos nossos tempos, ele não esconde a sua decepção com a presença do fenômeno da reclericalização galopante presente em alguns âmbitos eclesiais e que parece interessar sobretudo aos “padres da geração João Paulo II”, que alimentam a nostalgia “de um sagrado englobante, que exonera o indivíduo da responsabilidade de viver e de pensar” (p. 197).
Isso o leva a reconhecer que o sistema clerical ainda parece ter um futuro decididamente duradouro, até porque quem deseja padres clericais são famílias numerosas e poderosas de afiliados pertencentes principalmente a categorias socioprofissionais elevadas (p. 198).
Na terceira parte (capítulos 12 a 15), Loïc de Kerimel tenta responder à pergunta sobre se hoje é possível, por parte da Igreja, sair do clericalismo, concretizando o ideal crístico (p. 64) da igualdade de todas as pessoas batizadas em razão da mesma dignidade cristã proclamada certamente pelo Concílio Vaticano II, mas de modo não totalmente isento de mal-entendidos.
A esse respeito, o autor cita Gilles Routhier, um dos mais renomados historiadores do Concílio Vaticano II, que considera que, há 50 anos do Vaticano II, a perspectiva decididamente revolucionária de considerar o tema do “povo de Deus” como uma prioridade em relação à constituição hierárquica da Igreja permaneceu no nível de um piedoso desejo.
Em particular, quanto à imagem do ministro ordenado, o professor canadense de eclesiologia acredita que o Concílio se viu diante de duas perspectivas: uma, tradicional, que parte da noção de sacerdote – no modelo do “sacrificador” das religiões tradicionais, do grego hiéreus e do hebraico cohen –; a outra, atestada no Novo Testamento, baseada na ideia do presbiterado – o estatuto do idoso, do homem (ou da mulher?) que, pela experiência amadurecida, é capaz de exercer a arte do discernimento e de contribuir para resolver conflitos, demonstrando assim que tem o título para cuidar da comunidade que lhe foi confiada, para dar a sua própria contribuição para a vida dos fiéis em um serviço generoso e apaixonado, para presidir o culto.
Segundo Gilles Routhier, o Concílio escolheu a segunda perspectiva e, consequentemente, utiliza o termo “presbítero”, enquanto o Concílio de Trento usa o de “sacerdote”.
Citando, depois, Yves Congar, Routhier acrescenta que não só o termo sacerdote não é bíblico, mas que ele também privilegia indevidamente, entre as três funções atribuídas a Cristo (sacerdotal, profética, real), a sacerdotal em detrimento das outras duas.
Tratando-se de presbíteros, o seu ministério sacerdotal, isto é, a celebração da eucaristia e dos sacramentos, é apenas uma das dimensões do seu ministério sacerdotal. Este último é, em primeiro lugar, ministério da evangelização e do governo. A celebração da eucaristia não monopoliza a definição de quem é e do que faz o padre (p. 204).
O reconhecimento – quanto à nacionalidade, condição social ou sexo – da “igual dignidade em Cristo e na Igreja” (Lumen gentium 32, comentando Gl 3,28) das pessoas batizadas e o consequente fim da “dominação masculina” constituem a condição sine qua non tanto da possibilidade de saída da crise que assola a Igreja depois dos escândalos em matéria de abusos sexuais, de poder e de consciência, quanto mais simplesmente da fidelidade ao Evangelho (p. 229).
A radical igualdade de todos os membros do “povo de Deus” sem discriminação de nação, de condição social ou de sexo não anula as diferenças de funções, mas faz com que o exercício destas últimas não gere cisões no corpo eclesial, afaste toda forma desviante de autoritarismo e, ao mesmo tempo, valorize diversidades e complementaridades dos carismas (cf. 1Cor 12) a serviço do bem comum (p. 257).
Sobretudo, “só será possível falar – afirma o autor – de saída do sistema clerical no dia em que nenhuma mulher for impedida de exercer as funções de governo, de ensino e de culto” reservadas hoje aos homens. Mas ele também acrescenta que, antes de pensar em abrir às mulheres a possibilidade de acesso ao ministério presbiteral, é preciso dessacralizá-lo e dessacerdotizá-lo, evitando estruturá-lo segundo uma ordem hierárquica rígida e discriminatória (p. 241).
Pôr fim à exclusão das mulheres devida ao sistema clerical demonstraria realmente que, com Jesus de Nazaré, passamos do sagrado ao santo, de uma concepção elitista de salvação à convicção de que Deus se doa imediatamente a todos e a todas sem excluir ninguém (p. 244).