08 Outubro 2020
“Concordamos e apreciamos as ousadas condenações do pontífice às ideias neofascistas sobre nação e raça, economia do gotejamento, capitalismo de livre mercado desenfreado, desigualdade de renda e riqueza e um niilismo libertário que apenas disfarça o egoísmo para um consumo mais palatável”, posiciona-se, em editorial, a National Catholic Reporter, 08-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Grande parte da cobertura da nova encíclica do papa Francisco, Fratelli Tutti, lançada em 4 de outubro, deu enfoque a seus temas de bem-estar, de unidade, diálogo e paz. Quem pode argumentar contra a noção de que somos “todos irmãos e irmãs?”
Mas este documento, a terceira encíclica do Papa e claramente um resumo de seu papado até agora, não é um chamado de rotina para orações e votos de felicidades em face da pandemia. É, fundamentalmente, uma crítica acertada ao populismo nacionalista, aos sistemas econômicos que exploram os pobres e, de fato, à própria democracia, pelo menos pela forma como está evoluindo no início do século XXI.
Concordamos e apreciamos as ousadas condenações do pontífice às ideias neofascistas sobre nação e raça, economia do gotejamento, capitalismo de livre mercado desenfreado, desigualdade de renda e riqueza e um libertarianismo que apenas disfarça o egoísmo para um consumo mais palatável.
Isso – junto com um individualismo excessivo e “consumismo febril” – impede um “tipo de política melhor, verdadeiramente a serviço do bem comum”, diz o Papa.
Não pode haver engano nas palavras do Papa: O sistema neoliberal não é compatível com o Evangelho de Jesus Cristo.
“O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal”, escreve o papa Francisco. “Trata-se dum pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja”.
“O neoliberalismo reproduz-se sempre igual a si mesmo, recorrendo à mágica teoria do ‘transbordamento’ (spillover) ou ‘gotejamento’ (trickle-down)”, continua. “Há pouca apreciação do fato de que o alegado ‘transbordamento’ não resolve a desigualdade que dá origem a novas formas de violência que ameaçam o tecido da sociedade”.
Em vez disso, o Papa insiste, devemos seguir o modelo do “Bom Samaritano”, não apenas como indivíduos, mas como sociedades, prestando atenção ao sofrimento ao nosso redor em vez de desviar o olhar.
Isso requer uma mudança de coração. “Do contrário, a propaganda política, a mídia e os formadores da opinião pública continuarão a promover uma cultura individualista e acrítica, subserviente aos interesses econômicos não regulamentados e às instituições sociais a serviço daqueles que já desfrutam de muito poder”, escreve Francisco.
O documento não é perfeito. Seu título com um gênero exclusivo e a falta de vozes femininas, mesmo nas citações, é um problema sério. Mas suas palavras sobre a economia e a política de hoje são palavras fortes e contraculturais. E o momento do Papa não poderia ser melhor, à medida em que os Estados Unidos avançam para as últimas semanas antes que está sendo considerado a eleição mais importante desde a Guerra Civil.
Embora ele não mencione o presidente Donald Trump diretamente, a referência de Francisco aos líderes populistas que “são capazes de explorar politicamente a cultura de um povo, sob qualquer bandeira ideológica, para sua própria vantagem pessoal ou controle contínuo do poder” não tem como não nos trazer à mente o atual presidente.
Fratelli Tutti adverte contra a demagogia “para seus próprios fins”, sem nenhuma preocupação com os vulneráveis – uma descrição especialmente apropriada de Trump, dado seu aparente desprezo pela saúde dos outros enquanto o coronavírus continua a se espalhar pela Casa Branca.
Embora nenhum Papa deva dizer aos americanos como votar – e Francisco claramente não está fazendo isso aqui – também é verdade que esta encíclica dá aos católicos norte-americanos muito a se pensar enquanto consideram sua escolha na eleição presidencial.
Em contraste com muitos bispos dos EUA que insistem que a criminalização do aborto ou as chamadas questões de “liberdade religiosa” são os únicos que os católicos deveriam considerar, Francisco coloca as questões econômicas (sem mencionar a pena de morte e guerra e paz) em primeiro plano.
E é o bem econômico comum – não as preocupações econômicas individuais de alguém – que deve ser considerado, de acordo com o Papa.
Depois de ler esta encíclica, nenhum católico deve ter escrúpulos em votar em Joe Biden. Vejam, eles poderiam votar em Bernie Sanders, caso ele tivesse sido nomeado, dada a forte condenação do pontífice à distribuição injusta da riqueza.
Já podemos ouvir a réplica: “Mas o socialismo!” A palavra “S” tornou-se um palavrão nos Estados Unidos, em parte devido a uma campanha de desinformação dos candidatos republicanos. Em um webinar recente apresentado pela Boston College, Trinity College e St. Anselm College, o ex-governador de New Hampshire, John H. Sununu, chamou Francisco de “socialista argentino”.
É importante deixar claro o que o socialismo democrático não é: não é sinônimo de marxismo, nem é o socialismo de regimes autoritários como a China ou a ex-União Soviética, que não eram democracias.
As políticas socialistas democráticas exigem que o governo forneça serviços básicos, como saúde e educação, para todos os seus cidadãos – não necessariamente que o governo precise possuir ou controlar todos os aspectos de tais serviços.
Embora contrário ao individualismo rude sobre o qual a mitologia dos Estados Unidos foi construída, a preocupação do socialismo democrático pelo bem comum não é antitética à nossa fé cristã e católica. Fazia parte da maneira como os discípulos de Jesus e a igreja primitiva viviam, conforme descrito no Ato dos Apóstolos; foi e faz parte da maneira como as comunidades religiosas de homens e mulheres operaram; e é a motivação de algumas comunidades religiosas atuais, como – em uma reviravolta irônica – a “comunidade pactuada” de Amy Coney Barrett, candidata republicana à Suprema Corte.
A tradição cristã “nunca reconheceu o direito à propriedade privada como absoluto ou inviolável”. Esse é o papa João Paulo II, em sua encíclica Centesimus Annus de 1991, que Francisco cita em Fratelli Tutti.
Francisco também observa que o direito à propriedade privada é um “direito natural secundário”, derivado da “destinação universal dos bens criados”, um princípio do ensino social católico que diz que os bens da criação pertencem a toda a raça humana.
Embora isso possa soar extremo para os ouvidos individualistas dos estadunidenses, é a mensagem contracultural do Evangelho, que todos devemos ouvir, especialmente quando tantas vidas – dos pobres, dos desempregados, dos enfermos – estão literalmente em risco.
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Os estadunidenses precisam escutar a mensagem contracultural do Papa sobre o bem comum. Editorial da National Catholic Reporter - Instituto Humanitas Unisinos - IHU