"O clericalismo é um mal que afasta as pessoas e especialmente os jovens da Igreja, torna os fiéis leigos infantis, reduz as mulheres a servas que, na Igreja, devem ser valorizadas e não clericalizadas. É verdadeiramente um 'mal muito feio que tem raízes antigas' e 'sempre tem como vítima o povo pobre e humilde' porque, para ser sincero, impede encontrar 'tempo para ouvir os sofredores, os pobres, os enfermos e os prisioneiros' que 'pertencem à Igreja por direito evangélico e obrigam à opção fundamental por eles'", escreve o leigo católico Andrea Lebra, em artigo publicado por Settimana News, 04-09-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
“O clericalismo é uma verdadeira perversão na Igreja. O pastor tem a capacidade de ir na frente do rebanho para mostrar o caminho, ficar no meio do rebanho para ver o que acontece dentro dele e também ficar atrás do rebanho para garantir que ninguém seja deixado para trás. O clericalismo, ao contrário, pretende que o pastor esteja sempre na frente, estabeleça uma rota e se pune com a excomunhão aqueles que se afastam do rebanho. Em suma: é precisamente o contrário do que fez Jesus. O clericalismo condena, separa, chicoteia, despreza o povo de Deus” (Papa Francisco, diálogo de 5 de setembro de 2019 com os Jesuítas de Moçambique e Madagáscar).
Segundo Daniele Menozzi, historiador das religiões e professor de história contemporânea na Scuola Normale Superiore de Pisa, nos 7 anos de pontificado de Bento XVI, o termo clericalismo foi usado apenas uma vez, em 10 de junho de 2010, por ocasião de um encontro internacional de presbíteros com o papa Ratzinger.
Nos sete anos de serviço petrino do papa Francisco, de março de 2013 a março de 2020, a palavra, bem distribuída no tempo, volta – novamente segundo a contagem feita por Daniele Menozzi – 55 vezes. Por esse motivo há quem o considere inclusive como um "termo-chave para definir a direção principal" do caminho eclesial indicado pelo atual bispo de Roma.
A insistência com que o papa Francisco denuncia tanto a "praga" como a "peste" ou a "perversão" do clericalismo na Igreja induz, de fato, a considerar que não estamos diante de afirmações improvisadas ou meros chavões, mas com um claro pensamento teológico e pastoral. O que o papa Francisco confidenciou a Eugenio Scalfari na entrevista de 1º de outubro de 2013 é significativo: “Quando me deparo com um clerical, de repente me torno anticlerical. O clericalismo não deveria ter nada a ver com o cristianismo”.
Antes de recordar o rico magistério do papa Francisco sobre o clericalismo na Igreja, é útil mencionar a história do termo, uma vez que ele sofreu uma mudança significativa ao longo do tempo.
As origens remontam a meados do século XIX e às polêmicas – especialmente na França – contra o poder temporal da Igreja por parte daqueles que, sob a influência do racionalismo iluminista, contrapunham-se a ele. Famosa é a invectiva de Léon Gambetta de 4 de maio de 1877 ("le cléricalisme, voilà l'ennemi"), que se tornou o lema do separatismo republicano.
No passado, o termo clericalismo era usado para definir a tendência, por parte do poder eclesiástico, de sair do âmbito religioso para intervir naquele da sociedade civil e do Estado para "determinar suas escolhas e orientações, usando como instrumento o clero e suas organizações laicais, direcionadas assim para atividades que fogem dos propósitos para os quais foram criadas”.
Na linguagem do papa Francisco, por outro lado, verificamos um deslocamento semântico do termo. O clericalismo não é (mais) concebido como algo externo à Igreja que tem a ver com alguma sua indevida ingerência nas questões temporais, mas essencialmente como algo interno à Igreja, que corre o risco de distorcer sua natureza profunda e evangélica.
É o sintoma grave do esforço que, de maneira diferente, todos fazemos para superar a visão piramidal da Igreja como sociedade perfeita e desigual que, identificando nos pastores, com o papa no vértice, a Igreja docente e, no resto do povo de Deus a Igreja discente acaba produzindo uma "divisão" no corpo da comunidade dos crentes, sacralizando indevidamente o ministério presbiteral e colocando os fiéis leigos em uma posição de subordinação.
Apesar de o Concílio Ecumênico Vaticano II ter afirmado claramente que entre os membros do Povo de Deus “vigora uma verdadeira igualdade no que se refere à dignidade e à ação comum de todos os fiéis na construção do corpo de Cristo”. do ponto de vista da práxis eclesial, essa afirmação ainda não deixou sinais particularmente evidentes e o clericalismo, na acepção do papa Francisco, continua a caracterizar vastos setores do mundo eclesial.
A seguir, agrupadas em sete títulos, estão as intervenções mais relevantes do Bispo de Roma sobre o tema do clericalismo.
Como sinônimo de autoritarismo, o clericalismo é uma "forma anômala de entender a autoridade na Igreja", uma forma "não evangélica" de conceber o papel eclesial do presbítero, “uma caricatura e uma perversão do ministério” do bispo, um perigo contra o qual até os diáconos devem ter cuidado e que pode também expor “as demais pessoas consagradas ao risco de perder o respeito pelo valor sagrado e inalienável de cada pessoa e da sua liberdade”.
Essencialmente, o clericalismo é a atitude típica de quem – bispo, presbítero, diácono, religioso – concebe “o seu ministério como um poder a exercer e não como um serviço gratuito e generoso a oferecer”, acreditando que tem sempre respostas prontas para todas as perguntas sem sentir necessidade de ouvir e aprender.
O clericalismo é a ausência de sinodalidade, isto é, daquele "caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio" e que pode ser considerado como o "prontuário que descreve o estado de saúde da Igreja". “Hoje, mais de 60% das paróquias (…) não têm conselho para os assuntos econômicos e o conselho pastoral. O que isto significa? Que aquela paróquia e aquela diocese são conduzidas com um espírito clerical, apenas pelo padre, que não põe em prática aquela sinodalidade paroquial, aquela sinodalidade diocesana, que não é uma novidade deste Papa”.
O clericalismo "é a busca pessoal de querer ocupar, concentrar e determinar espaços, minimizando e anulando a unção do povo de Deus. O clericalismo, vivendo o chamado de forma elitista, confunde a eleição com o privilégio, o serviço com o servilismo, a unidade com a uniformidade, a discrepância com a oposição, a formação com a doutrinação. O clericalismo é uma perversão que, por um lado, favorece laços funcionais, paternalistas, possessivos e até manipuladores com o resto das vocações da Igreja", pelo outro lado, alimenta "atitudes altivas, arrogantes ou autoritárias" que impedem a Igreja de estar "dentro do mundo, para fazê-lo fermentar como o fermento na massa”.
Por ser “o oposto do que Jesus fez, o clericalismo condena, separa, chicoteia, despreza o povo de Deus”, “tem como consequência a rigidez”, codifica “a fé em regras e instruções, como faziam os escribas, os fariseus e os doutores da lei do tempo de Jesus”.
Na atitude dos lavradores rebeldes destacada pela parábola evangélica (Mt 21,33-45) que, embora cientes de serem apenas administradores da vinha, se julgam senhores, Francisco vê “no início do clericalismo", "a perversão que renega sempre a eleição gratuita de Deus, a aliança gratuita de Deus, a promessa gratuita de Deus".
“O clericalismo esquece que Deus se manifestou como dom e se fez dom para nós”: um dom a ser partilhado “como dom e não como propriedade nossa”. O dom divino, que "é riqueza, abertura e bênção", não pode ser encerrado e enjaulado em uma doutrina ou em tantas leis: não pode sequer ser reduzido a uma "ideologia moralista" tão "cheia de preceitos" e casuística que às vezes resulta ridícula. Sua riqueza não pode ser diminuída pelos "caprichos ideológicos de (nossa) mente".
Esquecer que a Igreja, povo de Deus, é uma realidade que nasce do dom divino, que vive dele e que tem a missão de devolvê-lo à humanidade sem se apropriar dele, é “o grande pecado”. É necessário, portanto, pedir ao Senhor a graça de "receber o dom como dom", sem agarrá-lo para si, e colocá-lo à disposição do povo de Deus não de "forma sectária, rígida e clerical", mas – como convém à natureza do dom – de modo gratuito e generoso.
O clericalismo “não é apenas dos clérigos: é uma atitude que toca todos nós". Pode-se afirmar que seja um "pecado de duas vias", porque uma parte substancial do "clero" gosta da tentação de clericalizar os leigos, mas muitos leigos, de joelhos, pedem para ser clericalizados, porque é mais confortável e menos responsabilizante. Uma espécie, portanto, de clericalismo ativo, desejado e alimentado pelo clero, e de clericalismo passivo, aceito e sofrido pelo laicato.
O clericalismo "é como o tango que se dança a dois". "Não haveria clericalismo se não houvesse leigos que queiram ser clericalizados."
Disso decorre a exortação dirigida aos presbíteros: “deixem os leigos trabalhem em paz, não os clericalizem”. “É importante propor sempre modelos positivos de colaboração entre leigos, sacerdotes e consagrados, entre párocos e fiéis, entre organismos diocesanos e paroquiais, movimentos e associações laicais, entre jovens e idosos, evitando contraposições e antagonismos estéreis e favorecendo sempre uma colaboração fraterna em vista do bem comum da única família que é a Igreja”.
O clericalismo "mantém os leigos à margem das decisões" ou "os fecha na sacristia", sufocando a especificidade de seu "chamado à santidade no mundo atual". Mas os leigos não devem “ter medo de pisar nas ruas, de entrar em todos os cantos da sociedade, de chegar aos limites da cidade, de tocar nas feridas do nosso povo”.
Na Igreja, os leigos não são chamados a agir como replicantes, isto é, a "repetir como papagaios" o que dizem os bispos, presbíteros, religiosos e nem mesmo podem ser considerados por estes como "servos" ou "empregados". O clericalismo deve, portanto, ser considerado como "uma das tentações que mais prejudicam o dinamismo missionário que somos chamados a promover", como uma "caricatura da vocação recebida" e "falta de conhecimento do fato que a missão pertence a toda a Igreja. e não apenas ao padre ou ao bispo”.
O clericalismo é uma “atitude que não só anula a personalidade dos cristãos, mas também tende a diminuir e subestimar a graça batismal que o Espírito Santo colocou no coração do nosso povo”, levando “a uma homologação do laicato”. Tratando este último como mandatário, “limita as diversas iniciativas e esforços e (...) as audácias necessárias para poder levar a Boa Nova do Evangelho a todos os âmbitos da atividade social e principalmente política”. O "grave perigo" do clericalismo deve ser superado "valorizando o sacerdócio comum dos batizados e redescobrindo o laicato como vocação".
O clericalismo é "não perceber que a Igreja é todo o santo povo fiel de Deus, que é infalível in credendo, todos juntos" e este é "o dano mais grave que a Igreja pode sofrer hoje".
No final, o clericalismo ocorre quando “os leigos não sabem o que fazer se não o pedem ao padre”.
O clericalismo é acima de tudo uma tentação muito atual contra o discipulado missionário. A falta de maturidade e de liberdade cristã do laicato deve em grande parte ser atribuída a ele. “A proposta dos grupos bíblicos, das comunidades eclesiais de base e dos conselhos pastorais vai na linha da superação do clericalismo e do crescimento da responsabilidade laical”.
A Igreja em saída missionária, sonhada por Francisco, sai às ruas, defendendo-se não só do mundanismo, do imobilismo, dos confortos e dos fechamentos, mas também do clericalismo.
“Igreja em saída” é sinônimo de “laicato em saída”. É necessário levantar o olhar e olhar "para fora", olhar "para as tantas pessoas distantes do nosso mundo, para as tantas famílias em dificuldade e carentes de misericórdia, para os tantos campos de apostolado ainda inexplorados, para os numerosos leigos de coração bom e generoso que de bom grado colocariam serviço do Evangelho as suas energias, o seu tempo, as suas capacidades se estivessem envolvidos, valorizados e acompanhados com carinho e dedicação por parte dos pastores e das instituições eclesiásticas. Precisamos de leigos bem formados, animados por uma fé sincera e límpida, cuja vida foi tocada pelo encontro pessoal e misericordioso com o amor de Cristo Jesus.
Precisamos de leigos que se arrisquem, que sujem as mãos, que não tenham medo de errar, que sigam em frente. Precisamos de leigos com visão de futuro, não fechados nas pequenezas da vida. E disse aos jovens: precisamos de leigos com sabor de experiência da vida, que ousem sonhar. Hoje é o momento em que os jovens precisam dos sonhos dos idosos. Nessa cultura do descarte, não vamos nos acostumar a descartar os idosos! Vamos incentivá-los, vamos incentivá-los para que sonhem e – como diz o profeta Joel – tenham sonhos, aquela capacidade de sonhar, e deem a todos nós a força de novas visões apostólicas”.
A tentação do clericalismo é particularmente prejudicial para a Igreja porque "implica uma atitude autorreferencial, uma atitude de grupo, que empobrece a projeção para o encontro com o Senhor, que nos faz discípulos, e para os homens que esperam o anúncio". Por isso, é “importante e urgente formar ministros capazes de proximidade, de encontro, que saibam inflamar o coração das pessoas, caminhar com elas, dialogar com suas esperanças e temores. Esse trabalho, os bispos não podem delegar. Devem assumi-lo como algo fundamental para a vida da Igreja, sem poupar esforços, atenções e acompanhamento”.
A autorreferencialidade que conduz a uma espécie de “narcisismo” que, por sua vez, se apresenta como terreno fértil para um “clericalismo sofisticado”. É de se esperar que "a doce e reconfortante alegria de evangelizar" possa salvar os bispos de serem "solteirões clericais" e livrá-los da tentação de manchar seu serviço episcopal com adornos, bem como "mundanidades e dinheiro", também do "clericalismo de mercado".
Presente na época de Jesus e ainda hoje na Igreja, o clericalismo "é uma arrogância e tirania" para com o fiel povo de Deus comparável àquela perpetrada pelos sumos sacerdotes que, esquecendo Abraão e Moisés, exploraram a lei de Deus criando uma "intelectualista, sofisticada, casuística”. Uma atitude “que tira a liberdade da fé dos fiéis”. “Preocupa-se mais em dominar espaços do que em gerar processos”, “tem como vícios escalar e tagarelar”, “o carreirismo e familismo”, “a mundanidade e fofoca”.
"O clericalismo, longe de impulsionar as várias contribuições e propostas, está extinguindo pouco a pouco o fogo profético do qual a Igreja toda é chamada a prestar testemunho no coração dos seus povos”.
O Concílio Vaticano II confiou à Igreja o mandato de "encorajar os fiéis leigos a se envolverem cada vez mais e melhor na missão evangelizadora da Igreja, não por delegação da hierarquia, mas na medida em que o seu apostolado é a participação na missão salvífica da Igreja, na qual são todos deputados do Senhor por meio do batismo e da confirmação (LG 33). E esta é a porta da frente! Entra-se na Igreja pelo batismo, não pela ordenação sacerdotal ou episcopal, entra-se pelo batismo! E todos nós entramos pela mesma porta. É o batismo que faz de cada fiel leigo um discípulo missionário do Senhor, sal da terra, luz do mundo, fermento que transforma a realidade por dentro”.
Quando falta profecia na Igreja, falta a própria vida de Deus e prevalece o clericalismo. O profeta é aquele que escuta a palavra de Deus, sabe ver e interpretar o momento presente e se projetar para o futuro. “Ele tem esses três momentos dentro de si”: o passado, o presente e o futuro. O passado é representado pela promessa de Deus que o profeta tem em seu coração, lembra e repete. O presente é constituído pelo olhar voltado para o povo e pela força do Espírito que sugere ao profeta as palavras certas para ajudar o povo a levantar-se e continuar o seu caminho rumo ao futuro.
O clericalismo é um mal que afasta as pessoas e especialmente os jovens da Igreja, torna os fiéis leigos infantis, reduz as mulheres a servas que, na Igreja, devem ser valorizadas e não clericalizadas.
É verdadeiramente um “mal muito feio que tem raízes antigas” e “sempre tem como vítima o povo pobre e humilde” porque, para ser sincero, impede encontrar “tempo para ouvir os sofredores, os pobres, os enfermos e os prisioneiros” que “pertencem à Igreja por direito evangélico e obrigam à opção fundamental por eles”. A Igreja deve demonstrar que é "capaz de colocar-se ao serviço do seu Senhor no faminto, no preso, no sedento, no sem-teto, no despido, no enfermo ... (cf. Mt 25,35)", na consciência de que "o problema não está em dar alimento ao pobre, vestir o despido, assistir o enfermo, mas em considerar que o pobre, o nu, o enfermo, o prisioneiro, o sem-teto têm a dignidade de sentar às nossas mesas, de se sentir em casa entre nós, para se sentir em família. Esse é o sinal de que o reino de Deus está entre nós”.