06 Março 2020
“O que se faz e o que se diz nas igrejas interessa cada dia menos à maioria das pessoas. Cada dia também diminui o número de padres. Ademais, segundo as leis eclesiásticas, unicamente podem ser ordenados padres os homens (não as mulheres) e, ademais, devem ser homens solteiros [...] Pode a autoridade eclesiástica suprimir a lei do celibato eclesiástico e permitir que as mulheres presidam a eucaristia? Para responder devidamente a essa pergunta, é inteiramente necessário responder antes a outra questão: no governo da Igreja o pensamento dos gregos deve ser mais determinante que os ensinamentos do Evangelho? Por que não temos a liberdade e a audácia de dar a esse assunto a devida resposta?”, escreve José María Castillo, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 03-03-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Um dos perigos mais graves e ameaçadores que há de imediato na fé em Jesus e seu Evangelho é o integrismo clerical. Porque este se empenha em nos convencer de que há determinadas questões que são “problemas de fé”, que têm enorme importância, quando na realidade não são “dogmas da fé”. Nem tem por que “atingir nossa fé”. Pois o clericalismo integrista se aferra a costumes e práticas da Antiguidade, que os homens do clero nos apresentam como verdades de fé, quando na realidade não são. E o que é pior, não somente se trata de coisas que não pertencem à fé, mas sim que ademais, atingem os que querem crer em Deus e ser bons cristãos.
Materializando esse assunto: em vez de falar de “problemas”, no plural, teríamos que falar do “problema” que tem que enfrentar e resolver a Igreja o quanto antes possível. Refiro-me ao enorme problema que representa o desinteresse pelo “fato religioso”, que vai aumentando sobretudo nos países mais industrializados. Cada dia as igrejas estão mais vazias. O que se faz e o que se diz nas igrejas interessa cada dia menos à maioria das pessoas. Cada dia também diminui o número de padres. Ademais, segundo as leis eclesiásticas, unicamente podem ser ordenados padres os homens (não as mulheres) e ademais, devem ser homens solteiros.
Sendo assim, estamos realmente seguros de que Jesus, o Senhor, quando iniciou a origem da Igreja, quis e estabeleceu que nesta Igreja não se poderia celebrar a eucaristia a não ser quando pudesse presidir a celebração um homem e nunca uma mulher? Ainda, estamos também seguros de que o celebrante tinha de ser solteiro?
De nada disso temos constância. Dos apóstolos de Jesus, sabemos que estavam casados e ainda que afirmavam o direito a viajar com suas esposas (1 Cor 9, 4-5; cf. 1 Cor 7, 3. 4. 5. 10-11. 12-14. 16) (cf. AGUIRRE, Rafael. Del movimiento de Jesús a la Iglesia cristiana. Estella, Espanha: Verbo Divino, 2009). Também se sabe que, nas cartas pastorais, não somente se permite, como também se exige, que um pretensor a ser dirigente da Igreja esteja casado e eduque bem os seus filhos porque “quem não sabe governar sua própria casa, cuidar bem da casa de Deus?” (1 Tim 3, 2-5. 12; Tit 1, 6).
E quanto às mulheres, o mesmo professor Rafael Aguirre demonstrou que “no movimento cristão missionário encontramos muitas mulheres e muito ativas. Aparecem, às vezes, colaborando em pé de igualdade com Paulo, ensinando como missionárias itinerantes, são designadas apóstolas, diáconas, protetoras ou dirigentes”. Algo que era normal na sociedade e na cultura da Roma antiga. O professor Robert C. Knapp resume suas pesquisas dizendo: “Aportei numerosas provas do papel ativo das mulheres em suas próprias vidas, nas vidas de seus familiares e na vida fora do âmbito familiar, incluindo contratos comerciais, propriedade e gestão de terras e atividades sociais e religiosas públicas” (Los olvidados de Roma. Madrid: Ariel, 2015).
Na religião de Israel, jamais se rechaçou o matrimônio dos padres. E no que se refere ao sacerdócio das mulheres, na religião mais antiga que se conhece, a religião da Mesopotâmia (séc. IV, a.C.), os ministros do culto eram tanto os homens quanto as mulheres (BOTTÉRO, Jean. La religión más Antígua: Mesopotamia. Madrid: Trotta, 2001).
O puritanismo, com todas suas implicações, introduziu-se na Igreja a partir do século IV. Em que se justificou esse puritanismo? Certamente não foi no Evangelho, que nunca tratou o tema da sexualidade. Sabe-se que o puritanismo, que marcou o pensamento medieval, teve suas origens nos séculos IV e V (a.C.) em Pitágoras e Empédocles, que tomaram essas ideias dos xamãs do Norte da Europa (cf. DODDS, Eric Robertson. Los griegos y lo irracional. Madrid: Alianza, 2001). Nos séculos I a VII, essas ideias foram assimiladas lentamente pelos cristãos (GRYSON, Roger. Les origines du célibat ecclédiastique du premieres au septième siècle. Gemblous, Ed. Duclout, 1970). Ou seja, o celibato não tem sua origem na Bíblia, menos ainda no Evangelho. Como tampouco no Evangelho se pode fundamentar a marginalização da mulher, seja na sociedade ou na Igreja.
Então, pode a autoridade eclesiástica suprimir a lei do celibato eclesiástico e permitir que as mulheres presidam a eucaristia? Para responder devidamente a essa pergunta, é inteiramente necessário responder antes a outra questão: no governo da Igreja o pensamento dos gregos deve ser mais determinante que os ensinamentos do Evangelho? Por que não temos a liberdade e a audácia de dar a esse assunto a devida resposta?
É possível que existam cristãos e clérigos, inclusive mais concretamente, que têm o convencimento de que a doutrina sobre os sacramentos ficou fechada e definitivamente afirmada no concílio de Trento (Ses. VII. Denz-Hün. Nºs 1600-1613). No entanto, é preciso saber que isso não é assim. Porque, ao trato o tema dos sacramentos, os bispos e teólogos do concílio de Trento discutiram se o que debatiam eram “erros” ou “heresias”. E as opiniões dos “padres conciliares” dividiram-se de tal forma, que não puderam chegar a um acordo, como consta amplamente no volume V das Atas do Concílio. Portanto, não é doutrina da fé que os sacramentos da Igreja sejam o que são e tenham que se celebrar como se celebram.
Dado isso, se os sacramentos são para o bem dos fiéis cristãos, é um dever da autoridade da Igreja legislar e celebrar os sacramentos de maneira que todos os crentes em Cristo – independentemente de onde estejam e onde vivam – possam celebrá-los e participar neles, sobretudo na Eucaristia, ainda que, para isso, necessita-se que a celebração seja presidida por um padre casado ou por uma mulher ordenada para exercer o ministério sacerdotal. Isso é tão importante e tão urgente que aqueles que exercem a autoridade na Igreja têm a responsabilidade de fazer possível que não tenha nem uma paróquia, nem uma comunidade cristã, que não possa celebrar a eucaristia, pelo menos, uma vez por semana.
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“O clericalismo integrista ameaça a fé”. Artigo de José María Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU