04 Dezembro 2013
A Igreja não tinha e não tem mais os meios para a oposição às “legislações liberais”: na conjuntura atual a resistência intransigente corre o risco principalmente de afastar a sociedade e os indivíduos secularizados ainda mais da Igreja.
A opinião é do filósofo e sociólogo das religiões francês Jean-Louis Schlegel. Desde 2006 é conselheiro da Editora Seuil, particularmente no campo das ciências humanas, e trabalha na edição há mais de 20 anos. É membro da comissão diretiva da revista Esprit, de Paris, desde 1988.
O artigo foi publicado na revista Témoignage Chrétien, n. 3564, 28-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A partir dos anos 1960, uma nova configuração social e cultural se delineou, cujas palavras problemáticas eram e ainda são: individualismo, afirmação da subjetividade até a livre disponibilidade do próprio corpo, pluralismo, relativização, desejo de autorrealização, interrupção da tradição e da memória...
A sociedade do consumo permite a muitos a realização de inúmeros desejos materiais (e também espirituais!). Seria possível estender infinitamente a lista dos ingredientes da mudança: é preciso, pelo menos, lembrar o impacto das descobertas da pesquisa médica que muda radicalmente o dado do nascer, da procriação, da longevidade humana, do morrer; e também o papel das mídias, da internet, dos meios de comunicação, na vida cotidiana dos indivíduos e como filtro para toda informação...
Do ponto de vista político, essa nova situação se traduziu, nas democracias liberais, em particular em novos direitos concedidos aos indivíduos, por meio de "leis que permitem" (mais liberdade), estendidas a novas categorias de indivíduos (mais igualdade).
Evidentemente, as religiões, e mais particularmente a Igreja Católica, instituição solidamente estruturada, com uma doutrina, uma cultura e fortes tradições, no entanto, não ficaram indenes; foram marcadas e abaladas por uma "nova onda" de secularização. Além de forte refluxo nos números e na influência (também sob o pontificado totalmente na ofensiva de João Paulo II, a práticas religiosa continuou recuando), a própria Igreja Católica viu se desenvolver os fenômenos bem conhecidos que são a "religião à la carte", a crença sem pertença, a "bricolagem", o "zapping", a demanda (e muitas vezes a oferta) religiosa de terapias, de cuidado, de saúde para o corpo, não para além, mas para aquém, sem esquecer a crescente ignorância da tradição – e não somente junto aos mais jovens.
Os movimentos evangélicos de tipo pentecostal, porém, demonstraram que o corpo podia fazer parte da festa das religiões, por exemplo nas reuniões de oração e nas liturgias, ou também mediante a reabilitação, oficial e pública, do tema da cura, incluindo a milagrosa. Para melhor ou para pior, a Igreja Católica, embora pouco propensa a esse tipo de ritualidade, seguiu o movimento, sobretudo durante as grandes assembleias (como as Jornadas Mundiais da Juventude e outros grandes encontros), mas também em certos tipos de acompanhamento espiritual. Ela também passa a reconhecer a legitimidade de uma diversidade litúrgica.
A lei e a moral
Não se pode dizer o mesmo no plano ético, onde o fosso não deixou de aumentar entre a doutrina da Igreja e a evolução da sociedade e do direito. Na França, antes do episódio do casamento para todos, a Conferência Episcopal manifestou publicamente a sua oposição categórica em ao menos duas ocasiões: durante a autorização legal da IVG (interrupção voluntária da gravidez), em 1974, e no momento da introdução dos PaCS (Pactos Civis de Solidariedade), em 1998.
Lembremos que a legalização da IVG foi proposta e realizada sob um governo de direita, tradicional aliado da Igreja... Nos dois casos (IVG e PaCS), ela conheceu uma derrota amarga, na lei e também in loco. Fora desses momentos de crise, os apelos éticos, particularmente em matéria de moral sexual, foram muito numerosos, tanto na França quanto em outros lugares.
Mas, mesmo dentro da Igreja, se expressou uma oposição fundamental, maciça e durável: em 1968, depois da condenação da encíclica Humanae vitae a qualquer forma de contracepção não "natural" (portanto, meios artificiais, principalmente a pílula), inúmeros católicos à época – particularmente mulheres – acharam insuportável o veto da Igreja e explicitaram isso. Um divórcio durável começou a partir daquele tempo: ainda hoje, enquanto a proibição permanece, junto aos católicos praticantes, a pílula, ao que parece, é amplamente utilizada para impedir os nascimentos indesejados...
No entanto, diante das evoluções da sociedade e as dos próprios católicos, colocar-se em uma posição de resistência resoluta e contínua diante das "legislações liberais" continua sendo muito perigoso. A Igreja não tinha e não tem mais os meios para tal oposição: na conjuntura atual, em que a obediência às autoridades políticas e morais instituídas depende da capacidade de se legitimar, de se "autorizar", por assim dizer, a resistência intransigente corre o risco principalmente de afastar a sociedade e os indivíduos secularizados ainda mais da Igreja (fala-se de um "êxodo das mulheres" para fora da Igreja).
Prioridades evangélicas
Sem contar que uma rigidez totalmente improdutiva (a rejeição do preservativo, por exemplo) ou escândalos internos (como a pedofilia dos padres) desacreditaram essa posição sem compromissos. Afinal de contas, o "paladino" da resistência moral, João Paulo II, embora superstar na opinião pública, não incidiu em nada naquela Europa que ele queria reconquistar para a fé e os valores cristãos: ao contrário, imputou duradouramente à Igreja Católica uma imagem de pregadora da moral, uma imagem que acabou ocultando a sua mensagem espiritual.
Portanto, pode-se compreender o papa atual quando ele se recusa a continuar nesse caminho: ele não quer mais reafirmar constante e prioritariamente (embora sem renunciar a ela) a mensagem moral – bem conhecida ou, melhor, demasiadamente – e restaura o primeiro lugar às prioridades evangélicas: o perdão do pecador, a misericórdia pela ovelha perdida, a pobreza que nos torna bem-aventurados, a solidariedade com quem sofre, a vida interior, o discernimento das situações.
Os bispos e os padres são chamados a se tornarem novamente pastores, ao invés de "ideólogos" (especialistas e pregadores da doutrina). Os leigos, a fazer o bem e a testemunhar o evangelho como leigos (e não como pseudorreligiosos bem visíveis, brandindo a cruz e recitando o catecismo sem discernimento).
Embora invasiva e indiscutível para os indivíduos, a realidade liberal é fundamentalmente dúctil, flexível, fluida, múltipla e inclui também os aspectos positivos da verdadeira liberdade e da verdadeira igualdade: ao invés da resistência intransigente de um suposto totalitarismo em nome de um anunciado apocalipse antropológico, é importante a memória da beleza do mundo que a euforia liberal não consegue arranhar e a memória do sofrimento dos homens que ela não consegue eliminar.
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Os católicos e o individualismo liberal. Artigo de Jean-Louis Schlegel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU